O que é Halloween, afinal?

(Artigo publicado originalmente em 31 de Outubro de 2020.)

Saudações, leitor noturno!

Você sabe que dia é hoje, não?

Pois é, hoje é Halloween!

“Gostosuras ou travessuras?”
(Foto: Nick Fewins)

Bem, o Halloween vem de muito antes das abóboras e do “Gostosuras ou travessuras”.

A palavra “Halloween” é uma contração da expressão “All Hallows Eve” (Véspera de Todos os Santos), que se refere à data que marca a vigília da véspera do Dia de Todos os Santos de acordo com o calendário litúrgico cristão. É o início de um período de três dias de observância dedicado à lembrar os mortos (chamado em inglês de “Allhallowtide”). Nessa celebração se incluem tanto os santos e mártires, que são lembrados em 1º de Novembro (Dia de Todos os Santos), quanto as pessoas comuns, amigos e familiares que já se foram, celebrados em 2 de Novembro (Dia de Finados).

Mas antes de se tornar parte do calendário cristão, o Halloween já tinha uma longa história religiosa. Muitos dos elementos atualmente associados com a festa tem origem pagã, mais especificamente teriam vindo dos povos Celtas. No livro “From Pagan Ritual to Party Night”, o historiador Nicholas Rogers explora as origens do Halloween, e afirma :

“enquanto alguns folcloristas vêem a origem do Halloween no festival romano de Pomona, deusa dos frutos e sementes, ou na Parentalia, celebração romana que homenageia os mortos, ela é mais comumente ligada ao festival celta Samhain, palavra que vem do Irlandês antigo, significando ‘fim do verão’.”

Samhain, quando “o outro lado” vem visitar

Samhain (se pronuncia sou-ein) era um dos quatro principais festivais do ano para os povos gaélicos, um grupo de tribos celtas que habitavam onde hoje ficam Irlanda, Escócia e Ilha de Man. Esses festivais eram: Imbolc, celebrado entre o solstício de inverno e o equinócio de Primavera; Beltane, celebrado entre o equinócio de primavera e o solstício de verão, Lughnasadh que ficava entre o solstício de verão e o equinócio de outono e finalmente, Sahmain, que marcava o meio entre o equinócio de outono e o solstício do inverno. Cada um desses festivais marcava um momento diferente no calendário dos ciclos de semeadura e colheita. Se os nomes parecerem familiares pode ser porque até hoje esses festivais são celebrados por pessoas que seguem religiões neo-pagãs, como a Wicca.

Samhain era um festival de três dias (ou até uma semana, segundo algumas fontes) que representava o fim do período de colheitas e o início do Inverno, isto é, da “metade escura” do ano. Nessa época, eram feitos estoques de grãos e comida e animais eram abatidos para que a carne fosse conservada para os longos meses de frio, durante os quais não seria possível plantar nem colher. Os rebanhos também eram trazidos de volta dos pastos de verão e mantidos em áreas de pastagem mais protegidas do frio.

Assim como no festival de Beltane, durante o Samhain eram acesas fogueiras que serviam para proteção e purificação. Tanto Beltane quanto Samhain eram vistos como períodos “liminares” nos quais as fronteiras entre o mundo dos vivos e “outro lado” ficavam mais frágeis. O “outro lado”, não era só em referência aos mortos, mas também aos Aos Sí, o “povo dos montes”, ou povo das fadas. Ao contrário das fadas boazinhas da nossa cultura popular, que ajudam princesas ou seguem o Peter Pan em suas aventuras, os Aos Sí eram uma representação de deuses primordiais ou espíritos da natureza. Eram seres voláteis e caprichosos que, se insultados, podiam ser até malévolos (você já deve ter percebido que a fada má da história da Bela Adormecida tem muito mais em comum com os Aos Sí do que com a fada madrinha da Cinderela). Durante o Belltane ,os Aos Sí recebiam oferendas de comida e bebida para que abençoassem pessoas e animais. Já durante o Sahmhain, era preciso agradá-los com as mesmas oferendas para que pessoas e animais sobrevivessem ao inverno.

(foto:freestocks)

No Samhain, as portas entre o nosso mundo e outro não deixavam passar apenas os Aos Sí: as almas dos mortos também voltavam para visitar suas famílias. Eram preparados banquetes e os familiares falecidos eram convidados a sentar-se à mesa com os vivos, em lugares reservados especialmente para eles. Acreditava-se que as almas das pessoas que tinham sido amadas e bem tratadas em vida, voltavam para abençoar a família e os amigos, enquanto as almas daqueles que tinham sofrido alguma ofensa ou injustiça voltavam para acertar as contas.

