A estrada ao luar – Ambrose Bierce

Imagem de capa:Aaron visuals)

“The Moonlit Road” foi publicado pela primeira vez da revista Cosmopolitan em Janeiro de 1907. Foi a inspiração para o conto “Dentro do Bosque” (“No Matagal” em algumas traduções) de Ryunosuke Akutagawa, que por sua vez foi um dos dois contos do autor que inspiraram o filme “Rashomon” de Akira Kurosawa.

I

DECLARAÇÃO DE JOEL HETMAN, JR.

Sou o mais infeliz dos homens. Rico, respeitado, bem-educado e com boa saúde; e muitas outras vantagens geralmente valorizadas por aqueles que as possuem e cobiçadas por quem não as têm. Às vezes penso que seria menos infeliz senão tivesse tais dons, pois então o contraste entre minha vida exterior e interior não exigiria constantemente uma atenção dolorosa. No sofrimento da privação e na necessidade de se esforçar para conseguir as coisas, talvez eu pudesse, às vezes, esquecer o segredo sombrio que sempre confunde os pensamentos que inspira.

Sou filho único de Joel e Julia Hetman. Ele era um próspero cavalheiro do interior, ela uma mulher bela e bem educada, por quem quem ele era apaixonado, com o que agora sei ter sido uma devoção ciumenta e implacável. A casa da família ficava a alguns quilômetros de Nashville, Tennessee. Era uma grande casa de construção irregular sem nenhum estilo arquitetônico específico, à uma certa distância da estrada, em um terreno cheio de árvores e arbustos.

Na época, eu tinha dezenove anos e era estudante em Yale. Um dia recebi de meu pai um telegrama de tal urgência que voltei imediatamente para casa, atendendo ao seu pedido sem saber a razão dele. Na estação de trem de Nashville, um parente distante me esperava para me informar por que motivo meu pai me chamou de volta: minha mãe tinha sido assassinada barbaramente, e não se sabia por que razão nem por quem. As circunstâncias eram as seguintes:

Meu pai tinha ido para Nashville com a intenção de voltar na tarde do dia seguinte. Algo o impediu de realizar o negócio em questão, então ele voltou na mesma noite, chegando pouco antes do amanhecer. Em seu depoimento perante o legista, explicou que não tinha como abrir o ferrolho, nem queria incomodar os criados que já tinham ido dormir, então, sem sabe muito bem o que ia fazer, deu a volta pelos fundos da casa. Ao virar um ângulo do prédio, ele ouviu o som de uma porta fechando suavemente, e viu na escuridão a indistinta figura de um homem, que imediatamente desapareceu por entre as árvores do gramado. Rapidamente ele foi atrás e fez uma rápida busca no terreno, acreditando que o invasor era alguém visitando algum dos criados em segredo. Como a busca se revelou infrutífera, ele entrou pela porta destrancada e subiu as escadas para o quarto de minha mãe. A porta estava aberta e, ao entrar no escuro, ele caiu de frente sobre algo pesado jogado no chão. Posso me poupar dos detalhes; era minha pobre mãe, morta. Estrangulada por mãos humanas!

Nada foi levado da casa, os criados não ouviram nenhum som e, exceto por aquelas terríveis marcas de dedos na garganta da morta – Meu Deus! Como queria poder esquecê-las! – nenhum vestígio do assassino jamais foi encontrado.

Desisti dos estudos para ficar com meu pai, que, naturalmente, era um homem mudado. Sempre com uma disposição apática e taciturna, ele tinha caído em um abatimento tão profundo que nada conseguia prender sua atenção, mas qualquer coisa – um passo, o súbito fechamento de uma porta – despertava nele um interesse intermitente; algo que poderíamos chamar de apreensão. A qualquer pequena surpresa, ele estremecia visivelmente e às vezes empalidecia, então recaía em uma apatia melancólica mais profunda do que antes. Suponho que ele era o que se chama de “pilha de nervos”. Quanto a mim, eu era mais jovem do que agora – o que ajuda. A juventude é como Gileade, um bálsamo para todas as feridas. Ah, se pudesse voltar a morar naquela terra encantada! Desconhecendo o pesar, não sabia como avaliar minha perda; não conseguia estimar corretamente a força do golpe.

