O Abrigo- Mary Heaton Vorse

(The Halfway House)

Conto publicado originalmente na revista Harper’s Monthly Magazine, em 1921

David Ellison se dava tão mal com cidades que deu um jeito de escapar delas cedo. As cidades, segundo ele, pareciam ninhos de minhoca, um horror que se contorce e se entrelaça, cujos moradores só tem em comum o gosto pela rapinagem. No entanto, suas palavras não se aplicavam aos vilarejos costeiros. Cidadezinhas que não conseguem escapar da tragédia iminente do mar, nem da esplêndida austeridade do litoral invencível que, em algumas partes, não dava ao homem um ponto de apoio sequer desde que os Peregrinos fizeram seu primeiro desembarque aventureiro. Estas cidadezinhas produzem homens e mulheres corajosos, e de vez em quando um rapaz como David Ellison cresce em uma delas, como se fosse parte do mar e da costa solitária e selvagem.

David se refugiou na guarda costeira. Por causa da mãe, ele não podia seguir os passos de seus antepassados e se aventurar em mar aberto. O mar já havia levados muitos Ellisons. Para lá de Town Hill, no antigo cemitério, havia uma quadra na qual se enfileiravam as lápides dos Ellisons uma após a outra, todas marcadas com as palavras “Perdido no mar”.

Pensando bem, os homens da guarda costeira são uma gente estranha que leva uma vida estranha. Seus pensamentos estão sempre focados no mar e nas embarcações que se movem sobre a sua superfície. Os homens que envelhecem em seu serviço são sérios e amigáveis; eles sentem coisas que outras pessoas não percebem; conhecem as tempestades e identificam as formas de navios que para olhos não treinados são apenas pontinhos indistinguíveis no horizonte.

Durante toda a noite, estes homens guardam a costa e informam as estações sobre o destino dos navios. De dia, ficam sentados olhando para o mar; tão isolados como se estivessem a bordo de um navio. Suas vidas estão atadas à areia, ao céu, ao mar e aos navios que navegam pelo mar. Muitas estações estão em lugares distantes, de difícil acesso; conectadas à vida das cidades apenas por alguma estradinha estreita que atravessa pântanos caudalosos, florestas ou charnecas varridas pelo vento.

São praias assombradas por fantasmas de navios mortos e dos homens mortos que navegaram neles. Existe a lenda de um cavalo branco, único sobrevivente de um navio naufragado, que correu solto e selvagem por anos pelas dunas, e quando finalmente foi capturado, fugiu e voltou para o mar de onde tinha saído. Há lendas de naufrágios e histórias de náufragos e contrabandistas que podem ser ouvidas nos postos de salvamento; histórias de fugas milagrosas e de navios misteriosos navegando tranquilamente, sem nenhuma mão humana operando o leme.

Nem todas essas histórias são antigas. O mistério da rosa é uma história desta geração; todos já ouviram a história de David Ellison e de Assunta Flores. Rosas ainda florescem na terra seca do Farol de Spinet Rock, onde Mary Angus cresceu.

A estação de David ficava em Gurnet Reef Hollow, numa parte da costa conhecida como o Cemitério do Atlântico. A área está cheia de esqueletos de navios mortos. Um banco de areia forma uma fronteira natural com o oceano aberto, mas de vez em quando, quando há uma tempestade das grandes, o mar quebra a barreira de areia e arremessa os destroços de um navio na direção da costa. Com o tempo, a areia movediça os enterra e talvez os descubra novamente diante dos olhos de uma nova geração.

Os vilarejos deste lugar selvagem fazem fronteira com a baía. O interior chega até o limite de seus jardins – um terreno impenetrável de pântanos, brejos e bosques, depois do qual há as dunas cruéis e invasivas. O interior, as dunas e o mar são todos indomados; do mesmo jeito que eram no início da criação.

Davi cresceu com eles, sabia qual duna havia mudado de lugar sob a fúria dos ventos do inverno, qual cavidade estava se enchendo, e onde as florestas estavam sendo comidas pelas areias sinistras. Ele amava a costa selvagem, para sempre indomável pelas mãos do homem.

