Saudações, leitor noturno!
Hoje vamos falar um pouco de cinema! Mais especificamente do filme “Rashomon” de Akira Kurosawa.
Para muitos, Akira Kurosawa é praticamente sinônimo de cinema japonês. A simples menção do seu nome evoca samurais, seres mitológicos, lendas e sobretudo imagens de uma estética rica e complexa, cheia de simbolismo e muitas vezes até surreal. “Rashomon” foi o filme que apresentou Kurosawa para o público ocidental, e estabeleceu em nosso imaginário coletivo a ideia de que seu cinema representaria um quintessência da cultura japonesa. Mas se dermos uma olhada nas diversas obras que inspiraram. “Rashomon” encontraremos uma uma gênese literária longa complexa que começa no Japão, com contos budistas e a prosa modernista de Ryunosuke Akutagawa, e vai até um caso real de assassinato na Itália do século XVII, passando pelos contos assombrados do americano Ambrose Bierce e pela poesia do inglês Robert Browning.
“Rashomon”: o primeiro clássico internacional de Kurosawa.
“Rashomon”(羅生門) é um filme de 1950, produzido pela Daiei films, e dirigido por Akira Kurosawa, com script de Kurosawa e Shinobu Hashimoto. O filme se encaixa na categoria Jidaigeki (時代劇), dramas históricos que, em sua maioria, se passam durante a Era Edo (entre 1603 e 1868), um período da história do Japão caracterizado pelo isolacionismo, crescimento econômico (não igualitário), e uma ordem social rígida e conservadora. Os filmes Jidaigeki geralmente tem como tema as vidas de mercadores, camponeses e artesãos assim como oficiais do xogunato, nobres e samurais. Os filmes de samurai formam uma subcategoria importante de filmes Jidaigeki, chamada de Chanbara (チャンバラ, literalmente “luta de espadas”). Tecnicamente, “Rashomon” se encaixa tanto no estilo Jidaigeki, quanto no estilo Chanbara, mas, de muitas formas, subverte ambos. Aliás, o filme subverte muito mais que os estilos clássicos do cinema japonês.

“Rashomon” é composto por duas narrativas principais, uma “encaixada” na outra. A primeira se passa no Portal de Rashomon, uma estrutura que existiu de verdade, e ficava entre as antigas cidades de Heijo-Nara e Heian-Kyo (hoje em dia Nara e Kioto). Durante uma tempestade, um lenhador e um monge budista se abrigam embaixo do portal. Logo, um terceiro homem se junta aos dois. Enquanto esperam a chuva passar, os três começam a conversar, e o monge e o lenhador contam ao recém-chegado uma história arrepiante. O lenhador relata que encontrou o corpo de um samurai assassinado na floresta, junto com alguns itens abandonados (uma corda, peças de roupas e um amuleto) e foi imediatamente alertar as autoridades. O monge, por sua vez, tinha visto o samurai passando pela estrada com sua esposa, no mesmo dia do assassinato. O monge e o lenhador foram então arrolados como testemunhas no julgamento do bandido Tojomaru, acusado do crime.
A segunda narrativa é formada pelas diferentes versões apresentadas pelas partes envolvidas no crime e no julgamento de Tojomaru. A medida em que o monge e o lenhador relatam o julgamento, os depoimentos são mostrados em forma de flashbacks. Ou seja, o filme é estruturado com vários flashbacks dentro de um flashback principal: o julgamento sendo contado pelos homens abrigados no portal, e os eventos do crime sendo contados pelas testemunhas do julgamento.
Além do lenhador e do monge, também testemunham o acusado, Tojomaru, a mulher do samurai assassinado e o próprio samurai, que fala através de uma sacerdotisa/médium. Emergem várias narrativas diferentes sobre a morte do samurai, e também sobre o estupro da mulher, ambos crimes imputados a Tojomaru. Cada uma das versões do crime contradiz as demais, na medida em que cada um dos envolvidos tem seus próprios interesses, medos ou simplesmente tenta justificar suas próprias ações, e o espectador (representado pelo terceiro homem que chega ao portal) não tem como saber qual versão é a verdadeira. As contradições e motivações pessoais em jogo são tão profundamente diferentes e mesmo conflitantes, que o espectador pode até ficar em dúvida se o samurai foi mesmo assassinado ou apenas perdeu um duelo e se a sua mulher foi de fato violentada, ou se teria sido apenas seduzida por Tojomaru.