Certa noite, alguns meses após o terrível acontecimento, meu pai e eu voltávamos da cidade para casa. A lua cheia estava cerca de três horas acima do horizonte à leste; todo o campo tinha a quietude solene de uma noite de verão; nossos passos e a canção incessante dos grilos eram o único som indiferente. As sombras negras das árvores que nos ladeavam se estendiam ao longo da estrada, que, nos breves intervalos entre elas, brilhava com um branco fantasmagórico. Ao nos aproximarmos do portão de nossa residência, cuja fachada estava mergulhada em sombra, na qual nenhuma luz brilhava, meu pai de repente parou e agarrou meu braço, dizendo, quase num sussurro:

—Meu Deus! Meu Deus! o que é aquilo?

—Não ouvi nada.— respondi.

—Mas veja, veja! —disse ele, apontando ao longo da estrada, diretamente à frente.

—Não há nada ali.—respondi— Venha, pai, vamos entrar, o senhor está doente.

Ele soltou meu braço e ficou parado, rígido e imóvel no meio da estrada iluminada, encarando como se estivesse privado do juízo. Seu rosto ao luar era uma palidez, de uma rigidez inexprimivelmente angustiantes. Puxei suavemente a manga de sua camisa, mas ele havia esquecido da minha existência. Logo, ele começou a recuar, passo a passo, sem tirar os olhos do que via ou acreditava estar vendo, nem por um instante. Dei meia volta para segui-lo, mas fiquei indeciso. Não me lembro de ter sentido nenhum medo, a menos que um calafrio repentino fosse sua manifestação física. Parecia que um vento gelado havia tocado meu rosto e envolvido meu corpo da cabeça aos pés. Eu podia sentir meu cabelo se arrepiar

Naquele momento minha atenção foi atraída para uma luz que brilhou de repente em uma das janelas no andar de cima da casa. Uma das criadas tinha acendido uma lâmpada, quiçá despertada por uma misteriosa premonição de algo maligno, agindo num impulso que ela nunca conseguiu explicar. Quando me virei para procurar meu pai, ele tinha sumido. Durante todos os anos que se passaram desde então, nenhum sussurro sobre seu destino cruzou a fronteira de conjecturas do reino do desconhecido.

II.

DECLARAÇÃO DE CASPAR GRATTAN

Hoje, dizem que vivo; amanhã, aqui nesta sala, jazerá a forma inerte de barro que por muito tempo fui eu. Se alguém tirar o pano da cara daquela coisa desagradável, será para satisfazer uma mera curiosidade mórbida. Alguns, sem dúvida, irão mais longe e perguntarão: “Quem era ele?” Nestas linha, forneço a única resposta que posso dar – Caspar Grattan. Certamente, isso deveria ser o suficiente. O nome atendeu à minha humilde necessidade por mais de vinte anos de uma vida de duração desconhecida. É verdade que o dei a mim mesmo, mas na falta de quem o fizesse, eu tinha esse direito. Neste mundo, é preciso ter um nome; evita confusão, mesmo quando não estabelece identidade. Alguns, porém, são conhecidos por números, que também parecem distinções inadequadas.

Um dia, a título de ilustração, passava pela rua, em uma cidade longe daqui, quando encontrei dois homens fardados, um dos quais, meio que parando e olhando com curiosidade para o meu rosto, disse ao companheiro: “Esse homem se parece com 767.” Algo no número me pareceu familiar e horrível. Movido por um impulso incontrolável, saltei para uma rua lateral e corri até cair exausto em uma estrada de terra.

Nunca esqueci esse número, e ele sempre vem à memória acompanhado de obscenidades balbuciantes, gargalhadas sem alegria, o barulho de portas de ferro. Portanto, digo que um nome, mesmo que auto-concedido, é melhor do que um número. No registro do oleiro, logo terei os dois. Quanta riqueza!

Daquele que encontrará este papel, devo pedir um pouco de consideração. Não é a história da minha vida; o conhecimento para escrevê-la me é negado. Este é apenas um registro de memórias quebradas e aparentemente não relacionadas, algumas delas tão distintas e sequentes como contas brilhantes em um fio, outras remotas e estranhas, com o caráter de sonhos carmesins com espaços vazios e pretos – fogueiras de bruxas ainda brilhando e vermelhas em uma grande desolação.

De pé na costa da eternidade, eu me viro para dar uma última olhada em direção à terra, sobre o caminho pelo qual andei. São vinte anos de pegadas bastante distintas, impressões de pés sangrando. Eles conduzem através da pobreza e da dor, tortuosas e inseguras, como as pegadas de alguém cambaleando sob o peso de um fardo—

Remoto, sem amigos, melancólico, lento.