A tradição de se fantasiar e bater de porta em porta pedindo doces também vem do Samhain. Muitos se fantasiavam para imitar os Aos Sí, e batiam de porta em porta recitando versos e pedindo as tradicionais oferendas de comida e bebida que eram dadas ao povo das fadas. Jogos, brincadeiras e adivinhações também eram “travessuras” comuns.

E o que o Cristianismo tem a ver com isso?

O Cristianismo chegou nas Ilhas Britânicas durante a ocupação romana, segundo dados arqueológicos, por volta do século IV, mas foi só em 567 que uma igreja oficial foi fundada por Santo Agostinho de Cantuária. Na Irlanda, há sinais da prática do Cristianismo desde o ano 400. Mas, é claro, como em toda situação na qual uma religião nova chega para suplantar uma religião antiga, a transição não foi lá muito tranquila. Segundo o folclorista Jack Santino, “havia em toda a Irlanda uma trégua desconfortável entre os costumes e crenças associados com o Cristianismo e aqueles associados com as religiões irlandesas que existiam antes da chegada do Cristianismo”

Ou seja, as crenças dos antigos celtas não desapareceram da noite para o dia só porque o cristianismo ia ganhando terreno. Muitos dos costumes e celebrações antigos persistiram. Então, acabou acontecendo aquilo que geralmente acontece quando o Cristianismo em expansão entrava em contato (e conflito) com outras religiões e culturas: sincretismo e assimilação. Nós brasileiros conhecemos bem esse processo, sobretudo em relação à cultura afro. Afinal quantos orixás não foram sincretizados com santos católicos e quantas das nossas festas religiosas cristãs não tem elementos africanos?

A festividade de Todos os Santos na data de 1º de Novembro foi estabelecida pelo Papa Gregório III, que fundou um oratório para “os santos apóstolos e todos os santos, mártires e confessores” no século VIII. Porém, só foi confirmada como obrigatória pelo Papa Gregório IV, no século seguinte, em 835. Muitos sugerem que a data foi escolhida justamente porque os povos Celtas cristianizados continuavam a celebrar os mortos nesse dia, que coincidia com o segundo dia do Samhain do calendário antigo. (Curiosamente, vários povos Germânicos observavam uma festividade similar em homenagem aos mortos na mesma data, o que pode ter sido uma influência a mais no calendário litúrgico). Outros acham que a data foi escolhida só para evitar aglomerações em Roma durante períodos mais quentes do ano, evitando o desconforto caso os fiéis se aglomerassem para celebrar o Dia de Todos os Santos.

William-Adolphe Bouguereau (1825-1905) - The Day of the Dead (1859).jpg
“Dia de Finados” -William-Adolphe Bouguereau (1859)- (fonte: wikicommons)

No século XII, o tríduo de Véspera de todos os Santos / Dia de Todos os Santos / Dia de Finados já era observância obrigatória em toda a Europa, e cada lugar já tinha ou estava estabelecendo suas próprias tradições para marcar essas datas. Igrejas exibiam as relíquias dos santos e fiéis faziam procissões e vigílias em memória dos falecidos. Na Inglaterra, Alemanha e Áustria, as pessoas mais pobres, especialmente crianças, iam de porta em porta pedindo bolinhos, chamados de “Soul Cakes” (“bolo das almas), e em troca prometiam orar pelos falecidos. Na Irlanda e em partes da Escócia, legumes grandes como nabos eram cortados transformados em lanternas com rostos que representavam as almas dos finados e eram colocados nas janelas ou portas para afugentar espíritos malignos (quando o Halloween se popularizou nos EUA esses legumes foram substituídos pela nossa velha conhecida abóbora,).

Como o Halloween virou uma festa “yankee”?

Então, como acabamos associando o Halloween com a cultura norte-americana? Bem, para entender isso é preciso primeiro falar da Irlanda e sua longa história de resistência frente ao domínio Inglês. Senta que lá vem história:

Até o século XII, a Irlanda era uma coleção de pequenos reinos Celtas que competiam entre si pela supremacia sobre toda a ilha. O rei que conseguisse essa supremacia era chamado de “Alto Rei” ou “Grande Rei” (“High King”). Um desses reis rivais, Diarmait Mac Murchada, do reino de Leinster foi exilado pelo novo Grande Rei, Ruaidir Mac Tairrdelbach Ua Conchobair, rei de Connatch. Diarmait conseguiu a permissão ao Duque da Normandia e da Aquitânia (atualmente regiões da França), Henrique II para recrutar soldados da Normandia e retomar seu reino. Nosso amigo Diarmait só não contava com o fato de que Henrique logo conquistaria a Inglaterra, e, uma vez rei, não estava nada interessado em ter uma Irlanda unificada logo ali, representando uma ameaça em potencial ao seu poder nas Ilhas Britânicas.