“Rashomon” é um divisor de águas na história do cinema japonês e também do cinema mundial. É considerado por muitos como o primeiro filme a quebrar o monopólio do cinema americano e europeu e ser distribuído mundialmente chegando a audiências diversas. O filme também foi um sucesso de público e crítica fora do Japão e chegou a ganhar um Oscar honorário de “mais notável filme em língua estrangeira”, pois o Oscar para melhor filme estrangeiro ainda não existia. (Ironicamente, “Rashomon” não teve o mesmo sucesso entre críticos e audiências japonesas, que não o consideram um dos melhores filmes de Kurosawa)
A estrutura do filme também foi revolucionária. A narrativa inteiramente em flashbacks pode ser um cliché até meio batido agora, mas em 1950 era uma novidade. Até então, os filmes tendiam à uma narrativa linear, na qual os flashbacks serviam apenas como ferramenta para ilustrar, revelar ou aprofundar algum elemento da história. “Rashomon” usou flashbacks para contar a história, indo e voltando nos mesmos eventos para exibi-los sob óticas diferentes. O elemento de incerteza também era outra peculiaridade do filme. Ao longo da história, o espectador nunca sabe qual personagem está falando a verdade (se é que algum deles está falando a verdade), e também não temos clareza sobre as suas razões para mentir ou omitir os fatos. No cinema dos anos 40 e 50, se algum evento era mostrado em flashback, era, geralmente para esclarecer mistérios e revelar coisas ao espectador. Um bom exemplo são os filmes noir dos anos 1940, nos quais o flashback era uma ferramenta narrativa muito usada para revelar o criminoso ou o modo como o crime tinha sido cometido, depois que o protagonista (geralmente um detetive ou policial) descobria a trama. Em “Rashomon” os flashbacks não revelam eventos que aconteceram no passado, mostram apenas a visão que cada personagem teve deles, ou a versão que cada um deseja apresentar como verdadeira.
Esta estrutura narrativa única deu origem à expressão “Efeito Rashomon”. Em seu artigo “What is the Rashomon effect?”, Robert Anderson define “Efeito Rashomon” como:
“uma combinação entre diferentes perspectivas e depoimentos igualmente plausíveis com a ausência de evidência que faça um (depoimento) se sobrepor aos demais e a impossibilidade de desqualificar qualquer uma das versões, tudo isso envolvido em uma pressão social pelo encerramento da questão”
Ou seja, é o tipo de situação que costumamos ver em casos criminais nos quais há vários depoimentos conflitantes que não podem ser nem corroborados nem desmentidos pela evidência física, então cabe ao júri compará-los e decidir qual é o mais plausível. O que é uma ocorrência bem comum, pois, apesar do que programas de televisão como CSI e Lei & Ordem podem nos fazer acreditar, há muitos casos criminais nos quais a evidência física é escassa ou inconclusiva, e o processo depende principalmente de testemunhas.
A popularização da expressão “Efeito Rashomon” se deve, claro, à popularidade do filme de Kurosawa, mas a estrutura narrativa que dá nome a este fenômeno já tinha sido usada bem antes do filme. Para escrever o roteiro de Rashomon, Kurosawa e Hashimoto adaptaram dois contos do escritor Ryunosuke Akutagawa: “Dentro do bosque” ( ou “No Matagal” em algumas traduções) e “Rashomon”. É de um destes contos que vem a narrativa fragmentar que fez de Rashomon um filme tão único.