Ah, a profecia do poeta sobre Mim – quão admirável, quão terrivelmente admirável!

Retrocedendo além do início desta via dolorosa– sua epopéia de sofrimento com episódios de pecado – não vejo nada claramente; sai como de uma nuvem. Eu sei que se estende por apenas vinte anos, mas sou um homem velho.

Não nos lembramos de nosso nascimento -é preciso que alguém nos conte. Mas comigo foi diferente; a vida veio a mim carregando dons e me dotou de todas as minhas faculdades e poderes. De minha existência anterior não sei mais do que os outros, pois todos fazem insinuações gaguejantes que podem ser lembranças ou podem ser sonhos. Sei apenas que minha primeira consciência foi de maturidade no corpo e na mente – uma consciência aceita sem surpresa ou conjectura. Simplesmente me peguei caminhando em uma floresta, seminu, com os pés doloridos, indescritivelmente cansado e faminto. Ao ver uma casa de fazenda, me aproximei e pedi comida, que me foi dada por alguém que perguntou meu nome. Eu não sabia, mas sabia que todos tinham nomes. Muito envergonhado, eu fui embora e, chegando a noite, me deitei na floresta e dormi.

No dia seguinte, entrei em uma grande cidade cujo nome não direi. Tampouco contarei outros incidentes de uma vida que agora está para terminar – uma vida de peregrinação, sempre e em toda parte assombrada por um senso dominante de crime na punição do mal e de terror na punição do crime. Deixe-me ver se consigo reduzi-la em um narrativa.

Parece que já morei perto de uma grande cidade, era um fazendeiro próspero, casado com uma mulher que eu amava e em quem não confiava. Às vezes tenho a impressão de que tínhamos um filho, um jovem promissor e brilhante. Ele é sempre uma figura vaga, nunca vista com clareza, muitas vezes me parece totalmente fora de cena.

Em uma certa noite infeliz, ocorreu-me testar a fidelidade de minha esposa de forma vulgar e comum, familiar a todos os que têm conhecimento da literatura de fato e ficção. Fui à cidade, avisando à minha esposa que iria me ausentar até a tarde do dia seguinte. Mas voltei antes do amanhecer e fui até os fundos da casa, com a intenção de entrar por uma porta que eu tinha secretamente sabotado de modo que parecia trancar, mas não fechava de fato. Ao me aproximar dela, eu a ouvi abrir e fechar suavemente e vi um homem sumir na escuridão. Com intenções assassinas em meu coração, corri atrás dele, mas ele havia desaparecido sem nem mesmo ter o azar de ser identificado. Às vezes agora não consigo nem me convencer de que era um ser humano.

Enlouquecido de ciúme e raiva, cego e bestial, tomado por todas as paixões elementares da masculinidade insultada, entrei em casa e subi as escadas correndo até a porta do quarto de minha esposa. Estava fechado, mas como eu tinha alterado aquela fechadura também, entrei facilmente e, apesar da escuridão, logo cheguei ao lado de sua cama. Minhas mãos tateantes descobriram que, embora desarrumada, a cama estava vazia.

“Ela está lá embaixo”, pensei, “e apavorada com minha entrada, se escondeu de mim na escuridão do corredor.”

Com o propósito de procurá-la, me virei para sair da sala, mas tomei a direção errada -ou melhor, a certa! Meu pé a encontrou, encolhendo-se em um canto da sala. Instantaneamente minhas mãos voaram em sua garganta, abafando um grito, meus joelhos sobre seu corpo enquanto ela lutava; e lá, na escuridão, sem uma palavra de acusação ou reprovação, eu a estrangulei até a morte!

Aí termina o sonho. Eu o relatei no pretérito, mas o presente seria a forma mais adequada, pois repetidamente a sombria tragédia se desenrola em minha consciência – repetidamente eu organizo o plano, eu sofro a confirmação, eu corrijo o erro. Então fica tudo em branco; e depois as chuvas batem nas vidraças encardidas, ou a neve cai em minhas vestimentas pobres, as rodas chacoalham sobre as ruas miseráveis nas quais vivo minha vida na miséria, em empregos ingratos. Se alguma vez houve luz do sol, não me lembro; se ha´pássaros, eles não cantam.