A procissão harmoniosa de seus dias nunca fora interrompida, nem mesmo pelo amor. Pois o amor não veio a David como uma chama ardente. Ele se apaixonou como quem respira. Tinha sido amigo de Mary Angus por tanto tempo que não percebeu o amor que tinha por ela em coração até que esse amor floresceu.

Mary Angus era a única garota que David conhecia bem, mas para os outros ela era tão inacessível quanto uma princesa de conto de fadas. Spinet Rock era o farol de seu pai, um farol de segunda classe, com uma luz branca de flash de trinta e dois, parecido em tudo com o grande farol Highhead, exceto em magnitude. Ela nascera no farol, e viveu nele desde que era um bebê.

Se havia uma garota que parecia predestinada a ser a companheira de David, essa garota era Mary, com seu cabelo liso tão loiro que parecia quase prateado ao sol, seu o bronzeado cor de mel, seu jeito ágil como um passarinho, e suas mãos trabalhadoras.

Poucas semanas depois de terem descoberto que se estavam apaixonados um pelo outro e decidirem se casar, David pegou o costume de visitar o farol de Spinet Rock quando estava de serviço na estação. Seu tempo de intervalo dava facilmente para ir, passar uma hora com Mary e voltar.

Naquela tarde, o mar tinha um azul quase insuportável e o horizonte estava cortado por um banco de neblina baixo que não se movia. Nuvens leves passavam, levadas por ventos que sopravam os estrato mais altos, corriam e fluíam como se fugissem de uma tempestade que se aproximava. Ao passar, elas manchavam as dunas com sombras cor de lavanda. O sol mergulhou, vermelho, atrás do banco de nuvens. Quando David passou pela estação do Dead Man’s Bar, o mar estava lilás e o céu, através das nuvens que corriam, parecia pálido e distante.

David ia chegando no abrigo quando uma névoa espectral passou por ele e o envolveu. Ela envolveu tudo e acelerou como se alguém tivesse rasgado uma nuvem com as mãos e lançado sobre ele. Pequenas nuvens de névoa voavam por entre os arbustos e sobre as tristes florzinhas brancas que cobriam esparsamente a face da areia. Ele podia ver a névoa avançando como uma barreira, precedida por espectros de névoa soprados pelo vento; ele podia ver os espectros correndo para longe da costa como criaturas assustadas, cobrindo as dunas. David andou mais rápido. Parecia que o mundo se fechava e se abria diante dele. A névoa surgira de uma forma estranha, não furtivamente como aquela névoa que é prima da chuva, mas violentamente, como se estivesse horrorizada com um desastre iminente – uma névoa fria que cheirava a tempestade; e isolava David de todo o mundo, envolvendo-o em seu úmido cobertor cinza.

Lá embaixo, ao pé da colina de areia, ele podia ouvir o quebrar das ondas e por trás da névoa, as vozes assustadas dos navios. Para além do farol Spinet ele podia ouvir dois grandes navios conversando entre si. O Spinet a as estações de Dead Man’s Bar e Gurnet Reef Hollow davam avisos com a buzina e o sino, e tudo se enchia de sussurros, como se as vozes da tempestade falassem; interrompidas apenas pelo quebrar insistente das ondas na praia. A superfície do mar começava a se mover inquietamente e, ao longe, David ouvia o assobio da bóia nos baixios.

Havia algo frio e secreto naquela névoa e no vento que a seguia agarrado em seus calcanhares, arrastando-a – um vento que não tocava a face do mar. Algofez o sangue de David correr mais rápido.

De repente, ele parou, comandado por uma voz inaudível e então, atraído como por um ímã, afastou-se da praia e foi na direção do abrigo velho. Uma duna invasora tinha engolido a construção; estava coberto de areia até o telhado, só a porta tinha ficado de fora. Metade de uma janela alta deixava entrar um incerto raio do sol da tarde. David caminhou em direção ao abrigo sem hesitar nem se perguntar por que, como se tivesse um encontro marcado com a própria morte.

Então, um som fez seu coração pular uma batida, como alguém tivesse sussurrado seu nome por dentro da névoa.

—Olá? — ele chamou e repetiu, —Olá!?

Mas não houve resposta. Sua voz parecia espantosamente alta dentro da névoa úmida que envolvia tudo. Ele ficou parado, e o mundo ficou em silêncio, exceto pelo sussurro das vozes na tempestade.

