“Lost Hearts”
O conto “Lost Hearts” foi apresentadoi ao público pela primeira vez em 1893, em uma reunião de uma sociedade literária em Cambridge na qual Henry James leu uma versão inicial do texto. Depois foi publicado em 1895 na revista Pall Mall Magazine. Em 1904 a história foi publicada novamente na famosa coletânea “Ghost Stories of an Antiquary”
Foi, até onde sei, em setembro do ano de 1811 que uma carruagem parou diante dos portões de Aswarby Hall, no coração de Lincolnshire. Um garoto, o único passageiro, saltou assim que o veículo parou, olhando tudo ao seu redor com muita curiosidade durante o curto intervalo de tempo que decorreu entre o toque da campainha e a abertura dos portões. O que ele viu foi viu uma mansão alta e quadrada de tijolos vermelhos, construída na época da rainha Anne; uma varanda tinha sido acrescentada mais tarde, com pilares de pedra no estilo clássico mais puro de 1790, as janelas da casa eram numerosas, altas e estreitas, com vidraças pequenas e madeirame espesso, pintado de branco. Um frontão, perfurado por uma janela redonda, coroava a fachada. Havia alas à direita e à esquerda, conectadas ao edifício central por curiosas galerias envidraçadas, sustentadas por colunatas. Essas alas continham os estábulos e escritórios da casa. Cada uma delas era encimada por uma cúpula ornamental com um cata-vento dourado.
A luz do entardecer banhava o prédio, fazendo as vidraças brilharem tal qual numerosas fogueiras. Em frente à mansão, se estendia um parque plano, repleto de carvalhos e cercado de abetos, que se destacavam contra o céu. O relógio na torre da igreja, escondido por trás das árvores no limite do parque de modo que só se podia ver sua veleta dourada refletindo a luz do sol, marcava seis horas e seu som veio suavemente carregado pelo vento. Para o garoto, parado no portão esperando que alguém abrisse, a atmosfera pareceu agradável, embora tingida com um tipo de melancolia apropriada para um fim de tarde de início do outono,
Ele acabara de chegar de Warwickshire e ficara órfão seis meses antes. Agora, graças à oferta generosa e inesperada de seu primo idoso, o Sr. Abney, ele tinha vindo morar em Aswarby. A oferta fora inesperada porque todos que conheciam o Sr. Abney o consideravam um recluso um tanto quanto austero, que tinha uma casa era bem regrada onde a presença de um garotinho seria uma um elemento novo e, poderia-se julgar, incômodo. A verdade é que muito pouco se sabia sobre as atividades ou o temperamento de Abney. Um professor de grego de Cambridge disse uma vez que ninguém conhecia melhor as crenças religiosas dos pagãos da antiguidade tardia do que o dono de Aswarby Hall. De fato, sua biblioteca continha todos os livros então disponíveis sobre os Mistérios, os Poemas Órficos, a Adoração de Mitras e os Neoplatônicos. Em sua mansão com piso de mármore, havia um belo grupo de estátuas representando Mitras matando um touro, que fora importado a grande custo do Oriente Médio. Ele contribuíra com uma descrição da peça para a Gentleman’s Magazine, e havia escrito também uma notável série de artigos para o Critical Museum, a respeito das superstições dos romanos do Império Tardio. Abney era visto, em boa medida, como um homem dedicado a seus livros, e foi uma grande surpresa para os vizinhos que ele sequer tivesse ouvido falar de seu primo órfão, Stephen Elliott, e mais ainda que se oferecesse para acolhê-lo em Aswarby Hall.
O que quer que os os vizinhos pensassem, a verdade é que o Sr. Abney, o alto, magro e austero Sr. Abney, parecia disposto a dar uma recepção calorosa ao jovem primo. No momento em que a porta da frente foi aberta, ele saiu de seu escritório, esfregando as mãos de contentamento.
