Imagem de capa: Katarzyna Korobczuk
“Eveline’s visitor” foi publicado pela primeira vez em Janeiro de 1867 na revista Belgravia.
Foi durante um baile de máscaras no Palais Royal que começou minha desavença fatal com André de Brissac, meu primo em primeiro grau. Uma mulher era a razão da briga. As mulheres que andavam com Filipe de Orleans* foram causa de muitas dessas disputas. Não havia uma bela criatura em toda aquela brilhante entourage que, ao menos para um homem bem versado em histórias sociais e mistérios, não parecesse tingida de sangue.
Não revelarei o nome daquela por cujo amor André de Brissac e eu cruzamos uma das pontes, num amanhecer de agosto, a caminho do terreno baldio além da igreja de Saint-Germain des Pres.
Havia muitas víboras bonitas naquela época, e ela era uma delas. Ainda sinto o hálito frio daquela manhã de agosto soprando em meu rosto, quando em meus sombrios aposentos no castelo de Puy Verdun, sozinho na quietude da noite, sento-me para escrever a estranha história da minha vida. Posso ver a névoa branca subindo do rio, o contorno sinistro do Châtelet**, e as torres quadradas de Notre Dame, negras contra o pálido céu cinzento. Lembro-me ainda mais vividamente do belo rosto jovem de André, de pé na minha frente com seus dois amigos – dois malandros, ansiosos para assistir aquele duelo perverso. Éramos um grupo estranho sob aquele nascer do sol de verão, todos nós recém-saídos do calor e da agitação dos salões do Regente, André em um curioso traje de caça copiado de um retrato de família em Puy Verdun, eu fantasiado como um dos índios do Mississippi de Law***; os outros vestiam roupas espalhafatosas, adornadas com bordados e joias que pareciam desbotadas à luz pálida do amanhecer.
Nossa peleja foi feroz e só poderia ter tido um resultado, o mais terrível. Eu o estapeei; e o vergão deixado por minha mão aberta pintou de carmesim seu belo rosto feminino enquanto ele se postava diante de mim. O sol do leste brilhou sobre sua face e tingiu a marca cruel de um vermelho ainda mais profundo; mas a dor dos meus próprios erros estava recente e eu ainda não tinha aprendido a me desprezar por aquele ultraje brutal.
Para André de Brissac, tal insulto foi terrível. Ele era o favorito da Fortuna, o favorito das damas; e eu era um nada, um soldado rude que tinha prestado um bom serviço ao meu país, mas um parabère sem jeito no boudoir.
Nós lutamos e eu o feri mortalmente. A vida lhe fora muito doce; creio que um frenesi de desespero tomou conta dele quando sentiu seu sangue vital se esvair. Ele me chamou para perto enquanto jazia no chão. Eu me aproximei e ajoelhei ao seu lado.
—Perdoe-me, André!— murmurei.
Ele não prestou mais atenção às minhas palavras do que teria prestado se minha súplica lamentável fosse a ondulação ociosa do rio ao nosso lado.
—Ouça-me, Hector de Brissac—disse ele. —Não sou do tipo que acredita que o homem já não tem mais assuntos na terra só porque seus olhos se apagaram e sua mandíbula cerrou-se. Vão me enterrar no velho mausoléu de Puy Verdun; e você será o senhor do château. Ah, eu sei como se leva as coisas levianamente hoje em dia, e como Dubois vai rir quando souber que fui morto em um duelo. Eles me sepultarão e rezarão missas pela minha alma; mas você e eu ainda não terminamos nosso assunto, meu primo. Estarei com você quando menos esperar me ver, – eu, com essa cicatriz feia no rosto que as mulheres elogiam e amam. Eu irei até você quando sua vida parecer mais feliz. Eu ficarei entre você e tudo o que você mais ama e respeita. Minha mão fantasmagórica deixará cair veneno em sua taça de alegria. Minha sombra vai cobrir a luz do sol de sua vida. Homens com uma vontade de ferro como a minha podem fazer o que quiserem, Hector de Brissac. É minha vontade assombrá-lo quando eu estiver morto.