Tinha escurecido muito rápido; nuvens invisíveis cobriram a face do céu noturno. De repente, um turbilhão de vento separou a névoa e David viu por um momento alguém sentado perto do abrigo, encurvado. Viu que era uma moça e que estava chorando. Ele correu, e então a névoa se fechou. Foi só quando chegou bem perto que a viu novamente.

Ela lhe pareceu muito jovem, sozinha e indefesa em meio à imensidão de areia e de névoa. Estava vestida de preto, como se estivesse de luto fechado, aliviado apenas por uma faixa branca macia em volta da garganta; seu cabelo era escuro e estava puxado para trás, preso em um elaborado coque de aparência estrangeira; seus olhos escuros estavam assustados e nadando em lágrimas

Ah! Você veio. —Ela falou como estivesse esperando por ele, e ele estivesse atrasado.

—Não me ouviu chamar? — perguntou David.

Ela balançou a cabeça, olhando para ele de um jeito perdido, assustado.

—O que você está fazendo aqui tão longe?

Ela era tão pequena e delicada que David sentiu uma onda de piedade tomá-lo. Então, com seu ar confuso, ela disse muito distintamente, sempre olhando diretamente para ele, como se ele pudesse desvendar algum mistério para ela:

—Eu não entendo por que eu estou aqui nem por que eu vim.— E acrescentou. —Eu só sabia que tinha que vir.

Com estas palavras uma sensação quase de medo invadiu David, como se um vento cortante lambesse até a raiz de seu cabelo.

—Está perdida?

—Me perdi na neblina— ela respondeu.

—Você sempre vem aqui?

Havia algumas casas de veraneio não muito longe da estação de Dead Man’s Bar. Ali, a costa sobe abruptamente e a vista do mar é distante; algumas pessoas corajosas, capazes de suportar o isolamento, construíram casas perto das fazendas vizinhas. David pensou que talvez ele pudesse ter vindo de lá.

Ela não respondeu e ele repetiu a pergunta. Ela desviou o olhar dele, como se tentasse ver através da névoa.

— Gostei daqui. — disse ela. — Há paz aqui.

Ela parecia tão cansada enquanto falava que novamente uma onda de piedade dominou David como uma onda o arrastava em sua crista.

Então, por um tempo, ela ficou sentada olhando para David e ele ficou olhando para ela. Pareceu-lhe, ao pensar nisso depois, que os dois estavam separados do tempo e do espaço. Era como encontrar alguém na eternidade sem nenhuma das coisas da vida para distraí-los um do outro – como se uma névoa os tivesse isolado do mundo, deixando apenas as suas almas face a face.

Ele não tinha mais medo dela do que teria de qualquer garota, embora na presença de todas as mulheres, exceto Mary Angus, ele ficasse mudo. Ele temia todas e não gostava de muitas, pois viviam nas cidades. Mas se sentia atraído para junto desta moça por um sentimento de piedade intolerável.

—Seu caminho não é longe daqui — ele disse. —Eu te levo até lá.

Caminhou ao lado dela, sempre sentindo como se estivesse sozinho no mundo com ela, e que por isso mesmo estava mais perto dela do que jamais tinha estado de qualquer outro ser humano.

Encontrou a estrada que serpenteava ao longo da costa, unindo uma estação com a próxima. Estava tão coberta de capim que mal se podia ver a trilha das carroças. A essa altura, a baía, cercada de rosas selvagens e sabugueiros, estava encharcada de névoa.

Ele percebeu que a moça vestida de preto usava uma aliança de casamento, e perguntou sem pensar:

—Você é casada? — Sentiu-se mal ao perguntar isso, mas não sabia por quê.

Ela olhou para ele com uma expressão de sofrimento.

—Eu era casada. Ele morreu há pouco tempo.

David queria pegá-la em seus braços e acalmá-la junto ao peito como se ela fosse uma criança. Ele queria gritar: “Oh, não! Oh, não!” como quem quer dizer, “Oh, não sofra assim!” Mas não disse nada. Era como se ela tivesse contado toda a história de sua vida.

Então ela disse:

—Eu tenho uma filhinha.

David ficou feliz ao ouvir isso.