Henrique logo conquistou também a Irlanda e a deu “de presente” ao seu filho mais novo, João, que se tornou Senhor da Irlanda (“Lord of Ireland”). Quando o príncipe João virou rei João da Inglaterra, sucedendo ao irmão mais velho, ele levou o controle da Irlanda consigo para o trono. A Irlanda recebera um influxo de trabalhadores e camponeses ingleses, e muitas das populações nativas foram expulsas (em especial no leste), mas até o século XV, os gaélicos que ainda viviam em suas terras natais conseguiram, relativamente, manter sua língua, costumes e modo de vida, pois a Irlanda não era oficialmente um reino mas sim uma “senhoria” (lordship).

Isso mudou com a conquista Tudor. Foi um conflito longo (de 1529 até 1603), ou melhor uma série de conflitos e períodos de trégua, que chegou até a ter a participação da Espanha (lutando ao lado dos Irlandeses). No fim, a Inglaterra conquistou a Irlanda de vez e impôs suas leis, língua, cultura e religião (os Ingleses eram anglicanos, enquanto os Irlandeses eram, na maioria, católicos). Propriedades foram confiscadas pela coroa, e as estruturas políticas e administrativas dos irlandeses foram destruídas.

Da conquista Tudor até a Independência da Irlanda em 1922, foram séculos de rebeliões, conflitos e tentativas de submeter a população irlandesa e apagar sua cultura, religião e idioma. Durante todo esse tempo, os Irlandeses tiveram que encontrar formas de continuar seguindo seus costumes e praticando seus ritos, burlando as leis inglesas que os proibiam (Penal Laws). Por exemplo, Católicos irlandeses escondiam pequenos rosários nas roupas (conhecidos como “penal rosaries”), e missas eram rezadas em segredo dentro de casa. Assim, os Irlandeses continuaram a observar o Dia de todos os Santos e sua véspera como faziam antes da conquista.

Um rosário “penal”. A argola ela colocada no dedo como se fosse um anel e as contas e crucifixo ficavam escondidos dentro da manga da camisa ou vestido. (fonte: wikicommons)

Isso nos leva ao evento definidor da história mais recente da Irlanda: a Grande Fome. Na década de 1840, uma praga se espalhou nas plantações de batata da Europa. A população mais pobre dependia da batata como base de sua dieta, uma vez que não tinha acesso à uma variedade de alimentos, então o impacto da praga foi enorme, gerando fome, miséria e rebeliões. O caso da Irlanda foi um dos mais trágicos.

Apesar das leis rígidas em relação à religião, cultura e política, quando se tratava da economia, a coroa inglesa tratava a Irlanda com bastante displicência. Grandes extensões de terra pertenciam à nobres que não estavam fisicamente presentes nem se interessavam em administrá-las, preferindo sublocar terrenos, e a administração real adotou um capitalismo laissez-faire que não previa qualquer tipo de proteção para trabalhadores e produtores, nem para populações mais vulneráveis. A Irlanda foi, digamos, abandonada para “se virar” depois de séculos de repressão rígida que a impediram de criar mecanismos de segurança socioeconômica para a sua população.

O resultado foi a morte de cerca de 1 milhão de Irlandeses e o êxodo de outros 2 milhões (em números oficiais, os números reais são, provavelmente, bem mais altos).

Memorial da Fome em Dublin, obra do artista irlandês Rowan Gillespie. (fonte: wikicommons)

E para onde foi a maioria desses Irlandeses que deixaram o país em busca de uma vida melhor?

Ora, para onde mais? Para os Estados Unidos!

Os EUA já eram o destino de muitos imigrantes Irlandeses antes mesmo da Grande Fome. Estima-se que entre 1820 e 1930 cerca de 4,5 milhões de irlandeses chegaram ao país. Mas, enquanto os imigrantes que chegaram antes da década de 1840 eram principalmente homens jovens que vinham para trabalhar e voltar para casa depois de fazer um pé-de-meia, os que chegaram durante a Grande Fome trouxeram suas famílias com a intenção de ficar e recomeçar do zero. Atualmente estima-se que cerca de 33 milhões de norte-americanos (10% da população!) descendem de imigrantes irlandeses, e você deve conhecer vários deles, como, por exemplo, Mariah Carey, Anne Hathaway, Robert Downey Jr. e o ex-presidente Barack Obama.