Tudo isso ele sussurrou em meu ouvido, com frases partidas em pedaços. Tive que aproximar meu ouvido de seus lábios moribundos; mas a vontade de ferro de André de Brissac era forte o suficiente para teimar com a morte, e creio que ele disse tudo o que queria dizer antes que sua cabeça caísse sobre o manto de veludo que haviam estendido embaixo dele, para nunca mais se levantar.
Ao vê-lo deitado ali, seria fácil imaginá-lo como um jovem frágil, muito belo e sensível demais para essa luta chamada vida; mas há quem se lembre da breve maturidade de André de Brissac e dê testemunho da força terrível de sua soberba natureza.
Fiquei olhando para seu jovem rosto com aquela marca horrenda, e Deus sabe que lamentei o que tinha feito.
Esqueci das ameaças blasfemas que ele sussurrou em meu ouvido. Eu era um soldado e um crente. Não havia nada de absolutamente terrível para mim no fato de ter matado aquele homem. Eu já tinha matado muitos homens no campo de batalha; e ele tinha me ofendido cruelmente.
Meus amigos queriam que eu cruzasse a fronteira para escapar das consequências de meu ato; mas eu estava pronto para enfrentar essas consequências e permaneci na França. Mantive-me afastado da corte e recebi a indicação de que seria melhor não sair de minha própria província. Muitas missas foram entoadas na pequena capela de Puy Verdun, pela alma de meu primo morto, e seu caixão ocupou um nicho na no jazigo de nossos ancestrais.
Sua morte me tornou um homem rico; e a consciência disso tornou minha riqueza recém-adquirida muito odiosa para mim. Eu vivia uma existência solitária no antigo château, onde raramente conversava com alguém que não fosse os criados da casa. Todos eles haviam servido ao meu primo, e nenhum gostava de mim.
Foi uma vida dura e amarga. Me desagradava ver os filhos dos camponeses fugirem quando eu cavalgava pela aldeia e ver mulheres idosas fazer o sinal da cruz furtivamente quando eu passava por elas. Relatos estranhos circulavam a meu respeito, e havia aqueles que sussurraram que eu tinha dado minha alma ao Maligno como o preço pela herança de meu primo. Desde minha infância, eu tinha uma compleição escura e modos severos; talvez por isso nunca tivera o amor de uma mulher. Lembro do rosto de minha mãe em todas as suas mutáveis expressões; mas não consigo me lembrar de ter recebido dela um olhar afetuoso sequer. Aquela outra mulher, sob cujos pés coloquei meu coração, ficou satisfeita em aceitar minha admiração, mas nunca me amou; e no fim me traiu.
Comecei a odiar a mim mesmo e já tinha quase começado a odiar meus semelhantes, quando um desejo febril se apoderou de mim, e voltei a ansiar por estar de volta ao vai e vem do mundo agitado mais uma vez. Voltei para Paris, onde me mantive afastado da corte, e foi lá que um anjo se compadeceu de mim.
Ela era filha de um velho camarada, um homem cujos méritos foram negligenciados, cujas realizações foram ignoradas, e que se amuava em sua residência miserável como um rato em um buraco, enquanto toda Paris enlouquecia com o financista escocês***, e aristocratas e plebeus pisoteavam uns aos outros até a morte na rua Quin-campoix. A única filha daquele velho e rabugento capitão dos dragões era um raio de sol em forma de moça, cujo nome mortal era Eveline Duchalet.
Ela me amava. As mais ricas bênçãos de nossa vida costumam ser aquelas que nos custam menos. Perdi os melhores anos de minha juventude adorando uma mulher perversa, que finalmente me abandonou e me enganou. Eu dei a este anjo manso apenas algumas palavras de cortesia – um pouco de ternura fraterna – e eis que ela me amava. A vida que tinha sido tão sombria e desolada tornou-se brilhante sob a influência dela. Voltei para Puy Verdun acompanhado de uma bela e jovem noiva.
Ah, que doce mudança em minha vida e em minha casa! As crianças da aldeia já não se encolhiam de medo quando o cavaleiro negro passava cavalgando, as velhas da aldeia não se benziam mais; pois uma mulher cavalgava ao meu lado – uma mulher cuja caridade tinha conquistado o amor de todas aquelas criaturas ignorantes, e cuja companhia havia transformado o sombrio senhor do castelo em um marido amoroso e um patrão gentil. Os antigos criados esqueceram a morte prematura de meu primo e passaram a servir-me com cordial disposição, por amor à sua jovem senhora.
