Saudações, leitores noturnos!
No meu último artigo, nós vimos um pouco sobre a vida e obra de um dos autores que mais aparecem aqui nas traduções do blog, M.R.James. (leia o artigo AQUI). Pois hoje eu estou de volta com outro autor, ou melhor, autora, que também já é figurinha carimbada aqui no blog e que, apesar de não ser tão conhecida do público em geral, com certeza, merece a atenção de todo o amante de histórias de assombração: Mary Elizabeth Braddon.
A carreira literária de Elizabeth Braddon se estendeu por mais de quatro décadas e seu trabalho atingiu um grande público em muito devido à sua capacidade de criar narrativa envolventes e cheias de reviravoltas, mas também graças à popularização dos periódicos e das bibliotecas ambulantes (circulating libraries) do século XIX (no meu artigo sobre contos de fantasma natalinos, eu falo um pouco sobre o stamp tax e a popularização dos periódicos literários na Inglatera vitoriana. Leia AQUI). Braddon foi atriz, escreveu cerca de 80 romances, editou revistas, fez contribuições para diversos gêneros literários, foi amiga de figuras como Oscar Wilde e Bram Stoker, e escandalizou a “boa sociedade” da era vitoriana com seus livros e seu relacionamento com o editor John Maxwell.
Mas, apesar de sua vida e obra monumentais, ela caiu em uma relativa obscuridade no século XX. Com a exceção de poucos estudiosos, só dois grupos de especialistas vem se debruçando sistematicamente sobre a obra de Braddon: feministas interessadas em resgatar sua obra dentro do bojo da literatura feminina do século XIX e especialistas no gênero de “sensation novels”, com o qual Braddon se popularizou na primeira década de sua carreira. Mas há muito mais a ser explorado na obra daquela que, nas palavras de Arnold Bennet foi “parte da Inglaterra (…) teceu-se em sua fábrica. Sem ela, a Inglaterra seria muito differente”
Então, vamos descobrir quem foi Mary Elizabeth Braddon.
Afinal, quem é Mary Elizabeth Braddon?
Mary Elizabeth Braddon nasceu em 4 de Outubro de 1835, no número 2 da rua Frith, no bairro do Soho, em Londres. Era a terceira filha de Henry e Fanny Braddon: ele um “advogado fracassado” do País de Gales e ela uma dona de casa irlandesa e protestante, apaixonada por literatura. Em sua autobiografia não-publicada “Before the Knowledge of Evil” (“Antes do Conhecimento do Mal” ainda sem tradução no Brasil), Braddon revela que seu pai foi um homem “bem apessoado” que era “seu próprio pior inimigo”. De fato, o casamento de seus pais foi infeliz em grande parte devido à irresponsabilidade financeira de Henry. Porém a gota d’água que destruiu o relacionamento de vez foi a infidelidade dele. O casal se separou quando Mary Elizabeth tinha apenas 5 anos de idade. Fanny se mudou com os três filhos para um bairro mais humilde e começou a alugar quartos para sustentar a família.
Em 1845, Mary Elizabeth foi mandada estudar em Darthmonth Lounge, um colégio interno londrino. Dois anos depois seu irmão Edward decidiu sair de casa para trabalhar no serviço civil colonial na Índia, e a irmã Margaret casou com um italiano e se mudou para Nápoles. Ao voltar do colégio interno, Mary Elizabeth se viu sozinha com a mãe e decidiu que precisava encontrar uma forma de ganhar dinheiro e ajudar nas contas da casa. Assim, entre 1852 e 1860, trabalhou como atriz, com o nome artístico de Mary Seyton. Apesar de aparecer em papéis secundários, Mary Elizabeth teve uma carreira de relativo sucesso e estabilidade, mas não pretendia ficar muito tempo em uma profissão que, na era vitoriana, era considerada só ligeiramente mais respeitável que a prostituição.
Braddon queria ser escritora.
