“The Striding place” foi publicado pela primeira vez em Junho de 1896 na revista “The Speaker” com o título de “The Twins” (“Os Gêmeos”). A versão definitiva com o título modificado foi publicada em 1905 na coletânea “The Bell Jar and Other Stories”.
Como o rio Wharfe e o trecho conhecido como “Strid” mencionados neste conto realmente existem (ficam na região de Yorkshire, na Inglaterra,), optei por não traduzir seus nomes. O termo “Strid” vem do inglês antigo “stryth”, que significa “turbulência” e é o nome popular de um trecho do rio Wharfe formado por uma série de quedas d’água com rápidas corredeiras, por baixo da quais existem cavernas formadas pelo estreitamento do rio.
…
Weigall, continental e blasé, logo se cansou de caçar perdizes. Ficar apoiado contra uma cerca viva enquanto os servos de seu anfitrião cutucavam os pássaros com longas varas para conduzi-los na direção das armas fazia com que ele se sentisse uma caricatura dos antepassados que andavam pelos pântanos e florestas a oeste de Yorkshire caçando presas dignas. Mas sempre que visitava a Inglaterra em agosto, aceitava tudo o que lhe era proposto como passatempo e convidava seu anfitrião para caçar faisões em suas propriedades no sul. Os prazeres da vida, ele argumentava, deveriam ser aceitos com a mesma filosofia que se aceita seus males.
O dia tinha sido ruim. Uma chuva forte deixara a charneca tão esponjosa que o terreno praticamente escapava sob os pés. Talvez as perdizes tivessem encontrado esconderijos onde se proteger, pois tinham caçado pouco. As mulheres também eram extraordinariamente desinteressantes, com exceção de uma debutante ousada que importunou Weigall durante o jantar inteiro com seus comentários sobre a restauração das delicadas pinturas no teto abobadado acima deles.
Mas nada disso passava pela cabeça de Weigall quando ele saiu do castelo e desceu até o rio, depois que todos já tinham ido para a cama. Seu amigo íntimo, o amigo de sua infância, o camarada de seus dias de faculdade, seu companheiro de viagem por tantas terras, o homem por quem ele possuía uma afeição mais forte que qualquer outra, havia desaparecido misteriosamente dois dias antes. Seus rastros, quaisquer vestígios que ele poderia ter deixado para trás pareciam ter sumido no ar. Ele tinha se hospedado em uma propriedade vizinha na semana anterior, caçando com o fervor de um verdadeiro desportista e cortejando Adeline Cavan, aparentemente de muito bom humor. Pelo que se sabia, não havia qualquer coisa que pudesse interferir em sua felicidade: sua folha de aluguéis era longa, a Srta. Cavan corava sempre que ele olhava para ela e, sendo um dos melhores atiradores da Inglaterra, Agosto era a sua época preferida do ano. A teoria do suicídio era absurda, todos concordavam, e havia poucos motivos para acreditar que ele teria sido assassinado. Ainda assim, ele tinha saído de March Abbey duas noites antes, sem chapéu nem sobretudo, para nunca mais ser visto.
Dia e noite, eram conduzidas buscas pelos campos. Uma centena de tratadores e servos vasculhavam a floresta e escavavam os brejos e as charnecas, mas nem um lenço sequer havia sido encontrado.
Weigall não conseguia acreditar que Wyatt Gifford pudesse estar morto e, embora fosse impossível não ser afetado pela inquietação generalizada, ele começava a se sentir mais irritado do que assustado. Em Cambridge, Gifford fora um brincalhão incorrigível e nunca tinha se curado esse hábito. Seria bem típico dele, atravessar o campo em seu traje de festa, embarcar em algum trem de gado e se divertir pensado na confusão que tinha causado em West Riding.
Porém, o afeto de Weigall por seu amigo era profundo demais para que ele se tranquilizasse em face de tanta incerteza. Assim, em vez de ir para a cama cedo como os demais, decidiu caminhar até que o sono viesse. Ele desceu até o rio e seguiu o caminho pela floresta. Não havia lua, mas as estrelas salpicavam sua luz fria sobre o belo cinturão de água que fluía placidamente, passando por bosques e ruínas, entre massas esverdeadas de rochas pendentes e margens íngremes emaranhadas de árvores e arbustos, saltando aqui e ali sobre as pedras com o rumoreja áspero de uma reclamação raivosa, para recuperar sua constância no momento em que o caminho ficava livre novamente.