Não há palavras que possam descrever a felicidade pura e perfeita daqueles dias. Eu me sentia como um viajante que tinha atravessado os mares congelados de uma região ártica, distante do amor e da companhia humana, que se encontra de repente em meio a um vale verdejante, na doce atmosfera de um lar. A mudança parecia luminosa demais para ser real; e me esforcei em vão para afastar de minha mente a sutil suspeita de que minha nova vida era apenas um sonho fantástico.
Tão breves foram aquelas horas tranquilas que, olhando para trás agora, não é estranho que eu ainda esteja meio inclinado a pensar que os primeiros dias de minha vida de casado não poderiam ter sido mais que um sonho.
Nem em meus dias de tristeza nem em meus dias de felicidade me preocupei com a lembrança do juramento blasfemo de André.
As palavras que ele sussurrou em meu ouvido com seu último suspiro pareciam vãs e sem sentido para mim. Ele tinha extravasado sua fúria naquelas ameaças inúteis, como poderia tê-lo feito em quaisquer execrações inúteis.
A única coisa que um homem pode prometer quando está às portas da morte é que assombrará os passos de seu inimigo. Se o homem tivesse o poder de se vingar dessa forma, a terra estaria povoada por fantasmas.
Eu tinha vivido por três anos em Puy Verdun; passando a solene meia-noite sentado sozinho junto à lareira onde ele se sentara, andando por corredores que ainda ecoavam seus passos; e em todo aquele tempo minha imaginação nunca me enganou tanto a ponto recriar a sombra dos mortos. É estranho, então, que eu tivesse esquecido a horrível promessa de André? Não havia nenhum retrato de meu primo em Puy Verdun. A moda da época era a arte do boudoir, miniaturas colocadas na tampa de uma bonbonnière de ouro, ou escondidas artisticamente em uma pulseira maciça estavam mais em voga do que um retrato desajeitado em tamanho real, que só servia para pendurar nas paredes sinistras de um provinciano château, raramente visitado por seu proprietário. O rosto louro de meu primo tinha adornado mais de uma bonbonnière e estava oculto em diversas pulseiras; mas não estava entre os rostos que nos olhavam das paredes apaineladas de Puy Verdun.
Na biblioteca, encontrei um quadro que me despertou lembranças dolorosas. Era o retrato de um De Brissac, que tivera fortuna na época de Francisco I; e foi dessa imagem que meu primo André copiou o curioso traje de caça que usou no baile do Regente. Como eu passava muito tempo na biblioteca; mandei pendurar uma cortina na frente do quadro.
Estávamos casados havia três meses, quando Eveline um dia perguntou:
—Quem é o senhor do castelo mais próximo a este?
Eu olhei para ela com espanto.
—Minha querida,— respondi,—você não sabe que não há outro castelo num raio de sessenta quilômetros de Puy Verdun?
—Certamente— ela disse —isso é estranho.
Perguntei porque o fato lhe parecia tão estranho; e depois de muito argumentar, finalmente consegui que me revelasse o motivo de sua surpresa.
Em suas caminhadas pelo parque e pelo bosque durante o último mês, ela conhecera um homem que, por sua vestimenta e porte, era obviamente de posição nobre. Ela tinha imaginado que ele devia ocupar algum château próximo e que sua propriedade era adjacente à nossa. Eu não conseguia imaginar quem poderia ser esse estranho; pois minha propriedade de Puy Verdun ficava no coração de uma região desolada. A não ser que a carruagem de algum viajante passasse chacoalhando e balançando pela aldeia, havia tanta chance de se esbarrar em um cavalheiro por ali quanto de encontrar um semideus.
—Você já viu esse homem muitas vezes, Eveline? — perguntei
Ela respondeu, em um tom que tinha um toque de tristeza:
—Eu o vejo todos os dias.
—Onde, querida?