O Halloween já era uma data observada nos EUA antes da imigração irlandesa do século XIX. Na verdade. era observado desde o período colonial tanto por colonos anglicanos quanto católicos, mas segundo a especialista em história do Hallowen Lesley Bannatyne, os Puritanos da Nova Inglaterra se opunham fortemente à celebração e os calendários e almanaques dos séculos XVIII e XIX não apresentam nenhuma indicação de que o Halloween fosse comemorado nos EUA. Foi só com a chegada em massa dos irlandeses que isso começou a acontecer.

No início, o Halloween era uma festa quase exclusiva das comunidades de imigrantes irlandeses. Mas conforme eles foram se assimilando à sociedade norte-americana, o Halloween foi aos poucos se tornando uma festa de todos. As fantasias foram ficando mais elaboradas e variadas, representando outras criaturas de mitos e lendas, como vampiros e múmias, ou personagens de cinema e quadrinhos. Logo, os fabricantes de doces viram o potencial da data para vender os seus produtso e encheram o mercado com balas, chocolates e guloseimas temáticas. Hoje, o Halloween é parte indispensável da cultura popular norte-americana, e movimenta bilhões de dólares em entretenimento, filmes, fantasias, doces, decorações etc. No entanto, os elementos básicos do Halloween herdados do Samhain permanecem: as fantasias, o bater de porta em porta pedindo agrados e a ideia de que o véu entre os mundos se esvai por uma noite para que os mortos andem por entre os vivos.

O Halloween norte-americano, que nós brasileiros conhecemos como o mais “tradicional”, tem tantas similaridades com os cultos pagãos da Irlanda pré-Cristã justamente porque ele veio na mala dos imigrantes que trouxeram com eles séculos de história.

History of Halloween
Cartão de Halloween do iníco do séc.XX (fonte:GettyImages)

Há quem chame o Halloween de “festa americana” com um certo desprezo ou que o acuse de ser uma festa “imperialista”, e há até os mais exaltados que dizem ser uma festa demoníaca (oi?), apesar de ele literalmente fazer parte do calendário de várias denominações cristãs. É uma discussão que sempre aparece quando algum Brasileiro tem a temeridade de sugerir que o Halloween é algo legal ou divertido (vide aqueles cartazes de “Halloween é o cac&%te” ou “Halloween é Satanismo” que volta e meia aparecem por aí) . Mas a verdade é que o Halloween tal como é hoje, surgiu de um longo processo de resistência religiosa e cultural de povos pagãos frente à expansão do cristianismo e também da resistência política e cultural dos Irlandeses frente a uma à potência imperialista que precedeu os EUA, a Inglaterra. E se pararmos para pensar foi um processo de resistência bem-sucedido, pois o Samhain ainda é celebrado por muita gente e o Halloween ainda guarda muitos elementos da festividade pagã, ainda que modificados para se adaptar à modernidade.

Então, agora que você já sabe o que é e de onde ele veio, pode curtir o seu Halloween sem receio de sentir “colonizado”. Aproveite e deixe um lugar vago na mesa de jantar. Quem sabe alguém que você ama muito vem te visitar e abençoar a sua casa essa noite. (mas cuidado com as fadas!)

(Foto: Bree Felten Leidel)

Material consultado:

Artigos:

Eamón Ó Cuiv. An Gorta Mór – the impact and legacy of the Great Irish Famine

Livros:

David Edwards . Age of Atrocity: Violence and Political Conflict in Early Modern Ireland. Four Courts Press (2010)

Jack Santino (ed.), Halloween and Other Festivals of Death and Life University of Tennessee Press (1994).

John T. Koch. Celtic Culture: A Historical Encyclopedia. ABC-CLIO (2006)

Lesley Pratt Bannatyne, Halloween: An American Holiday, an American History. Pelican Publishing. (1998)

Nicholas Rogers. Halloween: from pagan ritual to party night. Oxford university press (2002)

S.J.Connolly, The Oxford Companion to Irish History. Oxford University Press (2007)

W.Y.Evans-Wentz, The Fairy-Faith in Celtic Countries. Citadel(1990)

Sites

BBC Religions- Christianity: All Hallow’s Eve

The History of Halloween-The History Channel

Irish-Catholic Immigration to America- Library of Congress

3 comentários em “O que é Halloween, afinal?

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