— Como vai, meu garoto? Como vai? Quantos anos você tem? — disse ele — Não está muito cansado da viagem para fazer um lanche, espero?
—Não, obrigado, senhor,— disse o jovem Elliott— Estou muito bem.
— Que bom rapaz.— disse o Sr. Abney. — E quantos anos você tem, meu garoto?
Pareceu um pouco estranho que ele fizesse a mesma pergunta duas vezes nos primeiros dois minutos em que se conheciam.
— Completo doze no meu próximo aniversário, senhor. — disse Stephen.
— E quando é seu aniversário, meu querido garoto? 11 de setembro, não é? Muito bem, muito bem. Daqui a quase um ano, não é? Eu gosto — ha, ha! — eu gosto de anotar essas coisas no meu livro. Tem certeza que são doze? Certeza mesmo?
—Sim, certeza absoluta, senhor.
—Muito bem, muito bem. Leve-o para o quarto da Sra. Bunch, Parkes, e deixe-o tomar um chá, ou jantar, seja o que for.
—Sim, senhor.— respondeu o sério Sr. Parkes; e conduziu Stephen pelo andar de baixo.
A Sra. Bunch foi a pessoa mais agradável e gentil que Stephen conheceu em Aswarby. Ela o fez sentir-se completamente em casa; os dois ficaram amigos em menos de um quarto de hora e grandes amigos continuaram a ser. A Sra. Bunch havia nascido naquela mesma vizinhança, cerca de cinquenta e cinco anos antes da chegada de Stephen, e há vinte residia na mansão. Consequentemente, se alguém conhecia bem os meandros da casa e do distrito, esse alguém era a Sra. Bunch; e ela não se fazia de rogada em compartilhar seus conhecimentos.
Certamente, havia muitas coisas sobre o a mansão e seus jardins que Stephen, aventureiro e questionador, estava ansioso para saber. Quem construiu o templo no final da alameda dos loureiros? Quem era o velho cujo retrato estava pendurado na escada, sentado à mesa, com uma caveira na mão? Essas e muitas outras perguntas semelhantes foram respondidas graças ao recursos do poderoso intelecto da Sra. Bunch. Havia outras perguntas, no entanto, cujas explicações fornecidas por ela eram menos satisfatórias.
Numa noite de novembro, Stephen estava sentado ao lado da lareira no quarto da governanta, refletindo sobre o lugar.
—O Sr. Abney é um bom homem? Ele vai para o céu? — ele perguntou de repente, com a confiança peculiar que as crianças possuem na capacidade dos mais velhos de resolver questões cuja decisão deveria ser reservada a outros tribunais.
—Bom? Deus te abençoe, criança!— disse a Sra. Bunch. —O patrão é a alma mais bondosa que conheço! Eu nunca lhe contei sobre o garotinho que ele tirou da rua, faz mais ou menos uns sete anos? E a garotinha, que chegou dois anos depois que eu vim trabalhar aqui?
—Não. Conte-me tudo, Sra. Bunch!
— Bem, — disse a Sra. Bunch — da menininha eu não me lembro muito. Eu sei que o mestre a trouxe com ele um dia quando voltou de sua caminhada e mandou que Sra. Ellis, que era a governanta na época, cuidasse bem dela. A pobre criança não tinha ninguém — ela mesma me disse — e morou aqui conosco por umas três semanas. Mas não sei se ela tinha sangue de cigano ou não, só sei que uma manhã ela saiu da cama antes que qualquer um de nós tivesse aberto um olho e desde então não vi mais sinal nem rastro dela. O mestre ficou tão desgostoso que mandou até drenar os lagos; mas eu acho que ela foi levada pelos ciganos, pois nós ouvimos a cantoria deles aí fora por mais de uma hora na noite em que ela se foi, e Parkes disse que os ouviu berrando na floresta naquela tarde. Uma pena! Que criança estranha que ela era, tão quietinha, mas eu gostava muito dela, se comportava tão bem que era até de se admirar.