Em 1854 ela conheceu o escritor Edward Bulwer Lytton, que se tornou um grande incentivador de seu trabalho. Ela começou escrevendo penny serials, romances em capítulos para publicações baratas com um pseudônimo, ao mesmo tempo em que continuava a carreira de atriz. Após o relativo sucesso de The Octrooon (1859) e “Three times dead” (1860) ela decidiu abandonar os palcos e se tornar escritora em tempo integral. Em Abril de 1860, procurou o editor irlandês John Maxwell, na esperança de convencê-lo a publicar um de seus contos em sua revista Welcome Guest. Ele publicou não só um, mas três contos da jovem escritora naquele mesmo ano: “Capitain Thomas”, “The Cold Embrace” (que eu já traduzi para o blog. Leia AQUI) e “My daughters”. O encontro com John Maxwell também mudaria a vida de Mary Elizabeth Braddon. Os dois se aproximaram ao longo do ano de 1860, e em 1861 já tinham engatado um relacionamento romântico. No verão do mesmo ano, ela estava estava grávida.
Braddon e Maxwell começaram a viver juntos, mas não podiam se casar por uma razão muito simples: ele já era casado. Porém a situação do editor não era tão simples quanto “homem casado abandona a família para ficar com amante.”. Na verdade a mulher dele, Mary Anne Maxwell, tinha problemas mentais graves que a tornavam incapaz de conviver socialmente, e tinha de viver sob os cuidados da família, enquanto Maxwell tinha custódia dos cinco filhos do casal. Pelas leis da época, John Maxwell só poderia se divorciar sob circunstâncias muito específicas (adultério da mulher por exemplo, já que o adultério masculino era levado pouco a sério pelas autoridades). E ainda que conseguisse o divórcio, um segundo casamento só seria possível em caso de falecimento do primeiro cônjuge.
Mary Elizabeth Braddon e John Maxwell criaram juntos os filhos do primeiro casamento dele, e os filhos que tiveram depois, e dividiam o sustento da casa, ele como editor e jornalista, e ela como escritora. Braddon continuou a escrever romances em série para publicações baratas nas década de 1860 e 1870, mas também produziu os best-sellers pelos quais ainda hoje é mais lembrada: “Lady Audley´s Secret”( “O Segredo de Lady Audley”, 1862), serializado na nova revista Robin Goodfellow, na qual Maxwell era editor, e “Aurora Floyd” (1863), serializado no periódico Temple Bar. Esta obras escandalizaram a conservadora sociedade vitoriana, mas apesar disso (ou talvez exatamente por isso!) foram sucessos comerciais que garantiram a popularidade e a renda de Braddon, que chegou a sustentar a família em momentos que os investimentos do companheiro não iam bem.
Em 1864, Maxwell abre sua própria editora, que passou a publicar os livros de Braddon. Em 1866, ele funda a revista Belgravia, da qual Braddon se tornou editora. Aliás o ano de 1866 foi cheio de altos e baixos para a escritora: o segundo filho do casal, Francis, morreu aos três anos de idade e no mesmo ano ela deu a luz a seu quarto filho, o futuro novelista William Babington Maxwell. Em 1868 Braddon perde tanto a mãe quanto a irmã e dá a luz à filha Winifred Rosalie, em um espaço de poucos meses. Neste meio tempo, conforme sua fama aumentava, circulavam rumores sobre seu relacionamento com Maxwell. O estresse acumulado pelo trabalho excessivo, o luto e a depressão pós-parto causam um colapso nervoso que impediu Mary Elizabeth Braddon de trabalhar por dois anos. Ela volta à costumeira produtividade frenética em 1871,

Em 1874, depois da morte de Mary Anne, Braddon e Maxwell finalmente puderam se casar. Como os dois tinham mais de dez anos de relacionamento, e Braddon só tinha ficado famosa depois de começar a viver com Maxwell, muitos não sabiam da verdadeira situação do casal, assim o casamento criou um novo escândalo. Alguns dos empregados da casa de Maxwell e Braddon chegaram até a pedir demissão. Mas àquela altura, Braddon já era uma figura respeitada nos círculos intelectuais de Londres e uma mulher muito mais madura e a nova onda de escândalo não a abalou. Na verdade, o casamento marcou o início de um período tranquilo e próspero em sua vida.