“Rashomon” e “Dentro do bosque”
Ryunosuke Akutagawa (nom de plume de Shujin Chokodo) foi um escritor japonês do Período Taisho (1912-1926). Considerado o pai do conto japonês, Akutagawa buscava combinar temas japoneses com estilos literários modernos e ocidentais, a fim de criar uma literatura mais universalista. Ávido leitor tanto de autores tanto japoneses quanto estrangeiros, Akutagawa também traduziu autores ocidentais como Anatole France e William Yeats. A cultura e a formação de uma identidade cultural japonesa dentro do contexto de contatos com outras culturas é um tema recorrente em sua obra. De uma certa forma sua marca registrada era o uso de obras de autores e culturas diversas como inspiração para criar histórias, injetando nelas temas japoneses, e reflexões sobre a natureza humana.

O conto “Rashomon”(羅生門) foi publicado pela primeira vez em 1915 na revista Teikoku Bunkaku(帝国文学). A história se passa no século XII, quando o portal de Rashomon que marcava a fronteira sul de Kioto, estava abandonado e a área ao seu redor tinha a reputação de ser perigosa, sendo um frequente ponto de encontro para ladrões e outros criminosos. Também era muito comum que cadáveres fossem abandonados nas cercanias do portal por familiares que não tinham condições financeiras para fazer os ritos funerários apropriados.
Em um entardecer chuvoso, um “servo de baixa condição” busca abrigo no portal. Ele acaba de ser demitido por seu senhor e, numa Kyoto atormentada pela destruição de um terremoto recente, pela pobreza e pela fome, contempla o que será de seu futuro. Os tempos são tão difíceis que o servo só vê duas possibilidades: morrer de fome ou se tornar um ladrão para sobreviver. Subindo os degraus do portal ele percebe uma luz, e encontra uma velha mulher vagando pelo portal com uma lamparina e cortando os cabelos dos cadáveres abandonados. Furioso com a atitude dela, o servo decide que é preferível morrer de fome com a sua honra intacta do que recorrer ao roubo. Ela então explica que está cortando os cabelos dos cadáveres para fazer perucas e vender, e apontando para o cadáver de uma mulher cujos cabelos está cortando, afirmando que ela enganava as pessoas para ganhar a vida. Ela argumenta que se algo imoral é necessário para sobreviver e não morrer de fome, então é justificado. O servo, então, abandona suas convicções morais e agride a mulher para roubar as suas roupas, sob alegação de que “é o que precisa fazer para não morrer de fome.” O conto termina em uma nota profundamente sombria e niilista, não apenas pelo ambiente de degradação social e econômica no qual as pessoas se veem forçadas a recorrer a atos imorais para sobreviver, mas também pela hipocrisia do servo, que abandona suas convicções facilmente, e usa a sobrevivência para justificar sua agressão contra uma mulher idosa e miserável como se estivesse no mesmo patamar que o roubo dos cabelos dos cadáveres cometido por ela.

“Rashomon” é a inspiração para o primeiro nível narrativo do filme de Kurosawa, os três homens que abrigados da chuva sob o portal, conversam sobre a natureza humana. O filme usa personagens e uma história completamente diferentes do conto, mas mantém dois elementos essenciais: o cenário e o tema da possibilidade de manter convicções morais frente a pressões econômicas. Tanto o conto quanto o filme apresentam personagens que lidam com a questão da própria moralidade frente à necessidade de sobreviver. Ao falar sobre o julgamento, o monge, o lenhador e o homem analisam as motivações dos envolvidos no crime, e tentam compreender suas ações sob o ponto de vista da autopreservação, do medo da morte ou do desejo. O que afinal justificaria que o bandido, o samurai e a mulher façam o que fazem, da maneira que fazem? O que justificaria suas mentiras, se estiverem de fato mentindo? Os três homens também contemplam sua própria moralidade e o que seriam ou não capazes de fazer em determinadas situações. No final do filme, uma revelação coloca em dúvida tudo o que o espectador acredita sobre um dos personagens, e um deles toma uma decisão que muda a visão dos demais sobre a possibilidade de redenção e sobre a fé na bondade humana.