— E o garotinho? perguntou Stephen.
—Ah, aquele pobre garoto!— suspirou a Sra. Bunch. — Ele era estrangeiro, disse que se chamava Jevanny, e apareceu por aqui tocando uma rabeca junto da estrada, num dia de inverno. O patrão o trouxe para casa, perguntou de onde ele era, quantos anos eles tinha, como ele tinha chegado aqui, onde estava a família dele, com toda a paciência do mundo. Mas foi o tudo do mesmo jeito com ele. São uns rebeldes esses estrangeiros, acho eu. Uma bela manhã, o garoto tinha sumido igual à menina. Por um ano ficamos nos perguntando para onde ele teria ido que nem levou a rabeca; ela ainda está ali na prateleira.
Stephen passou o resto da tarde fazendo as mais variadas perguntas para a Sra. Bunch, e tentando extrair algumas notas da rabeca.
Naquela noite, ele teve um sonho estranho. No final do corredor do andar mais alto da casa, onde ficava seu quarto, havia um banheiro velho que ninguém usava mais. Ficava sempre trancado, mas a porta tinha meio painel de vidro, e como as cortinas de musselina que costumavam cobri-lo já não estavam mais lá, era possível olhar lá dentro e ver uma banheira com revestimento de chumbo fixada na parede direita, com a cabeceira voltada para a janela.
Na noite a que me refiro, Stephen Elliott estava olhando, ou pensava estar olhando, através do vidro da porta. O brilho da lua entrava pela janela e ele pôde ver uma figura que jazia na banheira. Sua descrição do que testemunhou me lembrou muito o que eu mesmo vi nas famosas criptas da igreja de St. Michan, em Dublin, que possuem a macabra propriedade de conservar cadáveres protegidos da putrefação por séculos. Uma figura inexprimivelmente magra e miserável, de uma cor de chumbo empoeirado, envolvida numa roupa parecida com uma mortalha, os lábios finos estavam curvados em um sorriso fraco e apavorante, e as mãos pressionadas firmemente sobre o coração.
Quando Stephen olhou para ela, um gemido distante, quase inaudível, pareceu sair de seus lábios, e os braços começaram a se mexer. O terror daquela visão o forçou a retroceder e ele acordou, e só então se apercebeu do fato de que estava de pé no meio do corredor de tábuas frias, completamente iluminado pela luz da lua. Com uma coragem que eu não acredito ser comum entre os meninos de sua idade, Stephen foi até a porta do banheiro para verificar se a figura de seu sonho estava realmente lá. Mas não estava, então ele voltou para a cama.
Na manhã seguinte, a Sra. Bunch ficou muito impressionada com o que ele lhe contou, e chegou até a repor as cortinas de musselina da porta envidraçada do banheiro. Ele também contou tudo para o Sr. Abney na hora do café da manhã, e ele ficou muito interessado, até tomou nota de tudo no que ele chamava de “seu livro”.
O equinócio da primavera estava se aproximando, como o Sr. Abney frequentemente lembrava ao primo, acrescentando que aquele sempre foi considerado pelos antigos um momento crítico para os jovens e que Stephen faria bem em tomar cuidado e fechar a janela do quarto à noite; disse também que Censorino tinha algumas observações valiosas sobre o assunto. Dois incidentes ocorridos nessa época impressionaram a mente de Stephen.
O primeiro foi depois de passar uma noite particularmente desconfortável e angustiada — embora não conseguisse se lembrar de ter tido nenhum sonho em particular.
Na noite seguinte, a Sra. Bunch estava ocupada consertando seus pijamas.
— Meu Deus, mestre Stephen! — ela irrompeu irritada: — Como conseguiu rasgar seu pijama desse jeito? Olhe aqui, o trabalho que o senhor dá aos pobres empregados que têm que consertar seus malfeitos!
