Este conto foi escrito originalmente em 1894, e publicado no ano seguinte na revista National Review. Depois foi incluído na primeira coletânea de histórias de fantasma de M.R. James “Ghost Stories of an Antiquary”, em 1904.
…
St. Bertrand de Comminges é uma cidadezinha decrépita localizada no sopé dos Pireneus, não muito longe de Toulouse, e bem perto de Bagnères-de-Luchon. A cidade fora um bispado até a época da Revolução e tem uma catedral que recebe um bom número de turistas.
Na primavera de 1883, um inglês chegou a esse pedaço do Velho Mundo – que eu mal poderia dignificar com o nome de cidade, pois não chega a ter sequer mil habitantes. Era um aluno de Cambridge, que viera especialmente de Toulouse para ver a Igreja de St. Bertrand, deixando seus dois amigos, bem menos interessados em arqueologia do que ele, no hotel, com a promessa de que se juntariam a ele na manhã seguinte. Eles ficariam satisfeitos com uma visita de meia hora à igreja e depois os três poderiam seguir sua jornada na direção de Auch. Mas nosso inglês tinha chegado cedo no dia em questão, decidido a preencher seu caderno e usar várias dezenas de páginas no processo de descrever e documentar todos os cantos daquela maravilhosa igreja que dominava pequena colina de Comminges.
Para realizar esse projeto de forma satisfatória, foi necessário monopolizar o zelador da igreja por um dia. A dona da estalagem do Chapeau Rouge, uma senhora um tanto brusca, mandou chamar o zelador ou sacristão (prefiro a segunda denominação, por mais imprecisa que seja); e quando ele chegou, o inglês percebeu que o homem era um objeto de estudo surpreendentemente interessante. Não era a aparência pessoal do velhinho seco e enrugado que o interessava, pois o homem se parecia com dezenas de outros guardiões de igreja por toda a França, mas sim, seu curioso ar furtivo, ou melhor, seu ar de quem se sentia caçado e perseguido. Ele parecia estar sempre olhando ligeiramente para trás; os músculos das costas e dos ombros curvados em uma contração nervosa contínua, como se esperasse cair nas garras de um inimigo a qualquer momento. O inglês não sabia ao certo com o que ele se parecia mais, se com um homem assombrado por uma ilusão persistente, oprimido por uma consciência culpada ou apenas um marido terrivelmente dominado pela mulher. As probabilidades, quando calculadas, certamente apontavam para a última teoria; mas, ainda assim, a impressão que ele passava era de seu perseguidor era muito mais assustador que uma esposa rabugenta.
No entanto, o inglês (vamos chamá-lo de Dennistoun) logo ficou absorto em seu caderno e ocupado demais com sua câmera para dar muita atenção ao sacristão. Sempre que ele olhava para o sujeito, o encontrava a uma grande distância, encolhido contra alguma parede ou escondido atrás de algum dos belos bancos da igreja. Depois de algum tempo, Dennistoun foi ficando inquieto. A suspeita de que estava atrapalhando o déjeuner do velho, assim como a sensação de que o sacristão parecia convencido de que ele roubaria o báculo de São Bertrand ou o empoeirado crocodilo que adornava a pia batismal, começavam a incomodá-lo.
— Por quê o senhor não vai para casa?—ele disse, finalmente— Posso terminar minhas anotações sozinho; pode até me trancar aqui dentro se quiser. Vou precisar de pelo menos mais duas horas, e o senhor deve estar sentindo frio, não?
— Deus do céu!—disse o homenzinho, como se a sugestão o enchesse de um terror incalculável, — Não posso nem pensar em fazer uma coisa dessas. Deixar monsieur sozinho na igreja? Não, não, não, não. duas horas, três horas, não faz diferença. Já tomei meu café da manhã, e não estou com frio nenhum, mas lhe agradeço muito, monsieur.
“Muito bem, homenzinho,” pensou Dennistoun consigo mesmo “foi avisado, então não reclame.”