—Às vezes em nosso terreno, às vezes no bosque. Naquela cascata, Hector, onde há algumas rochas antigas abandonadas que formam uma espécie de caverna. Apaixonei-me por aquele lugar e passo lá muitas manhãs, lendo. Ultimamente, tenho visto o estranho ali todas as manhãs.
—Ele nunca se atreveu a se dirigir a você?
—Nunca. Eu levantei os olhos do meu livro e o vi parado a uma pequena distância, me observando em silêncio. Continuei lendo; e quando levantei meus olhos novamente, vi que ele havia partido. Ele deve se aproximar e partir furtivamente, pois nunca ouço seus passos. Às vezes, quase desejei que ele falasse comigo. É tão terrível vê-lo ali parado em silêncio.
—Deve ser só um camponês insolente que está tentando assustar você.
Minha esposa balançou a cabeça.
—Ele não é um camponês.—respondeu —Não é só pelas roupas que digo isso, pois não conheço nada de roupas. Ele tem um ar de nobreza que é impossível confundir.
—Ele é jovem ou velho?
—Jovem e bonito.
Fiquei muito perturbado com a ideia da intrusão desse estranho nos momentos de solidão de minha esposa; e fui direto para a aldeia perguntar se algum desconhecido tinha sido visto por lá. Não consegui informações de ninguém. Questionei os servos detalhadamente, mas sem resultado. Então, decidi acompanhá-la em suas caminhadas e julgar por mim mesmo a categoria do desconhecido.
Durante uma semana, dediquei todas as minhas manhãs a passear pelo campo com Eveline na propriedade e também no bosque. Em toda aquela semana não vimos ninguém, exceto um ou outro camponês com seus tamancos de madeira, ou algum trabalhador de nossas próprias terras voltando de alguma fazenda vizinha.
Eu era um homem de hábitos estudiosos, e aquelas perambulações de verão atrapalhavam minha rotina. Minha esposa percebeu isso e implorou que eu não me incomodasse mais.
—Vou passar minhas manhãs no jardim, Hector,— disse ela—o desconhecido não pode entrar lá.
—Começo a pensar que esse estranho é apenas um fantasma de sua imaginação romântica — respondi, sorrindo ao ver seu rosto sério voltado para mim. —Uma châtelaine que está sempre lendo romances pode muito bem encontrar cavaleiros bonitos pelos bosques. Atrevo-me a dizer que tenho que agradecer a Mademoiselle Scuderi**** por este nobre estranho, e que ele é apenas o grande Ciro em trajes modernos.
—Ah, mas é isso que me deixa perplexa, Hector. O traje dele não é moderno. Ele parece uma pintura antiga que saiu andando da moldura.
Suas palavras me entristeceram, pois me lembravam daquele retrato escondido na biblioteca e do curioso traje de caça roxo e laranja que André de Brissac usou no baile do Regente.
Depois disso, Eveline limitou suas caminhadas ao jardim; e por muitas semanas não ouvi mais falar do estranho sem nome. Esqueci-me completamente dele, pois uma preocupação cada vez mais séria e pesada se abatia sobre mim. A saúde de minha esposa começou a declinar. A mudança foi tão gradual que era quase imperceptível para quem a observava dia após dia. Foi só quando ela colocou um rico vestido de gala, que não usava havia meses, que percebi quanto peso tinha perdido, pois o corpete bordado pendia folgado de seu corpo, e como estavam pálidos e opacos os seus olhos, que antes eram tão brilhantes quanto as joias que usava no cabelo.
Enviei um mensageiro a Paris para trazer um médico da corte; mas sabia que levaria muitos dias para que ele chegasse a Puy Verdun.
Enquanto esperava, observava minha esposa com um medo indizível.
Não era apenas sua saúde que piorava. Havia uma mudança mais dolorosa do que qualquer alteração física. Seu espírito brilhante e ensolarado havia desaparecido e, no lugar de minha jovem e alegre noiva, ficou uma mulher oprimida por uma profunda melancolia. Em vão procurei entender a causa da tristeza de minha amada. Ela me garantiu que não tinha motivo para desconsolo ou descontentamento e que, se parecia infeliz sem razão, eu devia perdoar sua tristeza e encará-la mais como um infortúnio do que um defeito.