Realmente, havia uma série de grandes rasgos e marcas na peça de roupa, que só muita habilidade com a agulha conseguiria consertar. O estrago estava todo do lado esquerdo do peito— marcas compridas e paralelas com cerca de 15 centimetros cada um, sendo que algumas não tinham chegado a rasgar o tecido. Stephen só podia expressar sua ignorância sobre a origem delas: tinha certeza de que não estavam lá na noite anterior.
—Mas,— ele disse —Sra. Bunch, eles são exatamente iguais aos arranhões do lado de fora da porta do meu quarto; e tenho certeza de que não tive nada a ver com aqueles.
A Sra. Bunch olhou para ele de boca aberta, depois pegou uma vela, saiu apressada do quarto. Ele pôde ouvi-la subindo as escadas. Em alguns minutos, ela desceu.
—Bem, — disse ela, —Mestre Stephen, é muito engraçado que aqueles arranhões possam ter chegado lá — muito alto para qualquer gato ou cachorro ter feito, muito menos um rato: parecem marcas das unhas grandes de um chinês, como meu tio que trabalhava no comércio de chá costumava nos contar quando éramos meninas. Eu não diria nada para o patrão, se fosse o senhor, mestre Stephen, querido, só lembre de trancar a porta quando for para a cama.
— Eu sempre tranco, Sra. Bunch, assim que faço minhas orações.
— Ah, que bom menino: sempre faça suas orações e ninguém poderá machucá-lo.
Com isso, a Sra. Bunch se dedicou a consertar o pijama rasgado, parando às vezes para cair em meditação, até a hora de dormir. Isso foi numa uma sexta à noite, em março de 1812.
Na noite seguinte, a costumeira dupla formada por Stephen e pela Sra. Bunch virou um trio com a súbita chegada do Sr. Parkes, o mordomo, que, em geral, se mantinha isolado, na copa. Ele parecia agitado e estava com uma dificuldade de falar que não era de seu feitio. Nem sequer percebera a presença de Stephen no quarto.
—Por uma noite, o patrão pode ir pegar seu próprio vinho, se quiser— ele disse assim que entrou — Ou eu vou durante o dia, ou não vou, Sra. Bunch! Não sei o que pode ser: pode muito bem ser ratos, ou o vento entrando nos porões; mas não sou mais tão jovem como era e não posso continuar mais com isso.
— Bem, Sr. Parkes, o senhor sabe muito bem que seria uma surpresa encontrar ratos na mansão.
— Não estou negando isso, Sra. Bunch. Com certeza, muitas vezes ouvi aquela história dos homens nos estaleiros sobre o rato que podia falar. Eu nunca acreditei nisso antes; mas esta noite, se eu tivesse me rebaixado ao ponto de encostar o ouvido na porta do compartimento da adega, juro que poderia ter ouvido o que eles estavam conversando.
— Ah, Sr. Parkes, não tenho paciência para suas fantasias! Ratos conversando na adega!
— Bem, Sra. Bunch, não quero discutir: tudo o que digo é que, se for até o compartimento mais para o fim da adega e encostar o ouvido na porta, poderá comprovar minhas palavras agora mesmo.
— Que bobagem está dizendo, Sr. Parkes. Não é adequado para as crianças ouvirem! Vai acabar deixando o patrãozinho Stephen apavorado.
—O quê?! Mestre Stephen?— disse Parkes, finalmente percebendo a presença do garoto. — O mestre Stephen sabe muito bem quando estou brincando com a senhora, Sra. Bunch.
De fato, o mestre Stephen sabia tão bem, que tinha certeza que as palavras dele não tinha sido brincadeira alguma. E agora estava interessado na história, ainda que não a achasse de todo divertida: mas todas as suas perguntas não tiraram do mordomo mais nenhum detalhe sobre suas experiências na adega.