Chegaram à trilha que levava à estação Dead Man’s Bar. Dali para a estrada era um caminho mais curto que o da praia, que ia diretamente a um pequeno vilarejo.

—Você pode ir por aqui.— ele disse. —Quer que eu te acompanhe?

Viu que ela estava com medo, mas não era medo do caminho solitário. Do quê ela tinha medo, ele não sabia.

Ficaram olhando um para o outro, incertos, e David sentiu-se envolvido pela sensação de estar num sonho — não era a vida real; era alguma outra coisa. Então se pegou dizendo:

—Você vai voltar, não é?

— Ah, sim! —disse ela.

—Logo?

—Voltarei muito em breve. Adeus, David.

Novamente, David teve uma leve sensação de frio nas costas. Ele sabia que ela não o conhecia e não tinha como ela saber seu nome. Sabia também que era dela a voz que ele tinha ouvido sussurrar de volta quando ele gritara “Olá!” no silêncio sufocante da névoa.

Ele não conseguia esquecê-la. O sentimento de piedade que ela havia despertado nele o invadiu e o afastou das realidades da vida.

“O que aconteceu comigo?”, pensava, “Qual é o meu problema?” Em toda a sua vida, ele nunca vira nada tão solitário quanto aquela moça de preto sentada ao lado do abrigo soterrado, e a lembrança de sua solidão era uma sombra em todos os seus pensamentos; ele não conseguia escapar dela, e não queria escapar.

Ele a viu novamente três tardes depois, quando ia visitar Mary Angus. Em vez de ir pela praia, ele tinha ido pela trilha das carroças. A trilha cheia de mato parecia mais remota do que as próprias dunas. Ele tinha escolhido a trilha pois tinha certeza de que ela estaria lá. Tão certo como sabia que o sol nasceria no dia seguinte, ele sabia que a encontraria perto do abrigo e, mesmo assim, quando a viu caminhando devagar em sua direção, seu coração acelerou. Uma sensação de estranheza o envolveu, como se estivesse se movendo em um sonho fatal, e novamente a pena que sentia dela rasgou seu coração. Ela parecia tão pequena, tão solitária, que doía vê-la naquele lugar selvagem. Ele queria protegê-la e abrigá-la.

Ela veio em sua direção sorrindo. Levava algumas rosas nas mãos; eram rosas estranhas, estavam soltas e pareciam borboletas tropicais com pétalas carmesim e miolos amarelos, sua folhagem era exótica, espessa e brilhante, e seu perfume era tão penetrante como o de uma essência concentrada.

—Você encontrou essa flores por aqui?— ele perguntou.

—Eu as trouxe de casa.

Ele estendeu a mão e ela lhe deu uma rosa. Depois disso, ele não conseguia se lembrar do que haviam dito. Conversaram, aqueles fragmentos de palavras trocadas entre amigos, que as jogam no silêncio sem esperar que se encham muito de significado.

Sentaram-se no topo de uma duna da qual cresciam matos verdes, faias-da-terra, florzinhas brancas e e grama-da-praia. Dali, dava para ver o mar.

—Será que essas rosas cresceriam se eu as colocasse na areia? — Ela perguntou.

—As rosas selvagens crescem bem por aqui. Eu já ouvi minha mãe dizer que dá para plantar rosas na areia.

Então ela as plantou, uma após a outra, solenemente.

—Se chover, elas podem crescer — disse. Então ela se levantou e os dois percorreram em silêncio a curta distância que os separava da trilha que levava a Dead Man’s Bar.

—Deixo você aqui. — ela disse, e em um momento sumiu dentro dos sabugueiros.

David seguiu seu caminho até Mary, com o coração confuso. Ele sentia como se a vida lhe pedisse algo, como se aquele encontro fosse a sombra de alguma coisa miraculosa.

—Que rosa estranha. — disse Mary, e pegou a flor de sua mão. —Nunca vi uma como esta aqui no Cabo. Onde a encontrou, David?

—Nas dunas.

—Nas dunas? Essas rosas crescem nas dunas?

—Uma garota nas dunas me deu. Não sei quem ela é. — Doeu-lhe insuportavelmente dizer que não sabia quem ela era; parecia absurdo que ele não a conhecesse quando ela tinha deixado uma marca em seu coração.