Entre 1875 e 1885, a residência de Mary Elizabeth e John Maxwell tinha se tornado um verdadeiro ponto de encontro para escritores e intelectuais, entre os quais Oscar Wilde, Robert Browning, Henry Irving e Bram Stoker. Nesse período, ela publicou vinte e dois livros, estudou literatura francesa, alemã, italiana e grega, mas principalmente autores realistas franceses como Flaubert, Balzac e Zola. Alguns estudiosos indicam a influência destes autores nos trabalhos de Braddon: ela abandonou os romances mais sensacionalistas que fizeram a sua fama e começou a escrever romances mais realistas como “Joshua Haggard’s daughter” (1876) e “Ishmael” (1888).
Em 1895 Maxwell morreu, deixando Mary Elizabeth viúva depois de mais de trinta anos de relacionamento e vinte de casamento. Mas Braddon continuou ativa, viajando, estudando e escrevendo, cercada por sua família e amigos. Braddon só parou de trabalhar em 1908, quando sofreu um derrame, mas grande dama da literatura vitoriana ainda viveu para a ver seu livro “Aurora Floyd” adaptado para o cinema em 1913 e para testemunhar o início da Primeira Guerra Mundial em 1914. Aliás, de acordo com todos que a conheciam e seus próprios diários e correspondências da época, a guerra foi um evento bastante traumático para Braddon. Em uma de suas cartas ela confidencia: “Eu só penso, falo e sonho com essa guerra.”.
Infelizmente ela faleceria antes do fim do conflito, em 1915.
Penny dreadfuls, Sensation Novels e romances investigativos: escrevendo crime e escândalo
Assim como muitos escritores do período vitoriano, a jovem Mary Elizabeth começou sua carreira profissional escrevendo Penny serials eram um gênero de literatura popular e barata, com histórias vendidas por capítulos semanais de 8 a 16 páginas que custavam uma moeda de um centavo ou penny, daí seu nome. Era uma espécie de mistura de novelão mexicano com os nossos conhecidos programas sensacionalistas, pois sempre narravam histórias melodramáticas e rocambolescas cheias de crime, violência e às vezes até elementos sobrenaturais. Por isso também eram chamados de penny dreadfuls, penny horrible, penny awful ou penny blood (dreadful, horrible e awful são adjetivos que tem a ver com “horrível”, “terrível”, “medonho” e blood, é claro, quer dizer “sangue”. Então dá para imaginar o tipo de conteúdo desses livrinhos!). Foi nesse gênero que se originaram alguns personagens que ainda hoje são parte da cultura popular como o barbeiro assassino Sweeney Todd e bandoleiro Dick Turpin. Braddon escreveu diversos Penny Dreadfuls entre os quais o mais popular foi “The Black Band or The Mysteries of Midnight” (“A Facção Negra ou Os Mistérios da Meia-Noite”, 1876-1877), uma história de intriga na qual uma assassina organiza uma rede internacional de malfeitores.

Os Penny Serials proporcionaram a Mary Elizabeth Braddon uma renda estável, e até generosa, mas ela conquistou o público com o gênero conhecido como sensation novels. Traduzindo ao pé da letra, sensation novel era algo como “romances sensação” ou o que poderíamos chamar de romances “sensacionalistas”. Braddon fez tanto sucesso no gênero que seu nome ficou associado com ele, a tal ponto que, de certa forma, essa fama chegou a eclipsar o restante de sua obra anterior e posterior.