Chegamos agora a 24 de março de 1812. Foi um dia de eventos estranhos para Stephen, um dia barulhento: ventava tanto que a casa e os jardins pareciam tomados por uma sensação de inquietude. Quando Stephen parou junto à cerca que limitava o terreno, e olhou para o parque, sentiu como se uma procissão interminável de pessoas invisíveis passasse por ele levadas pelo vento, carregadas sem resistência e sem rumo, se esforçando em vão para parar, para alcançar algo que pudesse impedir sua fuga e colocá-las novamente em contato com o mundo dos vivos do qual um dia haviam sido parte. Depois do almoço daquele dia, o Sr. Abney disse:
— Stephen, meu garoto, você acha que poderia me procurar hoje à noite, às onze horas, no meu escritório? Estarei ocupado até tarde, mas desejo lhe mostrar algo que tem a ver com o seu futuro, e que é muito importante que você saiba. Não mencione esse assunto à Sra. Bunch nem a mais ninguém na casa; é melhor ir para o seu quarto no horário habitual.
Stephen ganhou uma nova aventura: se agarrou ansiosamente à oportunidade de ficar acordado até as onze horas. À caminho do andar de cima, naquela noite, espiou pela porta da biblioteca no caminho e viu que o braseiro que já tinha visto muitas vezes no canto da sala, estava agora diante da lareira; sobre a mesa havia uma antiga taça de prata, cheia de vinho tinto, e algumas folhas de papel estavam colocadas perto dela. O Sr. Abney estava tirando incenso de uma caixa redonda e prateada e colocando-o no braseiro quando Stephen passou, e não pareceu notá-lo.
O vento abrandara, a noite estava calma e a lua cheia. Por volta das dez horas, Stephen estava parado junto à janela aberta do quarto, olhando o campo. Mesmo em uma noite tão tranquila, a misteriosa população de criaturas dos bosques não parecia inclinada a descansar. Aqui e ali soavam gritos estranhos, que pareciam vir de andarilhos sem rumo e desesperados, perdidos além dos limites da propriedade. Podiam ser corujas ou pássaros aquáticos, mas os sons não eram exatamente iguais aos deles. E estavam chegando mais perto? Agora eles pareciam vir do lado do lago que ficava mais próximo da casa e, em alguns momentos, os sons pareciam flutuar por entre os arbustos.
Então silenciaram. Mas quando Stephen fez menção de fechar a janela para voltar à sua leitura de ‘Robinson Crusoé’, ele viu duas figuras de pé sobre o cascalho do terraço que circundava o jardim da mansão. Pareciam ser um menino e uma menina, lado a lado, olhando para cima, na direção das janelas. Alguma coisa no jeito da menina lembrava muito a figura da banheira, que Stephen vira em seu sonho. Mas o garoto foi quem lhe infundiu um medo mais agudo.
Enquanto a menina estava parada, meio sorridente, com as mãos cruzadas sobre o coração, o garoto, uma forma magra, com cabelos pretos e roupas esfarrapadas, ergueu os braços de uma maneira que sugeria ameaça, mas também fome e anseio implacáveis. A lua brilhava sobre suas mãos quase transparentes, e Stephen viu que as unhas eram assustadoramente longas e que a luz brilhava através delas. Com os braços levantados daquele jeito, o garoto apresentava um espetáculo apavorante. No lado esquerdo do peito dele havia uma ferida aberta e negra; e Stephen captou mais com a mente do que com os ouvidos um berro desolado e faminto como aqueles que acabara de ouvir vindos dos bosques de Aswarby. Em um átimo, a assustadora dupla se moveu rápida e silenciosamente sobre o cascalho seco, e ele não os viu mais.
Stephen estava indescritivelmente apavorado, mas mesmo assim decidiu pegar uma vela e descer até o escritório do Sr. Abney, pois já estava quase na hora marcada para a reunião. A porta do escritório, ou biblioteca, ficava ao lado do salão da frente, e Stephen, empurrado por seu terror, não demorou muito a chegar lá. Mas entrar foi tão fácil. A porta não estava trancada, disso ele tinha certeza, pois a chave estava do lado de fora, como sempre. Bateu várias vezes, mas não obteve resposta. O Sr. Abney devia estar ocupado: estava falando. O quê? Por que ele tentou gritar? E por que o grito estava sufocado em sua garganta? Será que ele também vira as crianças misteriosas? Então ficou tudo quieto, e a porta finalmente cedeu ao empurrões aterrorizados e frenéticos de Stephen.