A mãe de Mary entrou na sala. Ela era uma mulher do interior e tinha plantado um pequeno jardim que florecia ao redor do farol.

—Não existem rosas como esta em todo o Cabo — disse ela. É uma rosa de um país estrangeiro. Eu vi uma dessas uma vez no Maine, foi um homem que trabalhava no comércio com a China que trouxe.

David queria contar a Mary sobre a garota. Ele queria dizer que a encontrou perdida na névoa e que hoje ela tinha vindo ao seu encontro com a rosa. Mas quando tentou colocar tudo em palavras, parecia uma tolice e não conseguiu dizer nada; só ficou lá sentado, sentindo como se estivesse sob o encantamento de um sonho.

Nos dias seguintes, David tentou tirar a garota da cabeça. Não havia razão para que ele pensasse nela, e ainda assim ela estava lá, para sempre um pano de fundo em seus pensamentos. Ele buscava consolo em Mary; se agarrava a ela como uma criança com medo do escuro se agarra à mãe.

Poucos dias depois, quando ele estava no farol, Mary teve a impressão de que ouvia algo vindo lá de fora, como uma voz chamando. Ele levantou-se.

—Bem, eu preciso ir — disse.

—Precisa ir? Por quê isso? — perguntou a mãe de Mary. David sempre ficava tanto quando podia, e só voltava com o tempo justo de chegar ao seu posto. Ele olhou para as duas mulheres, confuso.

Mary colocou a mão em seu ombro. —O que houve, David? — Ela perguntou. E ele sentiu a bondade que ela tinha em seu coração fluir dela.

—Não sei bem. — respondeu. —Mas eu tenho que ir.

A mãe de Mary olhou fixamente para os dois por um momento e os deixou a sós.

—David, — disse Mary — você não pode me contar qual é o problema? Não pode me dizer o que está acontecendo no seu coração, David? O que está acontecendo entre nós?

David sentiu crescer nele uma saudade de seus dias tranquilos, de quando sua vida não estava dividida. Ele lutou para encontrar as palavras. Mas não achou nenhuma. O que ele poderia dizer a ela? Que ele amava outra pessoa — uma garota estranha cujo nome ele nem sabia? As palavras pareciam perder todo o significado; e, no entanto, lá estava aquela obrigação não declarada, algo de que ele não podia escapar, algo que ele tinha que fazer.

Mary se espichou e beijou sua testa. —David, — ela disse —eu sei de uma coisa. Eu sei que te amo para sempre. E eu sei que você se afastou de mim e não pode me dizer por quê. Mas eu sei que quando voltar para mim, vai me encontrar aqui esperando. Mas, oh, meu amor, é tão difícil não poder aliviar o que está se passando com o seu coração.

Com isso ela o beijou novamente.

E com o coração partido ele foi embora, sem olhar para trás. Era como se tivesse sido sugado para fora do farol por uma onda de saudade que não era amor nem desejo, mas que era mais forte do que ambos. Uma saudade de casa desesperadora se apoderou dele, aquela nostalgia que é capaz até de matar as pessoas que deixam o lugar onde nasceram.

David foi para o abrigo atraído como um ímã para um poste, seguro e contente por saber que ela estaria lá esperando por ele, uma figura pequena, solitária e curvada que tinha se apoderado dele de alguma forma misteriosa. E enquanto ele andava, a névoa surgiu e caminhou com ele, a companhia de seus encontros com ela, parecia que a névoa conhecia seu propósito e tentava isolá-lo do mundo com sua intimidade impenetrável.

Ela estava sentada como se estivesse esperando por ele, e por um tempo ficaram sentados lado a lado, em silêncio. David ficou abalado com seu próprio contentamento. Seu conflito acabara; ele não sentia mais que estava cometendo uma traição. Foi como se a porta de seu coração se abrisse e levasse a um lugar secreto que ele nunca soube que existia. Por um momento, não lutou contra a vida.

Então, enquanto eles estavam sentados ali, de repente a névoa se dissipou, revelando a luz fria e brilhante de inúmeras estrelas, infinitamente remotas. David olhou para elas, maravilhado. Parecia que ele tinha encolhido até virar um nada na presença do esplendor calmo dos céus. Ele precisava do toque de um ser humano e se ouviu implorando a essa garota desconhecida:

—Deixe-me abraçá-la por um momento.