Sensation novels , vamos chamá-lo de “romances-sensação” , combinam elementos do romance tradicional e do romance realista, aplicando suas estruturas narrativas à histórias de crime, adultério, sedução, mistério e intriga. Estas histórias se passavam em cenários contemporâneos e domésticos e tinham personagens de classe média a alta como protagonistas e antagonistas, o que explica muito da polêmica associada com eles. Os detratores dos romances-sensação não se sentiam incomodados só com os crimes e violência apresentados no texto, mas principalmente, não gostavam de como esses tópicos eram apresentados.
A sociedade vitoriana atribuía o comportamentos desviantes, criminosos e violentos às classes mais pobres ou a diferentes raças/etnias e nacionalidades. No entanto, os romances-sensação descreviam crimes e desvios comportamentais de personagens que pertenciam às classe média e alta da sociedade britânica. Era esse elemento que os tornava escandalosos. Eles apresentavam a violência como algo desconfortavelmente próximo para o público mais “refinado” e, assim, questionavam a ideia de as classes mais privilegiadas seriam supostamente menos propensas a atos criminosos ou imorais. O arcebispo de York, William Thomson, exemplifica o tipo de crítica que esses romances recebiam em sua declaração ao jornal “The Time”: “Eles querem convencer as pessoas que em quase todas as casas respeitáveis de seus vizinhos há um esqueleto escondido em algum armário.”
Muitos estudiosos sugerem que outra razão para a polêmica em relação aos romances-sensação seria o fato de ser um gênero muito consumido pelo público feminino e também por muitos destes romances serem escritos por mulheres. Existia um certo pânico em relação à associação entre mulheres, tanto como escritoras quanto leitoras, com um gênero literário tão escandalosos que, na opinião dos mais moralistas poderia até conduzir à decadência moral. A sociedade vitoriana considerava as mulheres frágeis não só fisicamente, como também emocional e mentalmente, o que as tornaria facilmente influenciáveis. Por isso considerava-se que elas precisavam da orientação masculina, fosse do pai ou do marido, para se comportar adequadamente. A leitura de romances cujo objetivo era justamente causar um “frisson” (daí o uso do termo “sensação”) através da representação de atos imorais não condizia com o ideal de feminilidade vigente. A popularidade destes romances entre as leitoras também era considerada por muitos como prova de que as mulheres eram naturalmente desajuizadas, e tinham que ser mantidas sob controle.
Mary Elizabeth Braddon foi um dos maiores nomes do romance-sensação graças aos seus romances “Lady Audley’s Secret” ( “O Segredo de Lady Audley”) e “Aurora Floyd”. Os dois romances tinham como protagonistas belas mulheres que transgrediam as rígidas regras da sociedade vitoriana, escondendo segredos, intrigas e até crimes por trás da fachada de feminilidade perfeita. Estas personagens pareciam se encaixar nos moldes vitorianos para o comportamento feminino, o que tornava suas transgressões ainda mais chocantes (e interessantes!) para o público. Em “Lady Audley’s secret” a protagonista, Lucy, se casa com um homem mais velho, o rico e bondoso viúvo Michael Audley. Antes do casamento Lucy tinha sido governanta, mas pouco se sabe de seu passado antes disso. O sobrinho de Michael, o advogado Robert Audley começa a suspeitar da nova mulher do tio ao perceber que ela faz de tudo para evitar a presença de seu amigo George. A investigação de Robert sobre o passado de Lucy e sua misteriosa ligação com George tem todos os elementos de um bom romance investigativo, e os segredos escandalosos que ele descobre deixaram os leitores vitorianos tão em polvorosa, que Braddon teve que escrever “Aurora Floyd” logo em seguida. Neste romance, Aurora, a mimada filha de um baqueiro, se envolve com dois homens, o rico Thalbot Bullstrode e o inescrupuloso James Conyers. Como se não bastasse o triangulo amoroso, a protagonista ainda se vê implicada em um assassinato.