Existe outro sonho, outra visão da noite. Eu estou entre as sombras em uma estrada iluminada pela lua. Estou ciente de outra presença, mas não consigo lembrar exatamente quem é. À sombra de uma grande casa, vejo o brilho de vestes brancas; então a figura de uma mulher me confronta na estrada – minha esposa assassinada! El tem a morte sobre o rosto e marcas na garganta. Seus olhos fixam-se nos meus com uma gravidade infinita que não é censura, nem ódio, nem ameaça, nem nada menos terrível que o reconhecimento. Diante dessa terrível aparição, recuo aterrorizado – um terror que toma conta de mim de novo enquanto escrevo. Não consigo mais moldar corretamente as palavras. Veja! elas-

Agora estou calmo, mas na verdade não há mais nada para contar: o incidente termina onde começou – na escuridão e na dúvida.

Sim, tenho novamente o controle sobre mim mesmo: “capitão da minha alma”. Mas isso não é uma trégua; é outro estágio e fase da expiação. Minha penitência é constante em grau e mutável em espécie: uma de suas variantes é a tranquilidade. Afinal, é apenas uma sentença de prisão perpétua. “No inferno pelo resto da vida” – essa é uma pena tola: o culpado escolhe a duração de sua punição. Hoje meu mandato expira.

Para todos e cada um, desejo a paz que não foi minha.

III

DECLARAÇÃO DA FALECIDA JULIA HETMAN, ATRAVÉS DO MÉDIUM BAYROLLES

Eu tinha ido para a cama cedo e caído quase imediatamente em um sono tranquilo, do qual acordei com aquela sensação indefinível de perigo que é, creio, uma experiência comum naquela outra vida anterior. Estava inteiramente convencida de que não era nada de importante, mas isso não fez a sensação desaparecer. Meu marido, Joel Hetman, estava longe de casa; os criados dormiam em outra parte da casa. Mas essas eram condições familiares; nunca haviam me angustiado antes. Mesmo assim, o estranho terror tornou-se tão insuportável que, vencendo minha relutância em me mexer, me sentei e acendi a lâmpada ao lado da cama. Ao contrário da minha expectativa, isso não me trouxe alívio; a luz parecia mais um perigo adicional, pois refleti que ela brilharia sob a porta, revelando minha presença a qualquer coisa maligna que pudesse estar escondida do lado de fora. Vocês que ainda estão encarnados, sujeitos aos horrores da imaginação, pensem que medo monstruoso deve ser aquele que busca na escuridão segurança contra as existências malévolas da noite. Chegar perto de um inimigo invisível – a estratégia do desespero!

Apagando a lamparina, puxei o cobertor sobre a cabeça e fiquei deitada, trêmula e silenciosa, incapaz de gritar, esquecida de orar. Nesse estado lamentável, devo ter ficado deitada pelo que vocês chamam de horas – para nós não há horas, não há tempo.

Por fim, veio – um som suave e irregular de passos na escada! Eram lentos, hesitantes, incertos, como os passos de algo que não enxerfa o caminho; e por isso mesmo eram ainda mais aterrorizantes para minha mente confusa, como a aproximação de alguma malevolência cega e irracional à qual não há apelo. Cheguei a pensar que devia ter deixado a lâmpada do corredor acesa e o jeito como a criatura tateava era a prova de que era um monstro da noite. Era uma ideia tola e que nada tinha a ver com meu medo anterior da luz, mas o que fazer?

O medo não tem cérebro; é um idiota. O triste testemunho que ele dá e o conselho covarde que sussurra não têm relação um com o outro. Nós sabemos bem disso, nós que passamos para o Reino do Terror, que nos escondemos no crepúsculo eterno entre as cenas de nossas vidas anteriores, invisíveis até mesmo para nós mesmos e um para o outro, escondido em lugares solitários; ansiando por falar com nossos entes queridos, mas mudos, e com tanto medo deles quanto eles de nós. Às vezes, a deficiência é removida, a lei suspensa: pelo poder imortal do amor ou do ódio quebramos o encanto – somos vistos por aqueles a quem desejamos alertar, consolar ou punir. Que forma parecemos ter, não sabemos; sabemos apenas que aterrorizamos até mesmo aqueles a quem mais desejamos consolar e de quem mais ansiamos por ternura e simpatia.

Perdoe, peço-lhe, esta digressão inconsequente do que já foi uma mulher. Você que nos consulta desta forma imperfeita – não entende. Faz perguntas tolas sobre coisas desconhecidas e coisas proibidas. Muito do que sabemos e poderíamos transmitir em nossa fala não tem sentido na sua. Devemos nos comunicar com vocês por meio de uma inteligência gaguejante nessa pequena fração de nossa língua que vocês mesmos podem falar. Você pensa que somos de outro mundo. Não, não temos conhecimento de nenhum mundo além do seu, embora para nós ele não contenha nenhuma luz do sol, nenhum calor, nenhuma música, nenhuma risada, nenhum canto de pássaros, nem qualquer companhia. Ó Deus! Que coisa é ser um fantasma, encolhido e estremecendo em um mundo alterado, uma presa da apreensão e do desespero!