Antes do fim daquelas duas horas, os bancos, o enorme orgão em ruínas, a tela de proteção da área do coral do Bispo Jean de Mauléon, os vidros e tapeçarias, os objetos na câmara do tesouro tinham sido todos muito bem examinados; e o sacristão continuava seguindo Dennistoun por todo canto. Por vezes ele se virava rápido como se algum bicho o tivesse mordido, sempre que ouvia algum barulho daqueles que reverberam em qualquer construção grande e vazia. Às vezes eram ruídos curiosos.
— Em certo momento, — Dennistoun me contaria depois— eu poderia jurar que ouvi uma voz fina e metálica rindo no alto da torre. Olhei para o sacristão em busca de uma resposta. Mas ele estava pálido até os lábios. “É ele, quer dizer, não, não, não é ninguém; a porta está trancada”, foi tudo o que ele me disse e nos entreolhamos por um minuto inteiro.
Outro pequeno incidente deixou Dennistoun bastante confuso. Ele estava examinando uma grande imagem escura que ficava atrás do altar, parte de uma série que ilustrava os milagres de São Bertrand. A composição da imagem era quase indecifrável, mas havia uma inscrição em latim abaixo dela, que dizia:
«Qualiter S. Bertrandus liberavit hominem quern diabolus diu volebat strangulare.» (Como St. Bertrand libertou um homem a quem o diabo tentou estrangular.)
Dennistoun sorriu e estava prestes a se voltar para o sacristão para fazer algum comentário brincalhão mas surpreendeu-se ao ver o velho ajoelhado, encarando a imagem com um olhar de suplicante agonia, as mãos postas, e uma chuva de lágrimas banhando seu rosto. Dennistoun, naturalmente, preferiu fazer de conta que não tinha notado nada, mas a pergunta em sua mente não calava: ‘Por que uma imagem dessas afetaria alguém tão intensamente?’ Ele começava a desconfiar do motivo daquela esquisitice que o intrigara o dia inteiro: o sacristão devia ser maníaco; mas qual seria a mania dele?
Eram quase cinco horas; o curto dia ia chegando ao fim, e a igreja começou a se encher de sombras, enquanto os ruídos curiosos —os passos abafados e as vozes distantes, perceptíveis durante todo o dia— pareciam, devido à luz fraca que apurava o sentido da audição, mais frequentes e insistentes.
O sacristão começou, pela primeira vez, a mostrar sinais de pressa e impaciência. Ele soltou um suspiro de alívio quando a câmera e os cadernos foram finalmente arrumados e guardados, e rapidamente levou Dennistoun para a saída do lado oeste da igreja, sob a torre.
Era hora de tocar o Angelus. Alguns puxões na corda relutante e o grande sino, Bertrande começou a cantar no alto da torrer, e projetou sua voz por entre os pinheiros, pelos vales, pelos rios nas montanhas, conclamando os moradores daquelas colinas solitárias a lembrar e repetir a saudação do anjo àquela a quem ele chamou de Bendita entre as mulheres. Com isso, um profundo silêncio pareceu cair sobre a cidadezinha pela primeira vez naquele dia. Dennistoun e o sacristão saíram da igreja. Na porta, começaram a conversar.
—Monsieur parecia interessado nos velhos livros do coral na sacristia.
—Sem dúvida. Eu ia mesmo perguntar se há uma biblioteca na cidade.
—Não, monsieur; talvez ainda houvesse aquela do Capítulo, mas agora encolhido muito.
Então ele fez uma estranha pausa, como se estivesse incerto mas, como quem dá um mergulho, continuou:
—Mas se monsieur é amateur des vieux livres, tenho algo em casa que pode lhe interessar. Não são nem cem metros de distância.
De repente, todos os sonhos acalentados por Dennistoun de encontrar manuscritos de valor inestimável em cantos inexplorados da França se manifestaram diante de seus olhos, só para morrerem em um segundo. Provavelmente se tratava um estúpido missal impresso por Plantin, por volta de 1580. Qual seria a a probabilidade de um lugar tão perto de Toulouse já não ter sido saqueado por colecionadores há muito tempo? No entanto, seria tolice não ir; ele nunca se perdoaria caso recusasse. Então partiram. No caminho, Dennistoun pensou na curiosa hesitação daquele homem, seguida de uma súbita determinação, e se perguntou, com vergonha, se não estaria sendo levado para algum lugar onde encontraria seu fim só porque parecia ser um inglês rico. Ele planejou, portanto, começar a conversar com seu guia e mencionar, de maneira um tanto desajeitada, o fato de que estava esperando que dois amigos se juntassem a ele bem cedo na manhã seguinte. Para sua surpresa, o anúncio pareceu aliviar o sacristão de uma vez da ansiedade que o oprimia.