Eu disse a ela que o médico da corte logo encontraria uma cura para seu desânimo que certamente tinha origem em causas físicas, visto que ela não tinha nenhum motivo real para desgosto. Mas embora ela não tenha dito nada, pude ver que não tinha esperança nem crença nos poderes curativos da medicina.
Um dia, quando quis distraí-la daquele silêncio pensativo em que costumava mergulhar por horas, disse-lhe, rindo, que ela parecia ter esquecido de seu misterioso cavaleiro da floresta, e parecia que ele também a esquecera.
Para minha surpresa, seu rosto pálido ruborizou-se; e de carmesim voltou a ficar pálido novamente em um suspiro.
—Você nunca mais o viu desde que abandonou sua gruta no bosque? — perguntei
Ela se virou para mim com um olhar de partir o coração.
—Heitor,— gemeu —eu o vejo todos os dias; e é isso que está me matando.
Se desfez em lágrimas ao dizer isso. Eu a tomei nos braços como se ela fosse uma criança assustada e tentei confortá-la.
—Minha querida, isso é loucura— eu disse.— Você sabe que ninguém pode entrar no jardim. O fosso tem três metros de largura e está sempre cheio de água, e o velho Massou mantém os portões trancados dia e noite. A châtelaine de uma fortaleza medieval não tem razão para temer nenhum intruso em seus antigos jardins.
Minha esposa balançou a cabeça, tristemente.
—Eu o vejo todos os dias.
Comecei a acreditar que minha esposa estava louca. Evitei questioná-la mais detidamente sobre seu misterioso visitante. Seria doentio, pensei, dar forma e substância à sombra que a atormentava por meio de uma investigação muito cuidadosa sobre sua aparência e maneiras, seu ir e vir.
Tive o cuidado de me assegurar de que nenhum intruso teria qualquer chance de entrar no jardim. Tendo feito isso, aguardei ansiosamente a vinda do médico.
Ele finalmente chegou. Revelei-lhe a certeza que me atormentava. Disse-lhe que acreditava que minha esposa estava louca. Ele a examinou, passou uma hora sozinho com ela e depois veio até mim. Para meu alívio indizível, me garantiu a sanidade dela.
—É possível que ela esteja afetada por um delírio,— explicou— mas está tão lúcida em relação à todas as outras coisas, que não consigo acreditar que esteja sofrendo de alguma monomania. Estou bastante inclinado a pensar que ela realmente vê a pessoa de quem fala. Ela o descreveu para mim em perfeito detalhe. As descrições de cenas ou indivíduos feitas por pacientes que sofrem de monomania são sempre mais ou menos desconexas; mas sua esposa falou comigo tão clara e calmamente como estou falando agora com o senhor. Tem certeza de que não há ninguém que possa se aproximar dela naquele jardim por onde ela caminha?
—Tenho certeza.
—Há algum parente de seu administrador, ou um empregado da casa, algum jovem com um belo rosto feminino, muito pálido e que tenha uma distintiva cicatriz carmesim, que parece a marca de um tapa?
—Meu Deus! — Exclamei, quando a luz veio a mim, de uma vez. —E as roupas, são roupas estranhas, de aparência antiquada?
—O homem veste uma roupa de caça roxa e laranja— respondeu o médico.
Então eu soube que André de Brissac tinha cumprido a sua promessa e que na hora em que a minha vida brilhava a sua sombra se interpôs entre mim e a felicidade.
Mostrei para minha esposa o retrato da biblioteca, pois ansiava assegurar-me que de que havia algum engano em minha crença a respeito de meu primo. Ela estremeceu como uma folha ao vê-lo e se agarrou a mim desesperadamente.
—Isso é bruxaria, Hector!—disse. —As roupas deste quadro, são as mesmas do homem que vejo no jardim; mas o rosto não é o dele.
Então ela me descreveu o rosto do intruso; e era o rosto do meu primo linha a linha; André de Brissac, que ela nunca tinha visto em carne e osso. O mais vívido de tudo ela descreveu foi a marca atroz em seu rosto, o traço do golpe violento de uma mão aberta.
Depois disso, a levei embora de Puy Verdun. Fomos para bem longe, pelas províncias ao sul, até o coração da Suíça. Acreditei que nos distanciávamos do medonho fantasma e desejei sinceramente que a mudança de cenário trouxesse paz para minha esposa.
