(Imagem de capa: Samuel Berner)
Tente imaginar uma ambientação perfeita para uma boa história de terror.
Imaginou?
Talvez você tenha imaginado uma casa sinistra em algum lugar remoto, uma cabana no meio da floresta ou um castelo muito antigo. Talvez tenha imaginado uma noite tenebrosa ou uma tempestade com raios e trovões. O que você provavelmente não imaginou foi um lindo dia de verão, certo?
Pois é, para nós brasileiros o verão não combina muito bem com histórias assustadoras. Aliás, nem para nós, nem para muitos outros países ocidentais. Em geral, quando pensamos em fantasmas pensamos em frio, em noites escuras, tempestades, etc. Nos Estados Unidos, por exemplo, a “temporada” do terror é o outono, graças ao Halloween, já o Reino Unido tem uma longa tradição de associar os fantasmas com o inverno, como já vimos em nosso artigo sobre as histórias de natal assustadoras da era vitoriana.
Mas no Japão, a estação mais assombrada é o verão. É nessa época que os filmes de terror costumam ser lançados, e os programas de televisão ficam cheios de relatos de assombração, especialmente a programação do horário da tarde. Porém, antes mesmo da existência do cinema e da TV, o teatro Kabuki já dava preferência para peças com temáticas de assombração em sua programação de verão e um dos principais passatempos para noites quentes era justamente contar histórias de fantasma.
Então, vamos aproveitar que o verão está aí e começar o ano com um passeio pelas tradições fantasmagóricas do Japão?
Calafrios no Verão?
Há muitas razões pelas quais a cultura Japonesa associa histórias de fantasmas com o verão. Uma explicação bem comum é que os calafrios causados por histórias assustadoras supostamente ajudariam a combater o calor, que no Japão pode chegar até a casa dos 30 graus e costuma ser bem úmido e desconfortável. Mas é claro que não é tão simples assim. A associação entre fantasmas e o verão tem raízes muito antigas tanto na cultura quanto na religião.
Então, para entender essa história de assombração no verão, antes temos que entender o panorama religioso japonês.
O Japão tem uma identidade religiosa bem específica, pois, diferente de países que tem várias religiões e/ou uma religião dominante, no Japão há duas religiões dominantes que são praticadas juntas. A mais antiga é o Xintoísmo (termo derivado da palavra “shinto” que significa “caminho dos deuses”). É uma religião animista, isto é que atribui uma “alma” (“anima”) aos elementos da natureza, e que surgiu no Japão no século V a. C. A outra é o Budismo, que nasceu na Índia no século VI a.C., mas que só chegou ao Japão no século VI d.C., através da China.
Cerca de 80% da população japonesa que se declara religiosa, pratica ambas as religiões ao mesmo tempo, mas as duas diferem em vários aspectos. O Xintoísmo tem como base a crença em kami, uma palavra que pode ser traduzida tanto como “deuses” quanto “espíritos”, isto é entidades associadas com diversos elementos naturais, e que podem ser generosas se receberem orações e homenagens adequadas ou vingativas se forem ofendidas. Já a ênfase do Budismo não está em entidades ou deuses, mas na crença na reencarnação e na possibilidade da evolução espiritual do indivíduo até atingir a iluminação ou Nirvana, um estado de total desapego dos desejos e necessidades físicas.
A visão que os Japoneses tem da morte e do sobrenatural é uma mistura das duas tradições. O Budismo tem uma visão cíclica da morte e da vida com base na roda do karma e na reencarnação, ainda que diferentes escolas tenham variações da ideia de “mundo dos mortos” mais ou menos parecidos com a nossa ideia de inferno e paraíso, nos quais o espírito transitaria entre uma encarnação e outra. Já o Xintoísmo tem uma visão mais linear, na qual os mortos simplesmente passam a um pós vida em um mundo dos mortos conhecido como Yomi ou Yomi-no-kuni (“Terra da escuridão”).