Apesar de tirar seu título do conto que acabamos de analisar, o cerne da narrativa de “Rashomon” vem do conto “Dentro do bosque” (藪の中,Yabu no Naka), publicado pela primeira vez na edição de Janeiro de 1922 do periódico literário Sincho (新潮). A premissa principal é, em termos gerais, a mesma do filme: o assassinato de um samurai, o estupro de sua mulher e as diferentes versões dos dois crimes. A história é apresentada no formato de uma série de depoimentos, à medida em que o assassinato é investigado pelo comissário de polícia que interroga as testemunhas. O resultado é um panorama de narrativas que revelam detalhes do crime ao mesmo tempo em que apresentam diferenças que podem ser simplesmente o resultado de perspectivas diferentes ou podem ser produto omissões ou até de falsificações intencionais.
O primeiro depoimento é do lenhador que encontrou o corpo no bosque. Ele só pode testemunhar sobre o estado em que encontrou o corpo e o que viu na cena do crime: muitas folhas amassadas, uma grande quantidade de sangue, um pedaço de corda e um pente. A seguir, vem o depoimento do monge budista que encontrou o samurai acompanhado da mulher na estrada, no mesmo dia do crime. Ele consegue dar informações sobre objetos que o casal levava e que não foram encontrados na cena do crime, assim como o cavalo da mulher que também desapareceu.A próxima testemunha é um hōmen (放免, um preso libertado da cadeia mediante um contrato com a polícia para servir como uma espécie de caçador de recompensas) que capturou o bandido Tojomaru. Ele relata que Tojomaru caiu de um cavalo com a mesma descição do cavalo da mulher, e levava consigo objetos descritos pelo monge, exceto pela espada do samurai. A seguir, a mãe da mulher do samurai depõe. Ela descreve a personalidde forte da filha, que se chama Masago, fala sobre o casamento de Masago com o Samurai Takehiro, e implora que as autoridades a encontrem. Depois, vem os três depoimentos mais importantes: a confissão de Tojomaru e as versões de Masago, encontrada escondida em um templo, e de Takehiro, que fala através de uma sacerdotisa/médium. Os depoimentos dos três se contradizem entre si, e cabe às autoridades (e ao leitor) concluir se algum deles está dizendo a verdade, e qual seria essa verdade. O conto não tem um narrador omnisciente, nem um fio narrativo principal que connecta as diferentes partes. Cada relato é apresentado como um documento separado, no formato de depoimentos oficiais.
Tanto “Rashomon” quanto “Dentro do Bosque” são o resultado da combinação de diversos elementos que ajudaram a formar a escrita de Akutagawa. Ele era um leitor voraz, tanto de autores japoneses quanto ocidentais, e foram essas leituras que forneceram-lhe o material bruto que ele usou para criar as narrativas complexas que inspirariam Kurosawa.
Então, sem mais, vamos fazer um passeio pela gênese de “Rashomon” e “Dentro do Bosque”.
Do sofrimento e dos desejos egoístas: os ensinamentos budistas de “Konjaku Monogatarishu”.
A princípio, o contos de Akutagawa são adaptações expandidas de duas histórias da coletânea Konjaku Monogatarishu (今昔物語集- “Antologia de Histórias do Passado”). A coleção tinha 31 volumes originalmente, dos quais apenas 28 sobreviveram até os nossos dias. Cada volume contém histórias do folclore da Índia, China e Japão, dividas de acordo com sua origem geográfica. Estas histórias foram fonte de inspiração para divers autores além de Akutagawa, como Junichiro Tanizaki e Hori Tatsuo.

É importante saber que os contos do Konjaku Monogatarishu tem uma relação intrínseca com a expansão e o estabelecimento do Budismo no Japão. A própria organização da antologia segue em paralelo com o caminho geográfico que o Budismo percorreu para chegar ao Japão, desde seu início na Índia, passando através da China. Cada conto é um setswua (“história contada” ou “falada”, ou seja, de tradição oral), que tem dois objetivos, um secular e um religioso. O objetivo secular é, obviamente, entreter. Já o objetivo religioso é promover uma compreensão mais aprofundada dos ensinamentos do budismo. Cada narrativa pretende apresentar os conceitos e ensinamentos budistas de uma forma simplificada, através de narrativas alegóricas, ou parábolas que pessoas de qualquer origem social e nível de instrução poderiam entender.
Vejamos as duas histórias que, em particular, inspiraram Akutagawa.