—Que bom. —disse ele, bastante animado— Isso é muito bom. Monsieur viajará em companhia de seus amigos; eles estarão sempre perto. É bom viajar assim com companhia…às vezes.
A última observação pareceu ter lhe ocorrido de súbito, e com ela voltou a tristeza daquele pobre homem.
Logo estavam na casa dele, que era um pouco maior que as dos vizinhos, construída em pedra, com um brasão esculpido sobre a porta. O brasão de Alberic de Mauléon, descendente indireto, pelo que me contou Dennistoun, do bispo Jean de Mauléon. Este Alberic fora cônego de Comminges de 1680 a 1701. As janelas superiores da casa estavam cobertas com tábuas, e todo o local tinha, assim como o restante de Comminges, um aspecto de decrepitude.
Chegando à sua porta, o sacristão parou um momento.
—Talvez, —disse ele—talvez, afinal, monsieur não tenha tempo?
—De modo algum! Tenho muito tempo, nada para fazer até amanhã. Vamos ver o que tem aí.
Abriram a porta, e então um rosto olhou para fora, um rosto bem mais jovem que o do sacristão, mas com traços parecidos e o mesmo olhar angustiado: mas nela, aquela angústia não parecia tanto o medo pela própria segurança quanto uma preocupação aguda com o bem-estar de outrem. Claramente, o rosto pertencia à filha do sacristão que, exceto pela expressão angustiada que acabo de descrever, era uma garota até bem bonita. Ela se alegrou bastante ao ver o pai acompanhado por um estranho em boa forma. Pai e filha trocaram algumas palavras, das quais Dennistoim apenas só entendeu estas, ditas pelo sacristão: “Ele estava rindo na igreja”, que a garota respondeu com uma expressão aterrorizada.
Logo, estavam os três na sala de estar, uma pequena câmara de pé direito alto e chão de pedra, cheia de sombras projetadas pelo fogo a lenha que tremeluzia em uma grande lareira. Um enorme crucifixo que chegava quase até o teto dava ao aposento um ar de oratório; a figura que pendia dele fora pintada com cores naturais, e a cruz de negro. Abaixo do crucifixo, havia um baú velho e sólido.
Quando os candeeiros foram acesos e as cadeiras arrumadas, o sacristão se dirigiu ao baú e, cada vez mais nervoso e eufórico, tirou dele um livro grande, como Dennistoun o imaginara, envolvido em um pano branco, no qual havia uma cruz toscamente bordada com linha vermelha. Antes mesmo que o livro fosse desembrulhado, Dennistoun ficou muito interessado em seu tamanho e forma. “É muito grande para ser um missal” pensou consigo “nem tem a forma de uma antífona; talvez seja um bom achado no fim das contas.” O livro foi logo aberto e Dennistoun sentiu que finalmente encontrara algo verdadeiramente interessante. Diante dele havia um grande fólio, encadernado, talvez, no final do século XVII, com o brasão do cônego Alberic de Mauléon gravado nas laterais. O livro devia ter umas cento e cinquenta folhas, e em quase todas elas estavam presas páginas de um manuscrito iluminado. Dennistou não sonharia com uma coleção daquelas nem em seus momentos mais delirantes. Ali estavam cerca de dez páginas de uma cópia do Gênesis, com iluminuras que não deviam ser posteriores a 700 d.C. Mais adiante, havia um conjunto completo de ilustrações de um saltério, de execução inglesa, da melhor qualidade que o século XIII já produzira; e, talvez o melhor de tudo, havia vinte folhas de escritos unciais em latim, os quais, julgando rapidamente pelas poucas palavras que conseguiu ler aqui e ali, deviam pertencer a um tratado patrístico desconhecido e muito antigo. Seria possível que fosse um fragmento da cópia de Papias de “Nas palavras de Nosso Senhor” cuja existência era conhecida desde pelo menos o século XII, na cidade de Nimes? ‘[1] Em todo o caso, ele estava decidido: aquele livro tinha que ir para Cambridge com ele, nem que tivesse que esvaziar sua conta no banco e ficar em St. Bertrand até o dinheiro fosse enviado. Olhou de relance para o sacristão, tentando ler em sua expressão qualquer indício de que o livro estava à venda. O sacristão estava pálido, mas sua boca ainda funcionava.