O que as duas religiões têm em comum, no entanto, é a importância dada à memória dos antepassados. É muito comum que as famílias japonesas tenham um altar em casa para honrar os seus mortos, e rituais religiosos que homenageiam os antepassados são parte fundamental da cultura Japonesa independentemente da religião de quem os pratica. Os mortos são vistos, de certa forma, como parte integrante da família e do dia a dia dos vivos.
Mas o que tudo isso tem a ver com o verão e as histórias de fantasmas?
Bem, uma das principais, senão a principal razão pela qual o verão é associado com fantasmas no Japão é justamente uma tradição religiosa compartilhada entre o xintoísmo e o budismo: o festival conhecido como Obon ou Bon, a celebração dos antepassados que acontece no sétimo dia do sétimo mês do calendário lunar, e invariavelmente cai no verão (entre junho e agosto, no hemisfério norte).
Acredita-se que nesta data as almas dos mortos voltam ao mundo dos vivos para compartilhar as festividades com seus familiares e amigos. É uma data alegre de reencontro com entes queridos, celebrada ao ar livre com música, teatro, fogos de artifício e a tradicional dança bon-odori, que serve para dar as boas vindas aos mortos. Mas o Bon não é só festa, também é uma ocasião para lembrar e ntes queridos, fazer orações, oferendas, montar altares budistas chamados bondana e acender fogueiras chamadas de okuribi (“fogo de despedida”) para se despedir dos espíritos ao fim das festividades. A despedida também inclui lanternas que são colocada em barquinhos de madeira e colocadas em algum rio, para guiar os mortos de volta para o além.
Claro que nem todos os espíritos que retornam ao mundo dos vivos durante o Obon são as almas queridas dos antepassados, vindo em paz para festejar. Muitas dessas almas são muenbotoke, mortos que não paz, pois não tem parentes nem amigos para rezar por eles ou onryo, mortos vingativos, que voltam para acertar as contas com aqueles que lhes causaram algum mal em vida. Por isso, a época das festividades de Obon também é perfeita para contar histórias assustadoras sobre esses fantasmas nem um pouco camaradas.

Historicamente, as apresentações teatrais sempre foram parte importante do Obon, e uma das mais antigas era o bon-kyogen. Uma forma folclórica de teatro do Período Heian (794 a.C. A 1185 d.C.), o bon-kyogen costumava dar ênfase à comédia, pois se acreditava que os risos e o ambiente alegre acalmavam os espíritos inquietos. Mas, com o passar do tempo outras formas teatrais foram se desenvolvendo e promovendo peças com características mais macabras inspiradas no folclore fantasmagórico associado com o Obon. Esse é o caso das performances de Kabuki conhecidas como suzumi-shibai (literalmente “peças frias” ou “peças de dar calafrios”), que encenavam histórias de terror sobrenatural. Segundo o etnólogo Shinobu Ikikushi (1887-1953), foram essas performances em particular que alimentaram o interesse em histórias de fantasma durante o verão. O que começou como uma forma de apaziguar os espíritos com humor foi se tornando uma tradição independente, na qual as pessoas buscavam histórias de terror, como forma de entretenimento ou catarse.
No entanto, a popularidade das histórias de fantasma como de entretenimento atigiria o seu ápice muito tempo depois, durante o Período Edo (1603-1868).

Kaidan e Hyaku Monogatari: os fantasmas do Período Edo
O período Edo entrou para a história do Japão como uma espécie de Era de ouro. Foram dois séculos de estabilidade política e crescimento econômico, mas que também foram marcados por uma estrutura sócio-política bastante rígida. O Japão tinha passado por diversas guerras civis durante o Período Sengoku (1467-1603), mas em 1575, Toyotomi Hideoshi conseguiu unificar o Japão. No entanto, a estabilidade só seria alcançada após a sua morte, quando o Clã Tokugawa emergiu vitorioso de mais uma série de conflitos, dando fim ao Período Sengoku e iniciando o Período Edo. A figura do imperador ainda existia, mas o Shogun (“líder militar”) Ieyasu Tokugawa e seus descendentes detinham o poder de facto e garantiram a paz no Japão através de um rigoroso controle político e militar, razão pela qual o Período Edo também é conhecido como Xogunato Tokugawa.