O sucesso destes romances foi uma faca de dois gumes para Braddon. Por um lado ela tinha se tornado uma das escritoras mais populares do país, mas por outro lado seu nome estava associado com um gênero literário que não era bem visto pelos chamados críticos “sérios”. Muitos deles viam os romances como uma espécie de extensão natural do autor ou autora, o que fez com que uma parte da opinião pública começasse a ver Braddon como uma mulher imoral, pois só assim ela seria, supostamente, capaz de escrever as tramas que escrevia. O fato de viver com John Maxwell sem ser casada com ele também contribuiu para esta narrativa. O escândalo pode até ter ajudado a vender mais livros, mas a verdade é Braddon era apenas uma escritora, dona de casa e mãe de filhos ainda pequenos, o que tornava a fama bastante incômoda.
Os romances-sensação também permitiram a Braddon escrever sobre um tema que lhe interessava desde seu trabalho com penny dreadfuls: as narrativas investigativas. Esta era uma característica presente em boa parte de sua obra, e seu trabalho foi instrumental para estabelecer a ficção investigativa na Inglaterra.
Quando se fala de detetives literários sempre nos lembramos do Sherlock Holmes de Conan Doyle ou do Auguste Dupin de Edgar Allan Poe, ou, mais raramente, do Sargento Cuff de Wilkie Collins (outro autor de sensation novels, como Braddon), mas nem sempre falamos das contibuições femininas para o gênero. Mary Elizabeth Braddon escreveu o primeiro romance de detetive da história da literatura britânica: “Three times dead” (“Três vezes morto”), posteriomente re-lançado como The Trail of the Serpent” (“O rastro da Serpente”). Seu trabalho de ficção investigativa tem as reviravoltas, intrigas e elementos claramente inspiradas pelos penny dreadfuls e sensation novels, mas Braddon traz inovações, principalmente na construção de personagens únicos como Joseph Peters, o primeiro detetive literário a ser portador de deficiência: Peters é mudo e se comunica através da linguagem de sinais. Outros de seus romances trazem detetives mulheres como Eleanor Vane em “Eleanor’s Victory” (“A vitória de Eleanor”) e Margaret Wilmot em “Henry Dunbar”. Ao longo das décadas de 1870 e 1880 ela escreveria diversos romances investigativos como “Rough Justice” (“Dura Justiça” 1898) e “His darling sin” (“Seu querido pecado”,1899).
Contos assombrados: fantasmas domésticos e sociais
Embora sua carreira tenha sido marcada por romances de caráter mais realista, Mary Elizabeth Braddon também escreveu diversos contos de temática sobrenatural (alguns dos quais já foram publicados aqui no blog). Evidentemente, estes textos são muito diferentes de seus romances. Textos como “Lady Audley’s secret” ou “Three times dead” foram escritos para um consumo que poderíamos chamar de mais “comercial” e massificado. Neles, o importante é a narrativa envolvente, cheia de idas e vindas que prendam o leitor, já que estes romances eram serializados, então funcionavam mais ou menos como as nossas novelas e seriados, com revelações e plot twists. Os contos de fantasma eram textos “fechados” que se encaixavam em uma tradição, mais bem vista e “familiar”, muitas vezes associada até com as festas de fim de ano, por isso tendiam a ser mais sutis e reflexivos, sem os elementos polêmicos de seus outros trabalhos.
Nestes contos podemos também ter um vislumbre das opiniões de Braddon sobre certas questões sociais relevantes na época. Especialmente depois de se tornar editora da Revista Belgravia e do periódico natalino Mistletoe Bough, Braddon começa a usar o formato da história de fantasma como veículo para algumas críticas em relação às políticas sociais que ignoravam a vulnerabilidade de vários setores da sociedade vitoriana, como mulheres e pessoas mais pobres. Ela também critica o individualismo e laissez-faire econômico que permitiam que a elite ignorasse estas pessoas. Os protagonistas de seus contos de fantasma muita vezes se veem presos em situações criadas por circunstâncias sociais fora de seu controle. Não são, como Aurora Floyd or Lucy Audley, vítimas de seus próprios comportamentos ou de comportamentos de outras pessoas, mas vítimas de uma sociedade que não os protege nem lhes dá a liberdade de agir e escapar das ameaças sobrenaturais que encontram.