—Agora não — ela sussurrou, levantando a mão em um gesto débil de protesto. Ela olhou para ele com confiança. —Não agora, mas da próxima vez que eu vier.

E então ela se afastou dele lentamente. Foi como se ela tivesse saído pela borda do mundo; a névoa a engoliu e David ficou sozinho.

Quanto tempo ele ficou sentado ali, David não tinha ideia. A imensa importância do que acabara de acontecer o atingiu como uma chuva persistente e torrencial. Ele estava sob algum encantamento que o isolou da vida como ele a conhecia. Esta garota estranha e solitária precisava dele, e ele se colocou à disposição dela.

David se levantou e voltou para a estação. Durante a longa caminhada, seus pensamentos giravam.

Sua vida antes era unificada, completa, e agora ele era invadido por esse estranho amor que vinha de fora; assaltava-o como uma força externa, pedindo-lhe algo. Portanto, sua vida inteira estava dividida. Seu coração estava partido em dois diante dele. Era como se estivesse dividido em duas pessoas, uma mergulhada profundamente naquela coisa inexplicável que se abatera sobre ele, e a outra o seu eu habitual, vivo a cada sussurro do vento. Sentiu a tempestade no ar; tudo pressagiava tempestade. O desastre estava se formando, estava chegando no sopro do vento que rumorejava. Havia embarcações por trás do manto de névoa, embarcações abaixo da borda do horizonte, destinadas à destruição.

Enquanto dormia, sentiu a tempestade crescer. Pela manhã, as ondas estrondavam na praia, empurradas pelo vento sem freio que atravessa o oceano da Espanha à América. E ainda assim a névoa persistia; o vento carregava a névoa consigo e chegava mais névoa; o vento não conseguia dissipá-la. Atrás do nevoeiro, vinha a conversa tumultuada de navios assustados.

Misturados na mente de David estavam a lembrança de Mary e da garota do abrigo. Era algo tão inexplicável que não lhe dava descanso, um mistério que exigia resolução, enquanto sob a superfície de seus pensamentos jazia sempre a saudade que ela despertava nele.

Aquilo se tornou tão insuportável que no final da tarde ele se colocou seu casaco impermeável e foi para o abrigo, sabendo de antemão que era impossível ela estar ali. Parecia mais solitário do que nunca, coberto de areia. Ele entrou para se proteger da chuva forte e da crueldade uivante do vento. O abrigo parecia uma tumba, um túmulo de esperança. Lá estava o lugar onde ficava o fogão, havia uma bancada e um gabinete para guardar carvão e lenha. O lugar o sufocava e ele voltou para a estação. Seus pensamentos giravam em sua mente como folhas na tempestade.

Ao cair da noite, a tempestade tinha virado uma tormenta, e David foi para a cama com a voz do capitão nos ouvidos:

—Melhor dormir enquanto pudermos; gostando ou não vamos ter que levantar antes do amanhecer.

David caiu instantaneamente em um sono profundo, parecia até que o tempo não tinha passado quando tocou o alarme. Com o sono ainda pesado sobre o corpo, lutou para se vestir e tirar o bote salva-vidas. Um navio tinha ficado preso no banco de areia. A névoa ainda estava subindo e mal se conseguia distinguir o sinal de socorro. Uma sensação de apreensão o dominou. Ele ouviu os outros discutindo se seria possível lançar o bote. Ele disse em voz alta:

—Se não nos apressarmos vai ser tarde demais! Vai ser tarde demais!

Então ele ouviu o capitão gritar:

—Vamos ter que tentar lnaçar o bote!

A névoa se dissipou novamente e eles conseguiram lançar o bote ao mar como por milagre. Lutaram para ultrapassar as montanhas cruéis de água escura.

Uma lanterna brilhava como um olho vermelho no convés do navio. O bote salva-vidas subiu com dificuldade o lado íngreme e vítreo de uma onda. Então David pensou ter ouvido seu nome, “David!” e então novamente, “David!”. Depois veio uma sensação familiar de frio, como se um vento soprasse na raiz de seus cabelos. Continuou a lutar obstinadamente com a fúria cruel das ondas, tentando alcançar o olho vermelho da lanterna. Um turbilhão de vento separou a névoa e ele pensou ter visto no convés do navio cambaleante a figura assustada de uma moça vestida de preto.