O crescimento econômico e a unificação política levaram ao aumento das trocas comerciais e a diminuição do isolamento entre as diferentes regiões do país, conectando áreas rurais com centros urbanos. A medida em que pessoas e bens circulavam com mais liberdade, as várias culturas regionais do Japão entraram em contato, e assim, contos, lendas, músicas e tradições se espalharam muito além de seus locais de origem.
Esse ambiente de constante troca cultural criou uma crescente demanda por diversos tipos de entretenimento: o teatro Kabuki e o Noh se tornaram mais complexos, nova formas de teatro como o bunraku (teatro de marionetes) surgiram, o ofício das gueixas se desenvolveu e contadores de histórias se tornaram extremamente populares. Alguns destes artistas eram itinerantes, e se apresentavam em festivais, eventos religiosos e festas, enquanto outros chegavam a ser contratados como otogishu, isto é artistas a serviço de um senhor feudal.
O fim das constantes guerras civis também criou outro fenômeno curioso: as pessoas voltaram a se sentir mais confortáveis com o conceito de horror como forma de entretenimento. Durante o Período Edo, peças de teatro, canções e histórias com temáticas que incluíam guerra, assassinato, vingança e assombrações eram muito populares. Muitas destas narrativas até usavam as guerras civis do Período Sengoku como pano de fundo. Era quase como se, sem a violência da guerra constantemente batendo à porta, o público buscasse uma certa dose de adrenalina.
Outra possível razão para esse interesse em histórias mórbidas tem mais a ver com a estrutura social do Período Edo. Para manter seu poder, o Clã Tokugawa precisava de estabilidade, e para conseguir isso foram estabelecidas rígidas medidas de controle social. Ou seja, a paz tinha preço: uma estrutura social profundamente estratificada, leis severas e um domínio completo dos senhores feudais sobre o povo. Histórias de fantasmas e vingança serviam como uma válvula de escape, uma fuga controlada da realidade “certinha” . E devido à censura vigente, essas histórias também acabavam sendo uma forma de crítica social velada. Nas palavras de Akinari Ueda, autor do famoso Ugetsu Monogatari:
“Às vezes, o escritor lamenta a falta de sinceridade do mundo, outras vezes ele lamenta a arrogância da nação. No entanto, levando em consideração as forças dos tempos atuais e temendo desagradar a pessoas de alta posição, o autor pode apresentar sua história como um evento do passado, jogando um véu sobre o presente.”
Independentemente do motivo, a verdade é que a história de fantasma tradicional japonesa atingiu sua forma clássica no Período Edo.
É nessa época que o termo Kaidan ou Kwaidan aparece em textos pela primeira vez. Kaidan é uma palavra difícil de explicar, mas que costuma ser traduzida como “história de fantasma”. Essa tradução, apesar de mais acessível, não dá conta do verdadeiro significado do termo: “kai” significa “estranho”, “esquisito” ou “misterioso” e “dan” tem o sentido tanto de contar uma história, quanto de conversar, discutir algo. Ou seja “Kaidan” seria o ato de falar sobre ou contar coisas estranhas. Isso quer dizer que Kaidan podia ser um pouco de tudo: desde histórias sobrenaturais tenebrosas até anedotas absurdas ou engraçadas. Porém, as mais populares sempre foram, é claro, as histórias assustadoras. Tão populares, aliás, que esse gosto peculiar do Período Edo acabou levando a criação de um “jogo” muito popular, chamado Hyakumonogatari (“100 Histórias”) ou Hyaku Monogatari Kaidankai (“100 Histórias sobre coisas estranhas”).