Não é por acaso que o auge da popularidade da história de fantasma britânica no século XIX tenha coincidido com um período de extensas reformas sociais que reviam sobretudo os direitos de crianças e mulheres, como a Lei de Educação (Education Act – 1870), leis que permitiam a mulheres casadas ter controle sobre suas propriedades (Married Women’s Property Act-1873), a revisão das leis matrimoniais (Matrimonial Causes Act- 1878) e direitos de custódia sobre os próprios filhos enquanto ainda fossem bebês (Custody of Infants Act 1873), a entrada de mulheres nas universidades (Act of 1875), entre outras. A Revolução Industrial tinha trazido importantes desenvolvimentos econômicos e progresso, mas também criara condições de trabalho insalubres, e explorou o trabalho de pessoas das classes sociais mais baixas, até de crianças, sem oferecer nenhum tipo de segurança ou proteção legal. O resultado natural do processo foi o aprofundamento das desigualdades sociais, em especial nas cidades, cuja população aumentava a olhos vistos. Por isso havia na Inglaterra da época um movimento para revisar e melhorar o sistema educacional e os serviços disponíveis para o auxílio de pessoas em situação de vulnerabilidade, como trabalhadores de fabricas, crianças e mulheres que, apesar de fazerem parte da força de trabalho, não tinham qualquer direito nem mesmo sobre a custódia seus filhos ou a possuir propriedade.
Podemos ver nas obras de Charles Dickens um dos mais famosos exemplos de crítica social do período vitoriano, mas vários outros escritores e intelectuais também defenderam a necessidade de reforma. No entanto, apesar da mudança de certas leis, da expansão econômica e do incentivo à filantropia, vista como uma atividade desejável pelas elites, as desigualdades continuaram a se aprofundar, em muito devido à falta de reformas estruturais mecanismos que pudessem equilibrar a distribuição de renda e regular o sistema econômico. Sem mudanças profundas, as novas leis pareciam mais caridade do que reformas verdadeiras.
Os contos sobrenaturais de Mary Elizabeth Braddon usam estas desigualdades sociais como pano de fundo de uma forma muito mais sutil do que, por exemplo, Charles Dickens, mas o elemento de crítica está presente. A divisão em classes da sociedade britânica, a vulnerabilidade social das mulheres que eram quase propriedade dos maridos e a falta de oportunidade e mobilidade social são todos elementos que aparecem nas histórias de Braddon. Estas desigualdade geralmente são apresentada dentro do contexto das relações domésticas, nas quais as diferentes classes sociais se encontravam nas relações familiares e nas relações entre patrões e empregados da mesma maneira que o sobrenatural encontra o material.
É interessante notar que muitos dos personagens dos contos de Mary Elizabeth Braddon são empregados domésticos, e principalmente jovens mulheres que precisam trabalhar como governantas ou criadas para se sustentar, como nos contos “Good Lady Ducayne” (“A bondosa Lady Ducayne”), “At Chrighton Abbey” (“Na Mansão Crighton”) e “The Shadow in the Corner (“traduzido no Brasil como “A Sombra da Morte”, na coletânea “Vitorianas Macabras” da editora Darkside). A posição dos empregados domésticos nas casas da classe média e alta da era vitoriana é bastante análoga à figura do fantasma. Tanto o empregado doméstico quanto o fantasma estão presentes dento da casa, mas não são parte do núcleo familiar, estão isolados dos laços de comunicação e afetividade da família. Como o fantasma, os empregados domésticos observam o dia-a-dia da família “respeitável” de classe média e alta e fazem parte da casa sem ser verdadeiramente parte da família. E finalmente, assim como o fantasma, o empregado doméstico está presente, mas é invisível, o que gera uma sensação de descontentamento e desconforto. Essa qualidade de “invisibilidade” é mais profunda para as empregadas domésticas, que por sua posição social e seu gênero estão em uma dupla desvantagem.