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Sobre a mesa do estudo do Sr. Abney, foram encontrados alguns documentos que um dia explicariam exatamente o que acontecera, quando Stephen Elliott teve idade suficiente para entendê-los. As frases mais importantes eram as seguintes:
“Era uma crença muito forte geralmente mantida pelos antigos — cuja sabedoria nesses assuntos eu conheço o bastante para ser levado a confiar nas afirmações deles — que, ao encenar certos processos, que para nós, modernos, podem parecer ter algo de bárbaro, pode-se alcançar uma iluminação muito notável das faculdades espirituais do homem; que, por exemplo, absorvendo as personalidades de um certo número de seus semelhantes, um indivíduo pode obter um poder completo sobre as categorias de seres espirituais que controlam as forças elementares de nosso universo.
“Simon Magus registrou ser capaz de voar no ar, tornar-se invisível ou assumir qualquer forma que desejasse, pela ação da alma de um garoto que, usando a frase difamatória empregada pelo autor de os ‘Reconhecimentos Clementinos’, ele ‘assassinara’. Adicionalmente, os escritos de Hermes Trismegisto estabelecem de forma bastante detalhada, que resultados satisfatórios semelhantes podem ser produzidos pela absorção do coração de não menos de três seres humanos com menos de 21 anos de idade. Dediquei a maior parte dos últimos vinte anos a testar a veracidade desse documento, selecionando como corpora vilia para meu experimento pessoas que poderiam ser convenientemente removidas sem ocasionar uma lacuna perceptível na sociedade. Meu primeiro passo foi a remoção de Phoebe Stanley, uma garota de origem cigana, em 24 de março de 1792. O segundo, a remoção de um jovem italiano errante, chamado Giovanni Paoli, na noite de 28 de março de 1805. A “vítima” final — para empregar uma palavra que soa repugnante no mais alto grau aos meus sentimentos — deve ser meu primo, Stephen Elliott. Seu dia deve ser 24 de março de 1812.
O melhor meio de conseguir a absorção necessária é remover o coração do sujeito vivo , reduzi-lo a cinzas e misturá-lo com cerca de um litro de vinho tinto, de preferência do Porto. Os restos dos dois primeiros specimens, pelo menos, serão fáceis de esconder: um banheiro em desuso ou uma adega serão convenientes para esse fim.A parte psíquica dos sujeitos, a qual a linguagem popular dignifica com o nome de fantasmas, poderá causar algum aborrecimento. Mas o homem de temperamento filosófico — o único para o qual o experimento é apropriado — será pouco propenso a atribuir importância aos frágeis esforços desses seres em sua busca de vingança contra ele. Eu contemplo com a mais viva satisfação a existência ampliada e emancipada que o experimento, se bem sucedido, me conferirá; não só me colocando além do alcance da justiça humana (assim chamada), mas eliminando em grande parte a perspectiva da própria morte.”
O Sr. Abney foi encontrado em sua cadeira, com a cabeça jogada para trás e o rosto congelado em uma expressão de raiva, medo e de dor mortal. No lado esquerdo de seu corpo havia uma horrível ferida lacerada, que deixava o coração exposto. Não havia sangue em suas mãos, e uma faca longa que se encontrava sobre a mesa estava perfeitamente limpa. Os ferimentos deviam ter sido inflingido por um gato selvagem. A janela do escritório estava aberta, e na opinião do legista o Sr. Abney tinha sido morto pela ação de algum animal. Mas Stephen Elliot, depois de ler os documentos que acabo de mencionar, chegou a uma conclusão muito diferente.