A história “Como um ladrão subiu no alto do Portal de Rajomon e viu um cadáver” (a grafia “Rashomon” com -sh em vez de -j usada no conto e no filme vem de uma peça de teatro Noh) serviu de base para o conto “Rashomon”. A premissa básica de ambos é quase a mesma. Um ladrão encontra uma idosa no portal de Rajomon, cortando os cabelos do cadáver de uma jovem mulher. Ela explica que o cadáver é de sua patroa que não tinha ninguém para enterrá-la, e que está cortando seus cabelos para fazer uma peruca e vender. O ladrão então rouba as roupas do cadáver, as roupas da idosa e também os cabelos cortados e foge.
Akutagawa adicionou os diálogos, e tornou o protagonista mais complexo, ao substutir o ladrão por um servo que contempla a possibilidade de se tornar ladrão para sobreviver. Ele também torna a história mais sombria ao explorar as motivações pessoais do servo/ladrão e o processo pelo qual ele abandona suas convicções inciais, e também ao tornar sua agressão contra a idosa mais violenta que no original.
A história “Como um homem que acompanhava sua esposa até a província de Tanba foi atacado em Oeyama” foi a inspiração para “Dentro do Bosque”. Ao contrário de “Rashomon”, aqui Akutagawa fez muitas mudanças no conto original. A narrativa encontrada em Konjaku Monogatarishu é bem mais simples: um casal está viajando pela estrada, quando são abordados por um homem. Ele convence o marido de que conhece a localização de alguns artefatos preciosos, escondidos em meio às árvores. O marido, iludido pela possibilidade de riqueza fácil, acredita e o segue para dentro da floresta, onde o homem o amarra em uma árvore, para poder estuprar a esposa e roubar o cavalo no qual o casal estava viajando.
Em “Dentro do bosque” Akutagawa usa esta estrutura básica de tres personagens, marido, mulher e um malfeitor que o casal encontra na estrada, para criar uma cadeia de eventos muitos mais complexa. Ele aumenta a severidade do crime (em vez de estupro e roubo, temos assassinato, estupro e roubo), dá personalidades e identidades definidas aos três personagens principais (o marido vira um samurai orgulhoso, a mulher é uma jovem de personalidade forte e o malfeitor um bandido “de carreira”) e acrescenta mais personagens por meio de uma narrativa investigativa na qual os fatos não são claramente dados.
As duas histórias da coletânea Kanjaku tem aspectos em comum: ambas são histórias que alertam para os perigos da ganância humana. do desespero e do desejo, em concordância com a doutrina budista que apresenta os desejos egoístas como a raiz de todo o sofrimento. O homem que aborda o casal na estrada é impelido pela luxúria, e arquiteta um plano para poder violentar a mulher, já o marido se deixa levar pela ganância e acaba abandonando a esposa à mercê de um estuprador. O ladrão e a velha representam a roda do karma, na qual as ações do indivíduo se voltam contra ele, em um ciclo interminável, já que assim como a idosa rouba do cadáver, também o ladrão rouba da idosa, e o ciclo de agressão vai ficando mais violento, a medida em que o que começa como um ato de desespero, vai gerando outros atos de desespero e ganância.

Na versão de Akutagawa, o servo apresenta uma justificativa para suas ações (roubar para não morrer de fome), mas ela soa quase como uma desculpa, se entendermos que suas ações contra a idosa vão além do simples ímpeto de sobrevivência, pois ele não só rouba como a agride (e nessa versão não rouba nada do cadáver). Seria possível argumentar que ele usa o crime da idosa (roubar dos cadáveres, por desespero) para justificar um crime ainda pior (roubar e agredir uma anciã). Este elemento, o discurso que se apresenta como justificativa razoável mas que no fundo pode ser apenas a defesa egoísta de atos motivados pelo desejo ou pela ganância, é uma temática que Akutagawa expande em sua releitura da história que inspirou “Dentro do Bosque” ao apresentar vários depoimentos. A multiplicidade de versões também é uma referencia ao conceito budista do “eu” e da verdade. No Budismo o “eu” é uma criação de várias forças ilusórias (maya), e por isso é necessariamentre instável, algo que precisa ser transcendido. Conhecer a verdade pura é impossível sem o abandono do “eu”, pois a nossa compreensão da verdade é limitada pelas ilusões do “eu”.