A premissa é bem simples: um grupo de pessoas se reúne à noite, de preferencia em uma noite de verão, e acende 100 velas ou lanternas de papel. Então cada pessoa do grupo conta uma história assustadora, e a cada história contada uma vela é apagada, até que se completem 100 histórias. Quando a última vela for apagada, o cômodo deve ficar completamente escuro. Nesse momento o grupo deve fazer algum tipo de “chamada” em que cada pessoa diz algo para mostrar que está presente. Se o “ritual” tiver sido feito da forma correta, uma voz a mais, que não pertence a nenhum dos participantes também será ouvida. Segundo algumas versões seria até possível ver um fantasma entre os presentes nesse momento (e é claro que essa também seria a hora perfeita para um dos presentes dar um bom susto nos demais).

Não sabemos ao certo com que frequência esse jogo era realmente jogado ou se era jogado exatamente dessa forma, afinal acender 100 velas e contar 100 histórias levaria muito tempo e exigiria que o grupo conhecesse muitas histórias. Aliás, muitos acreditam que o número excessivo de histórias seria o motivo pelo qual os participantes viam ou ouviam fantasmas: eles simplesmente ficavam com sono, acabavam cochilando e sonhando com as assombrações. No entanto, o Hyaku Monogatari é mencionado com muita frequência na cultura popular da época: aparece em livros, peças e principalmente na arte do estilo Ukyo-E, gravuras feitas em blocos de madeira, que costumavam ilustrar eventos da vida quotidiana, assim como mitos e lendas, e também peças de teatro). Isso nos dá boas razões para acreditar que as pessoas de fato jogavam esse jogo, mas provavelmente uma versão mais simples, com um número bem menor de histórias.
Muitos estudiosos da literatura japonesa acreditam que a popularidade do Hyaku Monogatari, assim como de outras formas de entretenimento que giravam em torno do ato de contar histórias assustadoras, levou a uma enorme procura por coletâneas e compilações de Kaidan, que incluíam desde lendas do folclore local de diversas regiões, até referências a eventos históricos e narrativas tiradas de peças de teatro. Os autores de antologias chegavam até a viajar em busca de novas histórias para incluir em suas seleções.
Dentre as inúmeras coleções de Kaidan publicadas no Período Edo, duas se destacam. A primeira é Ugetsu Monogatari, ou “Contos da Chuva e do Luar”, de Akinari Ueda. São nove histórias inspiradas em contos sobrenaturais chineses. Já a segunda é Mimi Bukuro (“Uma bolsa de orelhas”), de Shizue Negishi, um samurai que viajou por todo o Japão e que registrou histórias assustadoras que ouviu de prisioneiros confiados a ele quando trabalho como carcereiro. Mimi Bukuro contém mais de cem histórias publicadas originalmente em 10 volumes, e que já inspiraram diversos filmes, séries de TV e até mangás e animes.

A popularidade desse gênero literário se espalhou por várias formas de mídia. O teatro Kabuki, que de certa forma iniciou a tradição, continuou a produzir narrativas de fantasma, mas o Noh e o Bunraku usaram a figura do fantasma muito mais extensamente. O Noh, por ser ainda mais estilizado que o Kabuki, se presta bem a apresentação de narrativas surreais ou sobrenaturais, enquanto o Kabuki tende a apresentar temas realistas e históricos com mais frequencia, já o Bunraku, por ser um teatro de marionetes, permite o uso efeitos especiais perfeitos para histórias sobrenaturais. As gravuras de Ukyo-e também usaram assombrações como tema com tanta frequencia que foi criado um subgênero chamado yuurei-zu (“imagens de fantasmas”). Artistas do Período Edo como Kunisada, Hokusai e Kuniyoshi produziram inúmeras obras sobre assombrações e a tradição seguiu até o Período Meiji, com Tsukioka Yoshitoshi, que produziu pelo menos duas séries de gravuras fantasmagóricas.