—Se monsieur olhar na última página—ele disse
Então monsieur olhou, encontrando novos tesouros a cada página que virava. No final do livro, achou duas folhas de papel, de data muito mais recente do que as outras partes do livro, o que o deixou intrigado. Imaginou que deveriam ser da época do cênone Alberic, aquele homem sem princípios que, sem dúvida, tinha saqueado a biblioteca capitular de St. Bertrand para fazer seu livro de recortes de valor inestimável. Na primeira das folhas havia uma planta, cuidadosamente desenhada, instantaneamente reconhecível para qualquer um que conhecesse o terreno, da ala sul e dos claustros de St. Bertrand. Nela, havia desenhos curiosos que pareciam símbolos planetários, e algumas palavras em hebraico nos cantos; e no ângulo noroeste do claustro havia uma cruz desenhada com tinta dourada. Abaixo da planta, havia algumas linhas escritas em latim, que diziam:
‘Responsa 12mi dez. 1694. Interrogatum est: Inveniamne? Respousum est: Invenies. Fiamne dives? Fies. Vivairine invidendus? Vives. Moriarne em lecto meo? Ita.’
(Respostas de 12 de dezembro de 1694. Foi perguntado: O encontrarei? Resposta: Encontrarás. Serei rico? Serás. Serei invejado? Serás. Morrerei na minha cama? Morrerás.)
—Um bom exemplar para o arquivo de um caçador de tesouros. Me lembra até o Sr. cônego menor Quatremain em “Old St. Paul’s” — comentou Dennistoun, antes de virar folha.*
O que ele viu o impressionou, como me relatou muitas vezes, mais do que ele poderia ter imaginado que qualquer desenho ou figura seria capaz de impressioná-lo. E, embora o desenho que ele viu não exista mais, há uma fotografia dele (que possuo) que confirma em gênero, número e grau sua afirmação. A figura em questão era um desenho em sépia do final do século XVII, representando o que parecia, à primeira vista, uma cena bíblica; pela a arquitetura (a imagem representava um interior) e porque as figuras tinham aquele sabor semi-clássico que os artistas de duzentos anos atrás consideravam apropriado para as ilustrações da Bíblia. À direita havia um rei em seu trono, o trono estava elevado sobre doze degraus, com um dossel acima e soldados postados de ambos os lados – era claramente o rei Salomão. Ele estava inclinado para a frente com o cetro estendido, em atitude de comando; seu rosto expressava horror e repulsa, mas também havia nele a marca de comando imperioso e de poder confiante.