Akutagawa usa essas narrativas e seus temas subjacentes como base para seus contos, mas o formato e estilo, especialmente a estrutura fragmentada de “Dentro do bosque”, são elementos que vem de outras fontes de inspiração. E para conhecê-los temos que nos voltar para o ocidente.
Um assassinato e suas versões: a influência de Ambrose Bierce e Robert Brownings.
O especialista na obra de Akutagawa, Dr. Kynia Tsuruta, analisou as influências literárias do autor em um artigo para o periódico Monumenta Serica, no qual afirma que :
“(…)ele descobriu em muitos autores ocidentais uma rica fonte de inspiração literária tanto em forma quanto em temática. Prosper Merimée, Anatole France, Oscar Wilde, Edgar Allan Poe, para mencionar apenas alguns, exerceram uma considerável influência sobre Akutagawa, e foi ele quem apresentou Ambrose Bierce ao Japão.”
Ambrose Bierce foi um escritor norte-americano do século XIX, e também poeta, jornalista, satirista e veterano da Guerra Civil. Bierce foi um autor prolífico e versátil: é considerado um dos melhores satiristas da história da literatura norte-americana, foi um jornalista influente e um pioneiro da literatura realista. Seus trabalhos mais conhecidos são o satírico “Dicionário do Diabo” e seus diversos contos de terror, muitos deles inspirados em suas experiências nos violentos campos de batalha da Guerra Civil. A coletânea “Tales of soldiers and Civilians” apresenta um visão realista dos horrores da guerra, combinada com alguns elementos sobrenaturais que levaram histórias como “Uma ocorrência em Owl Creek”, “Um cavaleiro no céu” e “Chickamauga” entre outras a se tornarem clássicos.

Akutagawa compartilhava com Bierce um sentimento de não-conformismo e de crítica frente à questões sociais. Ambos abordavam os temas da estupidez, ganância e hipocrisia para criar histórias realistas, nas quais a guerra, o desespero e as pressões sociais ou psicológicas levam os personagens a extremos e colocam em cheque suas noções de ética e moral. Bierce, como jornalista e satirista frequentemente abordava tais questões em seus textos não ficcionais, mas é em seus trabalhos de ficção que a questão da miséria humana aparece de forma mais intensa, e é neles que Akutagawa vai buscar inspiração.
“Dentro do bosque” pega emprestada uma das narrativas do Konjaku Monogatari, mas vem de Ambrose Bierce a estrutura narrativa fragmentada que tanto Akutagawa quanto Kurosawa utilizam. Mais especificamente do conto “A estrada ao luar” (que eu já traduzi para o blog: Leia AQUI)
Publicado pela primeira vez na revista Cosmopolitan, em 1907, o conto é o relato de um assassinato visto pela perspectiva de três personagens, dada em formato de depoimento. O primeiro é Joel Hetman Jr.. Filho de um fazendeiro, Joel estava na faculdade quando recebeu uma mensagem do pai pedindo que ele voltasse para casa com urgência. Ao chegar, Joel é informado que sua mãe, Julia, foi assassinada dentro da própria casa, em uma noite que seu pai estava fora viajando a negócios.
O segundo depoimento é de um homem chamado Caspar Gratan. Ele afirma que este não é seu nome verdadeiro, apenas um nome que inventou para si mesmo, pois não se lembra quem é nem de onde veio. Ele descreve sua vida de andanças e sofrimento, desconhecendo sua identidade, sem lar, sem família, e sua memória cheia fragmentos desconexos de lembranças de um passado que o enche de culpa.
Finalmente, o último depoimento é da própria Julia, que, falando através de um médium, descreve os acontecimentos da noite de seu assassinato e o que aconteceu depois, em uma estrada sob a luz da lua.