Vejamos por exemplo a história “At Chrighton Abbey”, publicada na revista Belgravia, em 1871. A protagonista e narradora, Sarah Crighton, é filha de um clérigo e recebeu uma educação rara para mulheres da época. Mas ao ficar órfã, ela se vê sozinha e bem-educada em uma sociedade que espera das mulheres que se casem e não tenham uma educação esmerada. Ela tem que trabalhar para se sustentar, e busca emprego com famílias em Viena e São Petersburgo para não “envergonhar a antiga família à qual pertencia” com sua proximidade. Desejosa de voltar à Inglaterra e rever a família, ela aceita o convite de seus parentes ricos para visitar a mansão ancestral dos Crighton. A posição de Sarah frente à família é desconfortável: ela é uma Crighton, mas ao mesmo tempo sua posição social a deixa mais próxima dos empregados. É significativo que Sarah seja testemunha das aparições na casa, pois assim como os empregados ela é uma observadora invisível, separada dos dramas familiares por sua posição social. Ela só ocupa esta posição “subalterna” por ser mulher.
Em muitas das histórias de Braddon os empregados e principalmente as empregadas detém conhecimento sobre o sobrenatural e os eventos estranhos que ocorrem na residência, pois conhecem a casa intimamente. São observadores que circulam livremente, invisibilizados por sua condição de servidão. Mas quando tentam compartilhar esse conhecimento com seus patrões, geralmente não são levados a sério. Os patrões consideram sua superioridade social como sinônimo de superioridade intelectual, e por serem “superiores” socialmente, não recebem conselhos de seus “inferiores”.
Isso acontece no conto “The Face in the Glass” (“O Rosto no Espelho”, que eu já traduzi para o blog. Leia AQUI). Nele um jovem e rico casal se muda para a residência ancestral da família do marido. Várias histórias circulam a respeito da casa, em especial sobre um dos quartos, no qual, tradicionalmente, os membros falecidos da família foram preparados para o funeral. Durante um inverno particularmente rigoroso, os dois começam a ficar entediados e resolvem explorar a mansão em busca dos tão falados fantasmas. Durante a “caça aos fantasmas”, o casal encontra o famigerado “quarto da morte” trancado. A chave está com a governanta, Lucy, que suplica aos dois que não entrem no aposento. O casal, obviamente, declara que o medo de Lucy não passa de superstição e entram no quarto mesmo assim. A narrativa mantém uma certa ambiguidade a respeito do quanto dos eventos que se seguem a essa decisão seriam, de fato, diretamente associados com algo de sobrenatural, mas o tom da narrativa parece indicar que as coisas poderiam ter sido diferentes se os protagonista tivessem sido menos prepotentes e ouvido a governanta. Neste conto a empregada é uma personagem secundária, cuja função é informar aos protagonistas, e consequentemente ao leitor, sobre a história da casa. As consequências da prepotência dos patrões não chegam a recair sobre ela.
Este não é o caso do conto “The Shadow in the corner”/”A sombra da morte”. Nesta história, Braddon retorna ao tema da separação entre classes de forma mais explícita e trágica, desta vez com enfoque na educação, ou melhor nas disparidades no acesso à educação. Um dos protagonistas, Michael Bascom é um professor universitário aposentado, especializado em ciências naturais, que passa seu tempo estudando. Ele tem dois criados idosos, Daniel Skegg e sua esposa. Para ajudar com os trabalhos domésticos mais pesados, Skegg contrata Maria, uma jovem órfã. O pai de Maria, um comerciante, tentou dar uma boa educação à filha, acima inclusive do padrão estabelecido para mulheres. Infelizmente, a morte abrupta do pai interrompe a educação da jovem que, então, precisa ganhar a vida como empregada doméstica. Maria é inteligente e agradável, e Michael se admira com a suas boas maneira, que ele não espera de uma pessoa de origem humilde. Porém, depois de alguns dias, Michael percebe que Maria não está bem. Ela atribui seu mal estar à visão de um homem enforcado, que aparece em seu quarto todas as noites antes do amanhecer. Michael, do alto de sua soberba intelectual decide provar a irracionalidade dos medos da jovem.