As profundezas do bosque por onde Weigall caminhava eram pura escuridão. Sorriu ao se lembrar de uma observação de Gifford: “Um bosque inglês é como muitas coisas na vida: bem promissor à distância, mas um escárnio vazio quando você entra. Você vê a luz do dia em todos os lados, e o sol banha até as plantas de sombra. Nossos bosques precisam da noite para fazê-los parecer com o que deveriam ser, com o que já foram, antes que os descendentes de nossos ancestrais exigissem muito mais dinheiro, agora que as coisas são tão diferentes.”
Weigall passeava, fumando e pensando em seu amigo e em suas travessuras, muitas das quais o assustaram bem mais que essa, relembrando suas conversas que iam pela noite adentro. Uma certa noite de muito calor, pouco antes de terminarem uma temporada em Londres, os dois estavam caminhado pelas ruas ao sair de uma festa, e discutindo as várias teorias sobre o destino da alma. Naquela tarde, eles tinham ido ao funeral de um amigo da faculdade cuja mente não estivera sã por pelo menos três anos antes de morrer. Alguns meses antes, eles haviam visitado o manicômio para vê-lo. Sua expressão era senil, e seu rosto estava marcado pelos rastros de uma vida libertina. Na morte, seu rosto parecia plácido, inteligente, sem uma linha ignóbil – era o rosto do homem que conheceram na faculdade. Weigall e Gifford não tiveram tempo para comentar isso, já que a tarde e a noite foram movimentadas; mas, saindo juntos da festa, voltaram quase imediatamente ao assunto.
—Me agrada a teoria—dissera Gifford—de que a alma às vezes permanece no corpo após a morte. Durante a loucura, é claro, ela é como uma prisioneira impotente, embora consciente. Imagine a agonia, o horror! O que poderia ser mais natural? Quando a centelha da vida se apaga, a alma torturada deve se apossar do crânio vazio e triunfar de novo por algumas horas enquanto os velhos amigos visitam pela última vez. Ela teria tempo de se arrepender enquanto é obrigada a se curvar e contemplar o resultado de suas ações, e se recolhe em um estado de pureza comparativa. Se eu pudesse, ficaria dentro de meus ossos até que meu caixão entrasse em seu nicho, para salvaguardar meu corpo da trágica impessoalidade da morte. E eu gostaria de testemunhar a justiça feita a ele, por assim dizer, vê-lo ser depositado junto aos ancestrais com a cerimônia e solenidade que lhe são devidas. Tenho medo de que, se minha alma se libertasse muito rapidamente, cederia à curiosidade e me apressaria a investigar os mistérios do espaço.
—Você acredita na alma como uma entidade independente, então? Que a alma e o princípio vital não são uma coisa só?
—Com certeza. O corpo e a alma são gêmeos, companheiros de vida; às vezes amigos, às vezes inimigos, mas sempre leais em última instância. Algum dia, quando estiver cansado do mundo, irei para a Índia e me tornarei um mahatma, apenas pelo prazer de receber ainda em vida a prova desta relação independente.
—Imagine que você não fosse selado adequadamente e retornasse após um de seus voos astrais para encontrar sua parte terrestre imprópria para habitação? É um experimento que eu não gostaria de tentar, a menos que a conexão da alma com a carne tenha se enfraquecido.
—Isso não seria uma situação desinteressante. Eu prefiro fazer experiências com máquinas quebradas.
O rugido ensurdecedor e selvagem da água atingiu de repente o ouvido de Weigall e espatifou suas memórias. Ele saiu da floresta e caminhou sobre as enormes pedras escorregadias que, naquele ponto, quase fecham o rio Wharfe, e observou as águas borbulharem na passagem estreita com sua energia furiosa e incansável. O silêncio negro da floresta avolumava-se ao redor. As estrelas pareciam mais frias e pálidas acima de sua cabeça. De cada lado, o correr do rio parecia levar a uma caverna sem luz. Não havia lugar mais solitário na Inglaterra. Nenhum outro tinha direito de reivindicar tantos fantasmas, se é que ali os havia.