Modernização, guerra e trauma: os ecos dos fantasmas do passado
Estas coletâneas, e muitas outras ficaram tão populares que continuaram a ser reeditadas através dos séculos, ajudando assim a preservar muito do folclore japonês, principalmente de tradições orais que poderiam ter se perdido sem esse registro. No entanto, durante a Era Meiji (1868-1912), quando o poder imperial foi restaurado, dando fim ao poder do xogunato, Japão passou por um processo de abertura e modernização. Muitos intelectuais começaram a ver a literatura de terror como ultrapassada e a associar o interesse pelo sobrenatural e por Kaidan com ignorância, superstição e atraso. A corrida pela modernização também fez com que muitos rejeitassem o folclore e a cultura popular, por vê-los como restos de um passado feudal que era preciso deixar para trás. A população em geral continuou consumindo Kaidan, mas a elite se afastou desse gênero, o que fez com que coletâneas ficassem mais escassas.

Durante o Período Meiji, o mais famoso antologista de Kaidan seria um estrangeiro: o greco-irlandês Lafcadio Hearn. Filho de pai irlandês e mãe grega, Hearn nasceu na Grécia e cresceu na Irlanda. Escritor e jornalista, ele viveu nos Estados Unidos e na Martinica, até se mudar para o Japão em 1890, como correspondente de um jornal. Quando o contrato acabou, Hearn resolveu ficar. Um dos aspectos da cultura japonesa que mais o fascinava era justamente o folclore, e Kaidan em particular, tanto que decidiu compilar histórias e traduzi-las para o inglês. O resultado foi a coletânea de histórias de fantasma do Japão a que a maioria dos leitores ocidentais tem fácil acesso: Kwaidan: Stories and Studies of Strange things (“Kwaidan: histórias e estudos de coisas estranhas”, publicada no Brasil pela editora Claridade como “Kwaidan: Assombrações”).
Mas é claro que nem todos os intelectuais Japoneses voltaram as costas para as histórias de fantasmas, houve aqueles que abraçaram essa tradição. É o caso de Kunio Yanagita. Formado em direito, Yanagita começou a carreira trabalhando no Departamento de Administração Agrícola do Ministério da Agricultura e do Comércio. Graças ao cargo, ele viajava frequentemente pelas áreas rurais do país, e acabou se apaixonando pelo folclore regional que foi encontrando, o que o levou a se tornar escritor e pesquisador. Seu trabalho como folclorista levou à criação de uma nova área do conhecimento chamada de Minzokugaku, ou Estudos Folclóricos Japoneses, fazendo com que o folclore e a cultura popular se tornassem objeto de estudo nas universidades, vencendo o preconceito dos intelectuais. Por isso, Yanagita é considerado o “pai dos estudos folclóricos modernos” no Japão.
Durante o Período Taisho (1912-1926) até as primeiras décadas do Período Showa (1926-1989) o Japão se voltou novamente sua cultura tradicional, mas também abraçou uma ideologia de extrema-direita profundamente nacionalista e militarista que levou ao seu alinhamento com as potências fascistas do Eixo. O resultado deste recrudescimento ideológico foram políticas conservadoras e táticas de guerra particularmente agressivas, assim como brutais crimes contra a humanidade tanto contra civis (na China, Coréias e outros países) como contra prisioneiros. As táticas agressivas do exército japonês causaram enormes perdas e danos aos países aliados, mas a população civil do Japão também pagou um preço caro, sendo vítima de constantes bombardeios, sofrendo com a fome e o colapso econômico e social causado pela guerra e finalmente com os ataques nucleares à Hiroshima e Nagasaki.

Com o fim da da Segunda Guerra Mundial, o Japão precisou se reencontrar enquanto país e redefinir sua identidade e seu relacionamento com sua própria tradição e história.
Foi então que a cultura popular, especialmente o cinema, redescobriu o folclore e, em particular, as histórias de fantasma. Através destas narrativas, o imaginário japonês ressignificou sua própria identidade nacional e também encontrou formas de processar o trauma da guerra. Nos anos 50 e 60 foram produzidos vários filmes que resgatavam o Kaidan como forma narrativa e se utilizavam dessas histórias para falar de luto, guerra, desestabilização econômica e social, enfim, tudo aquilo pelo que o país estava passando. Ou seja, fazendo novamente o processo de contar histórias do passado para falar o presente de que Ueda Akinari tinha observado séculos antes.