Qualquer semelhança com “Dentro do Bosque” não é mera coincidência. Os elementos básicos são essencialmente os mesmos: três personagens principais, um crime, três versões diferentes, e um depoimento da própria vítima falando de além-túmulo através de um médium. No entanto, uma leitura mais aprofundada revela uma diferença chave entre o conto de Bierce e o conto de Akutagawa. Ao terminar “A estrada ao luar”, o leitor tem uma ideia bem clara de quem assassinou Julia, e como. Os depoimentos dos três personagens não são conflitantes entre si, apenas revelam aspectos diferentes do crime, até que, no fim da narrativa, o leitor pode combinar o que cada depoimento revela para chegar a verdade. É possível duvidar do testemunho de cada personagem, mas o texto não nos apresenta nenhuma contradição evidente entre os três relatos que possa levar a uma conclusão radicalmente diferente daquela que os fatos narrados sugerem. Em Akutagawa, os relatos se contradizem, fazendo com que o leitor não chegue “confortavelmente” a uma resolução clara.
Como vimos, este elemento de dúvida frente a diferentes testemunhos é muito comum em casos criminais na vida real, e pode ter sido justamente um caso real que indiretamente inspirou Akutagawa a dar um sentindo de ambiguidade à estrutura narrativa de Bierce. Esta inspiração teria vindo da obra do inglês Robert Browning.
Browning era um poeta e dramaturgo, mais conhecido por seus monólogos dramáticos, um gênero de poesia no qual o “eu poético” fala a um interlocutor que não responde, de forma a revelar seus próprios sentimentos e características de sua personalidade. Considerado um dos maiores poetas da era vitoriana, a obra de Browning é caracterizada pelo humor mórbido e comentário social, e também pela ambientanção histórica e pelo vocabulário e estruturas complexas. Casado com a poeta Elizabeth Barret Browning, cuja carreira literária sempre apoiou, Browning era um defensor da emancipação feminina e um opositor da escravidão e do antissemitismo. Suas obras mais famosas são a coleção de poemas Men and Women (Homens e Mulheres) e o poema narrativo The Ring and the Book (O Anel e o Livro).

Muitos especialistas sugerem que “O Anel e o Livro” estaria entre as inspirações de Akutagawa, e é fácil ver a razão.
Browning teve a ideia para este poema em 1860, quando passeava por um mercado de pulgas na cidade de Florença, na Itália. Ali, ele encontrou um documento viria a ser conhecido como “O velho livro amarelo” (por causa da coloração das páginas envelhecidas). Era um livro do século XVII, que continha cartas e documentos relacionados a um caso real de assassinato ocorrido em Roma, no ano de 1698.
O conde Guido Franceschini foi acusado do assassinato de sua esposa Pompília e dos pais dela, que teria sido motivado pela suspeitava de que ela estaria tendo um caso com um jovem clérigo, Giuseppe Camposacchi. Franceschini foi condenado à morte, em um processo no qual, de acordo com as leis romanas da época, depoimentos foram escritos e enviados ao tribunal, em vez de serem apresentados em pessoa durante o julgamento. Graças a esta legislação, os depoimentos do caso Franceschini puderam ser compilados e conservados para a posteridade, incluindo um depoimento da própria vítima, Pompília, que ainda sobreviveu por alguns dias após o ataque, tendo tempo suficiente para ditar sua versão dos fatos que foi então escrita e anexada ao processo antes de seu falecimento. Browning usou esses documentos pra escrever “O Anel e o Livro”, um longo poema narrativo publicado em em 12 volumes, entre 1868 e 1869.

O poema é composto de várias partes, nas quais os envolvidos no caso dão suas versões, no formato de monólogo dramático. Assim como os depoimentos do caso real, os depoimentos apresentados no poema também são contraditórios entre si, e apresentam ao leitor as perspectivas do acusado, da vítima, de testemunhas, dos advogados e até do Papa Incêncio XII, a quem Franceschini apelou para provar sua inocência.