O terror apoderou-se dele. Era a pequena figura curvada que ele conhecia tão bem, assustada e solitária, mas não mais assustada e não mais solitária do que ele a tinha visto no abrigo. Ela estava ali, de pé, com seu ar confuso, como se esperasse o próximo movimento do destino, como se esperasse, perdida, que mais um desastre se abatesse sobre ela. Em seus braços, ela segurava uma garotinha.

Com um bebê nos braços, ela seria a primeira a embarcar no bote salva-vidas. Eles se aproximaram da lateral do navio, segurando-se com dificuldade enquanto o bote subia e descia ao sabor das ondas ávidas. A moça entregou a criança para David, e seus lábios formaram palavras impossíveis de ouvir em meio a tempestade. Ele podia ver seu rosto claramente, iluminado pela lanterna, viu em seus olhos assustados uma expressão intensa e feliz de que ela o tinha reconhecido. Então, a ordem foi dada para que ela para pulasse. Ela saltou mas não conseguiu cair no bote, e a água fechou sobre sua cabeça. David teve apenas um vislumbre de seu rosto branco enquanto ela era puxada pelo mar revolto — e em um átimo mergulhou atrás dela. Ele conseguiu segurá-la em seus braços; então a escuridão o envolveu enquanto ele lutava para voltar ao bote salva-vidas.

A hora seguinte não existiu para David. Ele manteve a consciência, mas foi só isso. Não conseguia se lembrar de como chegaram na praia. Tinha apenas uma vaga lembrança de uma figura desmaiada no fundo do barco, de seu próprio cansaço e da voz de uma criança em meio à tempestade.

Sua próxima memória foi a estação salva-vidas. A moça jazia menos solitária agora do que lhe parecera quando ele a vira pela primeira vez sentada com a cabeça baixa, na imensidão sufocante da névoa. Homens e mulheres agruparam-se em torno dela piedosamente. Eram todos estrangeiros; alguns falavam inglês. O navio naufragado navegava faziam vinte dias, vindo de Fayal.

Uma das mulheres conversava com o capitão da estação:

—Ela sempre se preocupava com a bebê. Costumava sentar e olhar para o mar, como se se perguntasse o que aconteceria com ela. Parecia até que ela sabia…

—Ela tem algum parente?— o capitão perguntou. —Alguém sabe algo sobre ela?

—Ela não tinha ninguém. O marido morreu. Ela estava vindo para cá para se encontrar com o irmão, mas pouco antes de partir, ela soube que ele também tinha morrido. Então, como não sabia o que fazer ela veio mesmo assim.

Fez-se silêncio. Então outra mulher perguntou:

—O que será da criança?

David tinha ficado lá ouvindo tudo como algo distante, e então de repente o significado incrível de tudo o invadiu. Ele avançou e pegou o bebê no colo.

—Ela é minha. — disse. A menina se agarrou a David e aproximou seu rosto do dele, como se o conhecesse. —Vou levá-la para Mary Angus.

Você pode dizer que essas coisas não acontecem. Mas há lendas mais estranhas do que as que vêm do Cemitério do Atlântico; e se você não acredita, pode ir à estação Gurnet Reef e lá eles vão lhe contar, e você poderá conhecer Assunta Flores, a menina de olhos estrangeiros e cabelo escuro, e poderá conhecer Mary Angus, que Assunta chama de mãe. E então, se for até o velho abrigo seguindo pela trilha das carroças e escalar a duna, encontrará roseiras que na estação certa dão flores estranhas e exóticas. Você pode ir, se quiser, e ver no farol de Spinet Rock a mesma flor, que a mãe de Mary plantou na areia e que floresceu.

Então, se quiser, pode dizer que foi tudo coincidência — que foi só uma garota solitária que saiu de uma das casas de veraneio para conversar com David nas dunas e que foi ela quem trouxe as rosas para ele. Mas se você não conhece a costa, sua explicação não fará sentido, e logo você perceberá que a razão humana é insignificante diante da grandeza da criação.

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