A tensão entre a suposta racionalidade acadêmica do patrão e as experiências sobrenaturais da empregada são na verdade um conflito entre a mentalidade de uma elite que tem acesso à educação formal e a experiência vivida de pessoas que não tem esse acesso. Michael e Maria são opostos perfeitos: ele é um homem maduro, professor universitário e parte da elite, ela é uma mulher jovem e pobre que teve sua educação interrompida pela necessidade de trabalhar para se sustentar. Ele tem todas as vantagens possíveis sobre ela, tanto de gênero, quanto de idade e classe social. Não interessa a Michael se os fatos que Maria relata são verdadeiros ou não, pois ele decide de antemão que a perspectiva dela só pode ser irracional, supersticiosa, enquanto a sua própria perspectiva só pode ser racional e científica. O acesso e o controle do conhecimento por parte da elite não só barra o acesso de pessoas como Maria a condições de vida melhor, mas também serve como ferramenta para invalidar sua experiência vivida. Este monopólio do conhecimento também cria um paradoxo: como Michael tem absoluta certeza de que ele só pode estar certo e Maria só pode estar errada, o conhecimento científico que ele supostamente representa acaba se tornando um dogma. Ele se recusa a sequer considerar qualquer possibilidade que não se encaixa em suas opiniões pré-concebidas A “racionalidade” de Michael não passa de elitismo. Como Michael detém todo o poder na relação com Maria, o elitismo e teimosia dele tem consequências trágicas para ela, que não tem como se impor diante dele. O conto acaba se tornando quase uma alegoria de como a pretensão das elites que se consideram intelectualmente superiores causa danos à pessoas das classes menos privilegiadas, apagando suas experiências vividas e ignorando seus saberes e necessidades.
Como afirma Margaret Tromp no livro “Beyond sensation”: “É uma marca de seu comprometimento com a crítica social, que as histórias de fantasma de Braddon frequentemente se recusam a resolver-se com alguma explicação espectral simples: no final, ela não revela claramente se o elemento fantástico que parece assombrar cada história é suficiente para explicar a catástrofe que se realiza. Em vez disso, ela sugere que são forças mais comuns e humanas, como a pobreza, ganância, orgulho e complacência que assombram os personagens e definem seu destino.” As entidades sobrenaturais destas histórias operam quase como símbolos da repressão social, de gênero e econômica. As novas legislações não serviram para resolver os problemas sociais, elas apenas as maquiaram, então, como os fantasmas que assombram as ricas casas e mansões da elite, a desigualdade segue “assombrando” a sociedade vitoriana. Assim como segue assombrando a nossa.

Materiais Consultados:
Sites
Livros
Bradon, Mary Elizabeth. Delphi Collected Works of Mary Elizabeth Braddon. East Sussex: Delphi Publishing, 2013
Braddon, Mary Elizabeth The Face in the glass: The Gothic Tales of Mary Elizabeth Braddon. Londres: The British Library, 2014
Beller, Anne-Marie. Mary Elizabeth Braddon: A companion to the Mystery Fiction. Jefferson: McFarland & Co, 2012
Tromp, Marlene; Gilbert, Pamela; and Haynie, Aeron; editors. Beyond Sensation: Mary Elizabeth Braddon in Context. Albany: State University of New York Press, 2000.
Wolff, Robert Lee. Sensational Victorian: The Life and Fiction of Mary Elizabeth Braddon. New York: Garland, 1979