A metade esquerda da imagem, porém, era mais estranha. E o foco da imagem estava claramente naquela parte. Diante do trono, estavam agrupados quatro soldados ao redor de uma figura agachada que logo descreverei. Um quinto soldado estava morto no chão, com o pescoço torcido e os olhos saindo das órbitas. Os quatro guardas ao redor estavam olhando para o rei. Em seus rostos, o sentimento de horror era intenso; parecia que de fato a única coisa que os impedia de sair correndo era a confiança implícita em seu soberano. Todo esse terror era claramente provocado pela figura agachada em meio a eles. Não tenho esperança alguma de conseguir transmitir através de palavras a impressão que essa figura causa a quem a olha. Lembro-me de uma vez em que mostrei a fotografia do desenho para um professor de morfologia — uma pessoa que, eu diria, era extraordinariamente equilibrada e sem qualquer hábito de imaginar coisas. Ele se recusou absolutamente a ficar sozinho pelo resto da noite e depois me confessou que, por muitas noites depois daquela, não ousara apagar a luz antes de dormir. No entanto, posso ao menos indicar as principais características da figura. A princípio, só se vê uma massa de cabelos pretos emaranhados; só então se percebe que eles cobrem um corpo de espantosa magreza, quase um esqueleto, mas com músculos destacados que parecem cordas. As mãos eram de uma palidez sombria, cobertas, assim como o corpo, com pêlos compridos e ásperos e tinham garras horrendas. Os olhos tinham um toque de um amarelo ardente, com pupilas intensamente negras e olhavam fixamente para o rei em seu trono com um um ódio animalesco. Imagine uma daquelas horríveis aranhas caçadoras de pássaros da América do Sul traduzidas para a forma humana e dotadas de inteligência não tão refinada quanto a de um ser humano, e terá uma vaga ideia do terror que aquela terrível efígie inspirava. Uma observação é universalmente feita por todos aqueles a quem eu mostrei a figura: “Foi desenhada com um modelo vivo.”
Assim que se recuperou do choque inicial e do inevitável susto, Dennistoun lançou um olhar para seus anfitriões. As mãos do sacristão cobriam seus olhos; sua filha, olhava para a cruz na parede, passando as contas de um rosário febrilmente pelos dedos.
Por fim, a pergunta foi feita:
—Este livro está à venda?
Percebeu aquela mesma hesitação, seguida pelo mesmo mergulho de determinação, que havia notado antes, e então veio a resposta bem-vinda:
—Se monsieur quiser.
—Quanto você quer por ele?
—Aceito duzentos e cinquenta francos.
Aquilo era absurdo. Às vezes, até a consciência de um colecionador tem escrúpulos, e a consciência de Dennistoun era mais sensível do que a de um colecionador.
—Meu bom homem!— ele repetiu várias vezes —Seu livro vale muito mais que duzentos e cinquenta francos, eu lhe asseguro, muito mais!
Mas a resposta não mudou: “Aceito duzentos e cinquenta francos, nada mais.”
Realmente não havia possibilidade de recusar tal chance. O dinheiro foi pago, o recibo assinado, uma taça de vinho selou a transação e então, o sacristão pareceu se tornar um novo homem. Ele se emperdigou e parou de lançar aqueles olhares desconfiados para trás, até riu ou tentou rir. Dennistoun se levantou para ir embora.
—Terei a honra de acompanhar monsieur ao seu hotel? —perguntou o sacristão.
—Oh, não, obrigado! Não é nem um quilômetro. Conheço o caminho perfeitamente bem e é noite de lua.
A oferta foi repetida três ou quatro vezes e a cada vez foi recusada
—Então, monsieur me chamará se …se for preciso. Vá pelo meio da estrada, os lados são muito difíceis.
—Certamente, certamente— disse Dennistoun, já impaciente para examinar seu achado sozinho, então, saiu com o livro debaixo do braço.
A filha do sacristão saiu para ir ao seu encontro. Ela parecia ansiosa por fazer um pequeno negócio por conta própria; talvez, como Geazi, “tirar um pouco mais” do estrangeiro que seu pai havia poupado.
—Um crucifixo de prata e corrente para o pescoço; monsieur teria a gentileza de aceitá-lo?
Bem, de fato, Dennistoun não tinha muita utilidade para essas coisas.
—Quanto mademoiselle quer por ele?
—Nada, nada no mundo. Monsieur pode levá-lo.
O tom de sua palavras era inconfundivelmente genuíno, de modo que Dennistoun apenas agradeceu profusamente e deixou que ela colocasse a corrente em seu pescoço. Mais parecia que ele prestara ao pai e à filha algum favor que eles nem sabiam como retribuir. Quando ele saiu com seu livro, os dois estavam na porta velando por ele, e ainda estavam ali olhando quando ele acenou um último boa noite dos degraus do Chapeau Rouge.