Não, não morri de medo: a Coisa se virou e foi embora. Ouvi-a descer as escadas, apressada, pensei, como se tivesse tido um medo repentino. Então me levantei para pedir ajuda. Mal minha mão trêmula encontrou a maçaneta da porta, quando – misericordioso céu! – eu a ouvi retornar. As passadas ao subir as escadas eram rápidas, pesadas e ruidosas; elas sacudiram a casa. Eu fugi para um canto da parede e me agachei no chão. Tentei orar. Tentei chamar o nome do meu querido marido. Então eu ouvi a porta ser aberta. Houve um intervalo de inconsciência e, quando acordei, senti um aperto sufocante em minha garganta – senti meus braços batendo debilmente contra algo que me empurrou para trás – senti minha língua se projetando por entre os dentes! E então eu passei para esta vida.

Não, não tenho conhecimento do que foi. A soma do que sabemos na morte é a medida do que sabemos depois de tudo o que aconteceu antes. Desta existência sabemos muitas coisas, mas nenhuma nova luz incide em qualquer página da anterior; na memória está escrito tudo o que podemos ler. Aqui não há alturas da verdade negligenciando a paisagem confusa daquele domínio duvidoso. Ainda moramos no Vale da Sombra, espreitando em seus lugares desolados, espiando através de espinheiros e matagais seus habitantes loucos e malignos. Como poderíamos ter um conhecimento novo sobre um passado que vai desaparecendo?

O que estou prestes a relatar aconteceu em uma noite. Sabemos quando é noite, pois vocês se retiram para suas casas e nós podemos nos aventurar para fora de nossos esconderijos e andar sem medo ao redor nossas antigas casas, para olhar pelas janelas, até mesmo entrar e contemplar seus rostos enquanto dormem. Fiquei muito tempo perto da casa onde fui tão cruelmente mudada para o que sou agora, como fazemos enquanto alguém que amamos ou odiamos permanece. Em vão, busquei algum meio de me manifestar, alguma maneira de fazer com que minha existência continuada e meu grande amor e pungente piedade fossem compreendidos por meu marido e filho. Sempre que eles dormiam, acordavam, ou se, no meu desespero, eu ousasse abordá-los quando estavam acordados, viravam para mim os olhos terríveis dos vivos, assustando-me. Os olhares que eu buscava me afastavam de meu propósito.

Nessa noite, eu os procurei sem sucesso, temendo encontrá-los; eles não estavam em nenhum lugar da casa, nem no jardim iluminado pela lua. Pois, embora o sol esteja perdido para nós, a lua, cheia ou minguante, permanece. Às vezes brilha de noite, às vezes de dia, mas sempre sobe e desce, como na outra vida.

Deixei o gramado e me movi na luz branca e no silêncio ao longo da estrada, sem rumo e triste. De repente, ouvi a voz de meu pobre marido em exclamações de espanto, e a de meu filho em consolo e súplica; e ali, à sombra de um grupo de árvores, eles estavam, perto, tão perto! Seus rostos voltados para mim, os olhos do homem mais velho fixos nos meus. Ele me viu – finalmente, finalmente, ele me viu! Consciente disso, meu terror se esvaiu como um sonho cruel. O feitiço da morte foi quebrado: O amor triumfou sobre a lei! Louca de alegria, gritei – eu devo ter gritado: “Ele me vê, ele me vê: ele vai entender!” Então, me acalmando, avancei, sorrindo e conscientemente bela, para me oferecer aos seus braços, para confortá-lo com carinhos, e, com a mão do meu filho na minha, falar as palavras que deveriam restaurar os laços quebrados entre os vivos e os mortos.

Ai de mim! Ai de mim! Seu rosto ficou branco de medo, seus olhos eram como os de um animal caçado. Ele se afastou de mim, enquanto eu avançava, e finalmente se virou e fugiu para a floresta – para onde, não me foi dado saber.

Para meu pobre menino, deixado duplamente desolado, eu nunca fui capaz de transmitir a sensação de minha presença. Logo ele também deve passar para esta Vida Invisível e estará para sempre perdido para mim.

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