O filme mais famoso dessa safra é, provavelmente, Kwaidan (1965), dirigido por Masaki Kobayashi (lançado no Brasil como “Kwaidan: As quatro faces do medo”). Ele resgata a tradição das antologias de histórias de fantasma com quatro curta-metragens formando um filme único. “Cabelos Negros” é a história de um homem que abandona sua mulher e acaba assombrado por visões sobrenaturais, um tema associado ao clássico Tokaido Yotsuya Kaidan. “A Mulher das Neves” resgata a famosa lenda da Yuki-onna, um espírito feminino que personifica a neve e o frio. “Hoichi sem orelhas” conta a história de um cantor cego que, em suas canções, narra a tragédia de uma batalha entre clãs rivais que, sem querer entra em contato com o outro mundo. Já “Em uma xícara de chá”, um homem é assombrado por visões que aparecem em superfícies líquidas, incluindo até uma inocente xícara de chá.
Kwaidan é apenas um de vários filmes que reconstruiram a estética visual e narrativa do Período Edo e de suas histórias de fantasma. Ugetsu “Contos da Lua Vaga” (1953) dirigido por Mizuguchi Kenji, usa alguns contos da coletânea Ugetsu Monogatari, de Akinari Ueda, para contar a história de Genjuro, um oleiro que tenta conseguir fortuna durante o conturbado período Sengoku, mas acaba tropeçando em eventos fantasmagóricos. Outro filme que se passa durante as guerras civis do período Sengoku é Onibaba (1964) de Kaneto Shindo, com um roteiro original inspirado na lenda de Onibaba, uma criatura canibal com a aparência de uma velha que vive nas florestas ou montanhas. No filme, a história perde seu lado sobrenatural e ganha fortes elementos sexuais e psicológicos ao contar a história de duas mulheres, sogra e nora, e um homem envolvidos em uma trama de morte e obsessão.
Nos anos 50 e 60 também foram filmadas diversas adaptações de Tokaido Yotsuya Kaidan, uma peça de Kabuki inspirada crimes reais e lendas locais que até hoje é considerada a mais famosa história de fantasma da literatura japonesa. O samurai Iemon se vê sem senhor e sem dinheiro, e resolve abandonar a esposa Oiwa e o filho recém-nascido para se casar com a filha de um homem rico. O seu plano acaba dando “certo demais”, já que suas maquinações causam a morte de Oiwa, liberando o caminho para um novo matrimônio. Mas a mulher que era doce e submissa em vida, acaba se revelando cruel e poderosa após a morte.
Assim, o cinema também serviu como veículo de divulgação e documentação das histórias de fantasma da tradição japonesa. Cineastas buscavam no folclore, no teatro e na literatura inspiração para contar suas histórias e assim apresentavam mitos e lendas muito antigos a novos públicos.
O cinema não foi o único a fazer isso: os mangás e animes produzidos desde os anos 60 até hoje também buscam inspiração no folclore fantasmagórico. Obras como Gegege no Kintarou, Gakkou Kaidan, Ayakashi e Fuan no Tane, e artistas como Junji Ito modernizaram a clássica história de fantasma, e de uma certa forma retomaram o conceito original de Kaidan como gênero no qual o estranho, o misterioso e o humor ficavam em pé de igualdade com o terror. Em vez de contar histórias clássicas, como o cinema, animes e mangás brincam com os elementos do folclore e do terror misturando surrealismo, comédia, aventura, criando narrativas inteiramente novas com outras dimensões e significados, abrindo espaço pra falar de temas relevantes para as novas gerações como bullying, padrões de beleza, sexualidade e saúde mental.