Quando o jantar terminou, Dennistoun foi para seu quarto e se trancou ali, sozinho com sua nova aquisição. A proprietária manifestou um interesse peculiar por ele desde que lhe dissera que havia visitado o sacristão e comprado dele um livro antigo. Ele também pensou ter ouvido uma conversa apressada entre ela e o próprio sacristão na passagem do lado de fora da salle à manger; algumas palavras no sentido de que “Pierre e Bertrand estariam em casa” encerraram o diálogo.
Naquele momento, uma crescente sensação de desconforto começou a tomar conta dele — uma reação nervosa, talvez, depois do prazer de sua descoberta. O que quer que fosse, acabou resultando na convicção de que havia alguém atrás dele. Se sentiu muito mais à vontade com as costas voltadas para a parede. Tudo isso, claro, pesava leve na balança contra o valor óbvio da coleção que adquirira. E agora, como eu disse, ele estava sozinho em seu quarto, fazendo um balanço dos tesouros do cônego Alberic, nos quais cada momento revelava algo mais encantador.
—Que Deus abençoe o cônego Alberic!— disse Dennistoun, que tinha o hábito inveterado de falar sozinho.—Pergunto-me onde estará agora. Meu Deus! Eu gostaria que a proprietária aprendesse a rir de uma maneira mais alegre; essa risada faz com que se sinta como se houvesse alguém morto na casa. Meio cachimbo a mais, você disse? Creio que têm razão. Eu me pergunto o que é esse crucifixo que a mocinha insistiu em me dar? É do século passado, suponho. Sim, provavelmente. É um incômodo ter algo em volta do pescoço, é muito pesado. Provavelmente, o pai dela o usa há anos. Acho vou fazer uma limpeza nele antes de guardar.
Ele tirou o crucifixo e o colocou sobre a mesa, quando sua atenção foi atraída por um objeto jogado sobre um pano vermelho, bem ao lado de seu cotovelo esquerdo. Duas ou três ideias do que poderia ser esvoaçaram em seu cérebro com uma rapidez incalculável.
-Um limpador de caneta? Não, não tem um desses na casa. Um rato? Não, preto demais. Uma aranha grande? Tomara que não. Bom Deus! Uma mão! Como a mão naquela imagem!
Em um lampejo de rapidez infinitesimal, ele compreendeu. A pele pálida e sombria, cobrindo nada além de ossos e tendões de força aterrorizante; pêlos pretos e grossos, mais compridos do que jamais se vira em uma mão humana; garras saindo das pontas dos dedos e curvando-se bruscamente para baixo e para frente, cinzentas, grossas e enrugadas.
Ele saltou da cadeira tomado por um terror mortal e inconcebível, levando as mãos ao coração. A forma, cuja mão esquerda repousava sobre a mesa, se levantou e ficou de pé atrás de seu assento, a mão direita torta sobre o couro cabeludo. Havia panos negros e esfarrapados envolvendo-a; pêlo grosso a cobria toda assim como no desenho. O maxilar inferior era fino – como posso dizer? – raso, como o de um animal; dentes apareciam atrás dos lábios pretos; não havia nariz; os olhos eram de um amarelo ardente, contra os quais as pupilas se mostravam negras e intensas, e o ódio e sede exultante de destruir a vida que brilhavam neles eram a característica mais horrível de toda a visão. Havia algum tipo de inteligência naqueles olhos —inteligência além da de um animal, mas abaixo da de um homem.
Aquele horror despertou em Dennistoun um medo físico intenso e um ódio mental profundo. O que ele fez? O que ele poderia fazer? Ele nunca soube ao certo o que disse exatamente, mas sabe que falou alguma coisa, que agarrou cegamente o crucifixo de prata, e percebeu que aquele demônio fez um movimento vindo em sua direção, gritando com uma voz que parecia o urro de animal padecendo de uma dor indizível.
Pierre e Bertrand, dois empregados robustos da estalagem, entraram correndo mas não viram nada, só sentiram alguma coisa empurrá-los ao passar por entre eles e encontraram Dennistoun desmaiado. Os dois passaram o resto da noite com ele. Seus amigos chegaram em St. Bertrand às nove horas da manhã seguinte. O próprio Dennistoun, embora ainda abalado e nervoso, já estava quase recuperado, e seus amigos só acreditaram em sua história depois de verem o desenho e conversarem com o sacristão.