Weigall não era um covarde, mas lembrava-se com desconforto das histórias daqueles que haviam morrido no Strid. Havia o caso do menino dos Egremond, do poema de Wordsworth, resolvido pelo prático Whitaker1; mas houvera incontáveis outros, mais ousados do que sábios, que haviam descido aquela estreita corredeira buliçosa, sem nunca chegar a emergir no lago tranquilo onde ela desaguava. Em baixo das grandes rochas que formavam as margens do Strid, acreditava-se existir uma câmara natural, em cujas reentrâncias os mortos ficavam presos. O local tinha um fascínio macabro. Weigall ficou ali, imaginando esqueletos esverdeados insepultos, o lar das criaturas cegas que devoravam a carne que um dia tinha coberto e preenchido o símbolo aterrador da mortalidade humana. Então começou a se perguntar se alguém havia tentado cruzar o Strid recentemente. Estava coberto de lodo. Nunca antes lhe pareceu tão traiçoeiro.
Estremeceu e voltou-se, impelido, apesar de sua valentia, a fugir dali. Ao se virar, algo chamou sua atenção, alguma coisa se mexia na corredeira, tão branco quanto a espuma, mas claramente diferente dela.. Wigall parou. Então viu que o objeto se movimentava contra a corrente, se mexendo para cima e para trás. Weigall ficou rígido,sem fôlego; teve a impressão de até ouvir seus cabelos se arrepiarem. Aquilo era uma mão? O objeto se lançou ainda mais alto, por cima acima da espuma borbulhante, virou de lado, e quatro dedos frenéticos ficaram claramente visíveis contra a rocha negra.
Seu medo supersticioso desapareceu. Havia um homem ali, lutando para se libertar da correnteza do Strid. Com certeza, tinha sido carregado pela água enquanto Weigall estava de costas para o rio.
Chegou o mais perto que conseguiu da margem. A mão se contorceu como que em súplica, tremendo selvagemente diante daquela força que submete as criaturas à sua lei imutável. Em seguida, a mão abriu-se novamente, agarrando-se, esticando-se, implorando por ajuda tão claramente quanto uma voz humana.
Weigall correu para a árvore mais próxima e, com seus braços fortes, agarrou e quebrou um galho, depois voltou às pressas para junto do Strid. A mão estava no mesmo lugar, ainda gesticulando enlouquecidamente, com certeza o corpo estava preso nas pedras do fundo, talvez já estivesse sendo puxado para aquelas temíveis reentrâncias. Weigall desceu por uma das pedras mais baixas, apoiou o ombro contra as rochas e se inclinou por sobre a água para estender o galho até aquela mão. Os dedos se agarraram convulsivamente. Weigall puxou com força, enquanto seus pés eram perigosamente arrastados para perto da margem. Por um momento ele não viu nada, mas então um braço se ergueu por sobre as águas.
O sangue subiu para a cabeça de Weigall; ele se sentiu sufocar como se o Strid o tivesse agarrado em seu esurdecedor abraço, depois não viu mais nada. Então a névoa se dissipou. A mão e o braço estavam mais próximos, embora o resto do corpo ainda estivesse escondido pela espuma. Weigall arregalou os olhos para ver. A escassa luz revelou a forma peculiar das abotoaduras. Os dedos que seguravam o galho eram familiares.
Weigall esqueceu as pedras escorregadias, esqueceu que uma morte terrível o esperava se ele se mergulhasse muito fundo. Puxou o galho com força, com vontade As lembranças se lançaram contra a luz quente de seu cérebro, uma atrás da outra, como a vida passa diante dos olhos do afogado. A maioria das emoções de sua vida, boas ou ruins, estavam associadas de alguma forma com esse amigo. Cenas dos dias de faculdade, das viagens nas quais eles deliberadamente buscaram aventuras e protegeram um ao outro da morte em mais de uma ocasião, das horas de companheirismo feliz entre tesouros da arte, horas passadas em busca de diversão, todas brilhavam como as partículas cambiantes de um caleidoscópio. Weigall tinha amado várias mulheres; mas neste momento ele desprezada a ideia de que um dia teria chegado a amar qualquer uma delas como amava Wyatt Gifford. Havia muitas mulheres encantadoras no mundo, mas em trinta e dois anos de vida ele nunca tinha conhecido outro homem com quem tivesse o desejo de compartilhar sua amizade mais íntima.