Mas não foi assim. Para onde quer que fôssemos, o fantasma de André de Brissac nos seguia. Aos meus olhos, sua sombra fatal nunca se revelou. Isso teria sido uma vingança muito simplória. Foi do coração inocente de minha esposa que André fez seu instrumento de sua vingança. Sua presença profana destruiu a vida dela. Minha companhia constante não conseguia protegê-la do horripilante intruso. Em vão eu velei por ela; em vão me esforcei para consolá-la.
—Ele não vai me deixar estar em paz.— ela dizia —Ele está entre nós, Hector. Ele está de pé entre nós agora mesmo. Eu posso ver seu rosto com a marca vermelha mais claramente do que vejo o seu.
Numa noite enluarada, quando estávamos em uma vila nas montanhas do Tirol, minha esposa se jogou aos meus pés, e me disse que ela era a pior e mais vil das mulheres.
—Eu disse tudo ao meu confessor— exclamou —desde o início eu não escondi de Deus o meu pecado. Mas sinto que a morte está perto; e antes de morrer preciso revelar o meu pecado para você.
—Que pecado, minha querida?
—Quando o estranho veio até mim no bosque, sua presença me confundiu e me assustou, e eu fugi dele como fugiria de algo desconhecido e terrível. Ele voltou, de novo e de novo; e eu me vi pensando nele, esperando que ele viesse. Sua imagem me assombrava perpetuamente. Eu me esforcei em vão para tirar o rosto dele da minha cabeça. Então, por um tempo, eu não o vi e, para minha vergonha e angústia, descobri que a vida me parecia triste e desolada sem ele. Depois disso ele começou a assombrar o jardim; e… Oh, Hector, mate-me se quiser, pois eu não mereço misericórdia de suas mãos! Eu comecei a contar as as horas que antecediam a sua chegada, e não encontrava mais alegria a não ser na visão daquele rosto pálido com a marca vermelha. Ele arrancou todas as velhas alegrias conhecidas do meu coração, e deixou apenas um estranho prazer profano – o prazer de sua presença. Por um ano eu vivi só para vê-lo. Agora, amaldiçoe-me, Hector; pois este é o meu pecado. Se vem da imoralidade do meu próprio coração, ou se é um trabalho de bruxaria, eu não sei; mas eu sei que tenho lutado contra esta perversidade em vão.
Apertei minha esposa junto ao peito e a perdoei. Na verdade, o que eu tinha para perdoar? A fatalidade que nos atingiu era culpa dela?
Na noite seguinte, ela morreu, enquanto eu segurava sua mão. Em seus últimos momentos ela me disse, soluçando apavorada, que ele estava ao seu lado.
…
Notas da Tradutora:
*Filipe II de Orleans foi regente da França entre 1715 e 1723, enquanto o Rei Luis XV ainda não tinha atingido a maioridade legal.
** O castelo de Châtelet era uma fortaleza e prisão localizada onde hoje fica a Praça do Châtelet em Paris. Estava subordinada ao governo da cidade de Paris e com a abolição do cargo de Prévôt de Paris (um cargo admnistrativo local) em 1790, a fortificação perdeu sua função e foi demolida em 1802.
*** O “financista escocês” é John Law, que foi Controlador Geral das Finanças (um cargo similar ao de ministro da economia), durante a regência de Filipe de Orleans. Fundou o primeiro banco privado da França, o Banque Générale que se localizava na rua Quin-campoix. Law também foi o fundador da Companhia do Mississippi que administrava as possessões francesas na América do Norte e nas Índias Ocidentais, daí a expressão “Mississippi de Law”. A Companhia foi um dos primeiros exemplos de “bolha financeira” da História, e causou a demissão de Law em 1720.
****Madeleine de Scuderi (ou Scudéry) foi uma escritora francesa do século XVI. Muito versada em história da Antiguidade, ela se popularizou por seus romances históricos nos quais apareciam muitas figuras reais. Suas obras eram em geral muito extensas, ocupando diversos volumes. Um de seus trabalhos mais famosos foi Artaème ou Le Grand Cyrus (Artamène ou O Grande Ciro).