Quase de madrugada, o sacristão tinha ido à estalagem com algum pretexto e ouvira com o mais profundo interesse a história contada pela proprietária. Ele não demonstrou surpresa alguma.
“É ele, é ele! Eu mesmo o vi”, foi seu único comentário; e a todos os questionamentos, apenas uma resposta era confirmada e reafirmada: “Deux fois je l’ai vu; mille fois je l’ai senti”. Ele não lhes disse nada sobre a procedência do livro, nem deu detalhes de suas experiências. “Dormirei em breve e meu descanso será doce. Por que me perturbam?” dizia ele [2]
Nunca saberemos o que o sacristão e o cônego Alberic sofreram. No verso daquele desenho fatídico havia algumas linhas que supostamente deveriam esclarecer a situação:
‘Contradictio Salomonis cum demonio nocturno.
Albericus de Mauleone delineavit.
V.Deus in adiutorium. Ps. Qui habitat.
Sancte Bertrande, demoniorum effugator, intercede pro me miserrimo.
Primmum uidi nocte 12mi Dec 1694: uidebo mox ultimum. Peccaui et passus sum, plura adhuc passurus. 29 de dezembro de 1701. ‘ [3]
Eu nunca entendi direito como Dennistoun encarava os eventos que acabo de narrar. Uma vez, ele me citou uma passagem do Eclesiástico: “”Há espíritos que foram criados para a vingança: aumentaram seus tormentos pelo seu furor” Em outra ocasião, ele me disse: “Isaías era um homem muito sensato; ele não diz algo sobre monstros noturnos que vivem nas ruínas da Babilônia? Agora, tais coisas estão muito além de nós”.
Outra confissão dele me impressionou bastante, e me fez sentir muito por ele. Fomos a Comminges no ano passado, para ver o túmulo do cônego Alberic. É uma enorme estrutura de mármore com uma efígie do cônego de batina e com uma grande peruca, e um elaborado elogio de seus estudos gravado na parte de baixo. Vi Dennistoun conversando por algum tempo com o vigário de St. Bertrand e, quando nos afastamos, ele me disse:
—Espero que não esteja errado: você sabe que sou presbiteriano, mas acho que será preciso “mandar rezar muitas missas e cantar muitas orações fúnebres” para o descanso de Alberic de Mauléon. — Em seguida, acrescentou, com um toque do sotaque dos britânicos do norte —Eu não fazia ideia de como essas missas saem caras.
O livro está na coleção Wentworth, em Cambridge. Dennistoun fotografou e queimou o desenho no mesmo dia em deixou Comminges depois daquela primeira visita.
Notas:
“Old St. Paul’s” é um romance em seis volumes de William Harrison Ainsworth, publicado serialmente em 1841, e que tem como pano de fundo a grande praga de Londres em 1665 e o grande incêndio de Londres em 1666. Um dos personagens é o um cônego menor da catedral de St.Paul, Thomas Quatremain que, em carta passagem do livro, procura por um tesouro embaixo da catedral. (Nota da tradutora)
Notas do autor:
- Sabemos agora que essas folhas continham um fragmento considerável desse trabalho, se não uma cópia genuína.
- Ele morreu naquele verão; sua filha se casou e estabeleceu-se em St. Papoul. Ela nunca entendeu as razões da “obsessão” de seu pai.
- i.e.,, A Disputa de Salomão com um demônio noturno.
Desenhado por Alberic de Mauléon.
Salmo, versículo ‘Apressa-te, Senhor, a ajudar-me! Aqui habita (xci.).
São Bertrand, que colocou os diabos em fuga, reza por mim muito infeliz.
Vi pela primeira vez na noite de 12 de dezembro de 1694: em breve verei pela última vez. Pequei e sofri, e ainda tenho mais que sofrer. 29 de dezembro de 1701.
A ‘Gallia Christiana’ indica a data da morte do cônego como 31 de dezembro de 1701, ‘na cama, de uma súbita convulsão’. Detalhes desse tipo não são comuns na grande obra dos Sammarthani.