Jogou-se para a frente. Seus pulsos estavam se partindo, a pele rasgada de suas mãos. Mas seus dedos ainda se agarravam ao galho. Ainda havia vida neles.
De repente, algo se moveu. A mão deu um tranco, arrancando o galho de Weigall. Ao se soltar, ele caiu para trás para longe, ainda submerso na água e na espuma.
Levantou-se com dificuldade e correu ao longo das rochas, sabendo que o perigo de ser puxado para o fundo tinha ficado para trás, e que agora Gifford seria carregado direto para a o lago tranquilo. Gifford era um verdadeiro peixe na água e conseguia aguentar mais tempo submerso que a maioria dos homens. Se ele sobrevivesse, não seria a primeira vez que ele seria salvo de um afogamento por sua coragem e habilidade.
Weigall chegou ao lago. Um homem em trajes de festa flutuava na água, seu rosto voltado para uma rocha saliente na qual seu braço havia se enroscado, segurando o corpo. A mão que segurava o galho pendia frouxamente da rocha, seu reflexo branco visível na água negra. Weigall mergulhou no lago raso, ergueu Gifford em seus braços e nadou de volta para a margem. Ele deitou o corpo e tirou seu próprio casaco, a fim de ficar livre para por em prática os métodos de ressuscitação. Foi um bem-vindo momento de alivio. A vida valente do amigo poderia se exaurido naquela última luta. Não ousou olhar para o rosto, nem encostar o ouvido no coração. A hesitação durou apenas um momento. Não havia tempo a perder.
Ele se virou para o amigo prostrado. Ao fazer isso, algo estranho e desagradável atingiu seus sentidos. Por um momento ele não compreendeu a natureza daquela sensação Então seus dentes trincaram, seus pés, seus braços pareciam querer levá-lo para a floresta. Mas saltou para o lado do amigo e se curvou para examinar seu rosto.
Seu rosto desaparecera.
“A esse lugar de passagem chamam ‘Strid’/um nome vindo do passado./ Por mil anos assim o chamam/ e por esse nome, outros mil anos, será chamado” (William Wordsworth,“The Force of Prayer”).
Notas da Tradutora:
1 Ao falar do “menino Egremont”, a autora faz referência à um acontecimento histórico que ganhou ares de lendas na região de Yorkshire. No século XII um menino, descendente de um nobre local, o Lorde Egremont, teria se afogado no rio Wharfe. Segundo a versão mais bem documentada dos acontecimentos, o menino seria filho de Alice Romley (ou Romillé, ou Romilly), neta do Lorde Egremont, Como Egremont não tinha filhos homens, seus bens passaram para Alice e eram adminsitrados por seu marido, William Fitz Duncan.
Segundo testemunhos (entre os quais o de um certo Dr. Whitaker, mencionado no conto), o filho de Alice, que se chamava William como o pai, estava passeando na floresta com seu cachorro e tentou pular de uma margem para a outra onde o rio era mais estreito. O adolescente caiu na água e foi levado pela correnteza do Strid. William era o único filho, e suas irmãs só tiveram filhas, o que fez com que o patrimônio da família fosse dividido. A morte de William e a falta de herdeiros homens dos Egremont, deu origem a uma lenda local segundo a qual a família seria amaldiçoada.
A história da morte de William, que ficou mais conhecido como “o menino Egremont” ou “o menino perdido dos Egremont” foi tema de vários poemas como “The Boy of Egremont” de Joseph Mallord William Turner, e “The Horn of Egremont” e “The Force of Prayer” ambos de William Wordsworth (o poeta citado pela autora)
O castelo de Egremont ainda existe, mas está em ruínas.
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