Novamente, qualquer semelhança com “Dentro do Bosque” não é mera coincidência. Mas outra vez Akutagawa cria algo inteiramente seu a partir do material que usa de inspiração. “O Anel e O livro” é praticamente um romance em verso: tem um narrador que representa o próprio Browning, que relata como encontrou os documentos do julgamento e dá uma estrutura narrativa mais convencional ao poema. Ele também apresenta as vozes do público que acompanha o julgamento, se utiliza destas vozes para apresentar suas próprias reflexões filosóficas, psicológicas e espirituais. O volume 10 é bom exemplo. Nele, o Papa Inocêncio, ou melhor uma versão funcionalizada dele, analisa o pedido de clemência de Franceschini. Ao decidir se aceita ou não o pedido, o Papa reflete sobre questões teológicas e morais, e sobre a natureza do bem e do mal. Ou seja, Browning, que em sua vida pessoal era conhecido por seu engajamento em causas sociais, usa o poema para, de certa forma, refletir sobre certas questões.
Akutagawa também faz sua reflexão sobre moralidade, espiritualidade e a natureza humana, mas segue um caminho diferente. Ele deixa que os personagens falem por si, e joga com as ambiguidades, com as áreas cinzas, o dito e não dito, para deixar que o leitor reflita sobre os significados das ações narradas. Ao eliminar o narrador e o fio narrativo em favor do texto “seco” do depoimento, Akutagawa se afasta de Browning, e se aproxima de Bierce, mas ao escolher a ambiguidade e deixar a “verdade” sem revelar, ele se afasta de Bierce e se aproxima dos conceitos budistas do “eu” e da impossibilidade de conhecer a verdade sem se desapegar das paixões e desejos humanos. O resultado é um texto único, que propõe questões filosóficas permitindo que o leitor as contemple por si mesmo. Ao criar o roteiro para “Rashomon”, Kurosawa faz algo parecido. Da mesma forma que Akutagawa joga com as palavras e com conceitos filosóficos abordados por outros autores antes dele para incitar o leitor à reflexão, Kurosawa usa imagens, enquadramentos e a trilha sonora, para criar um universo opressivo e multifacetado no qual nada é o que parece, e homens e mulheres tem que fazer escolhas difíceis em circunstâncias que nem sempre estão sob seu controle, e nas quais “certo” e “errado” não são evidentes.
Materiais Consultados:
Artigos:
Anderson, Robert, “What is the Rashomon effect?” in Davis, Blair (ed.) Rashomon Effects. Kurosawa, Rashomon and their legacies” ed: Routledge, Nova York, 2016.
Tsuruta, Kynia. ‘ Akutagawa Ryūnosuke and the I-Novelists ’in Monumenta Nipponica, vol. 25, 1970
Walls, Jan. ” From Konjkaku and Bierce to Akutagawa to Kurosawa: Ripples and the Evolution of Rashomon” in Davis, Blair (ed.) Rashomon Effects. Kurosawa, Rashomon and their legacies” ed: Routledge, Nova York, 2016.
Sites:
Literary Genealogy of Rashomon. PART 1 & PART 2, ( via Enic-cine.net)
Livros:
Anônimo (tradução e edição: Marian Ury).Konjaku Monogatarishu. Tales of Times Now Past. University fo Michigan, Center for Japanese Studies, 1993.
Akutagawa, Ryunosuke (tradução e notas: Madalena Hashimoto Cordaro e Junk Ota) Rashomon e outros contos. São Paulo: Hedra, 2008
Bierce, Ambrose (edição e comentários E.J Hopkins). The Complete Short Stories of Ambrose Bierce. University of Nebraska Press, Lincoln, 1970
Browning, Robert. (ediçao e notas: Thomas J. Collins, Richard D Altick) The Ring and the Book. Broadview Press, 2001
Dixon, Wheeler Winston, Foster, Gwendolyn Audrey: A Short History of Film. Rutgers University Press, 2008
Davis, Blair (ed.) Rashomon Effects. Kurosawa, Rashomon and their legacies” ed: Routledge, Nova York, 2016.
Hodel, Charles W.(tradução, notas e material extra) The Old Yellow Book. Carnegie Institution of Washington, 1908 (digitalizado e disponibilizado por The Internet Archive.)
Russel, Catherine. Classical Japanese Cinema Revisited. Bloomsbury Publishing, 2011
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