No entanto, a maior parte do público ocidental deve seu primeiro contato com o horror japonês aos filmes de terror dos anos 90 e 2000. Esses filmes representaram uma espécie de Nouvelle Vague do horror japonês, que popularizou o termo J-Horror. O maior sucesso da leva foi, sem dúvida, Ringu ou “O Chamado” (1998) de Nakata Hideo, com a história de uma maldição conectada com uma misteriosa fita VHS e o fantasma de uma menina dentro de um poço. A popularidade do remake americano fez com que muitos espectadores procurassem o filme original, e assim, descobrissem a grande produção de filmes de terror do Japão, um gênero que ficou conhecido no Ocidente como “J-Horror”.
No universo do J-Horror há um pouco de tudo, de ultraviolência a terror psicológico, mas a marca dos fantasmas clássicos do folclore japonês é explícita na maioria dos filmes. Os dois títulos mais populares do cinema J-Horror “O Chamado” e “O Grito”(‘Ju-On’, 2004), de Shimizu Takashi usam a figura do fantasma feminino de longos cabelos e roupas brancas que lembram o katabira, (um kimono branco no qual os mortos são enterrados), uma imagem profundamente associada ao Kabuki e ao Ukyo-E. Mas enquanto “O grito” foca no tema da mulher rejeitada que se torna um fantasma junto com e seu filho tirado de Yotsuya Kaidan, “O Chamado” prefere pegar emprestado o “fantasma no poço” da lenda de Okiku. Já “Noroi: A Maldição” usa as máscaras vagamente parecidas com as do teatro Noh como elemento visual para contar a história de um pesquisador e documentarista que desperta forças ocultas quando resolve filmar um documentário sobre uma suposta maldição. Água Negra (2002), do mesmo diretor de “O Chamado”, e que também ganhou um remake nas mãos do brasileiro Walter Salles, retoma a associação do fantasma com a água. Ou seja, ainda que o cinema japonês mais recente não faça adaptações diretas de narrativas clássicas ou folclóricas, ele ainda usa elementos visuais e temáticos que são imediatamente reconhecíveis para o público como parte de uma tradição cultural muito antiga.

Agora que conhecemos a história por trás dos fantasmas, que tal conhecer algumas histórias e refrescar o seu verão com uns calafrios? Então, não perca na semana que vem, a segunda parte do nosso especial: Um Catálogo de Assombrações!
Materiais consultados:
Artigos:
Jon Wilks. “Ghoul Power” SeekJapan.jp
Michael Lambe . “Season of Ghosts: The Japanese Tradition of Scary Summer Stories”. WorkInJapan.com
Noriko T. Reider. “The Appeal of Kaidan, Tales of the Strange”. Asian Folklore Studies, Vol 59. Nº2. Nazan University
Scott David Foutz “Kaidan: Traditional Japanese Ghost Tales and Japanese Horror Film”. Sarudama.com
Livros:
Akinari Ueda, Leon M. Zolbrod. Ugetsu Monogatari or Tales of Moonlight and Rain: A Complete English Version of the Eighteenth-Century Japanese Collection of Tales of the Supernatural. Routledge, 2011.
Brett Walker: A Concise History of Japan. Montana State University. 2015
Daigan Matsunaga, Alicia Matsunaga, Foundation of Japanese Buddhism, Los Angeles; Tokyo: Buddhist Books International, 1996
Haga, Tooru. Juliet Winters Carpenter(trad.) Pax Tokugawa: The Cultural Flowering of Japan, 1603–1853 JPIC, 2021.
Kunio Yanagita. Fanny Hagin Mayer. Guide to the Japanese Folk Tale. Indiana University Press. 1986
Lafcadio Hearn. Kwaidan:Asssombrações. Editora Claridade. 2007
Lafcadio Hearn, Andrei Codrescu(ed.), Jack Zipes (intro). Japanese Tales of Lafcadio Hearn. Princeton Press, 2019
Michiko Iwasaka, Michiko; Barre Toelken. Ghosts And The Japanese: Cultural Experience in Japanese Death Legends. Utah: Utah State University Press. 1994
Nobutaka Inoue et al. Shinto, a Short History. Routledge Curzon, 2003
Patrick Drazen. A Gathering of Spirits Japan’s Ghost Story Tradition: From Folklore and Kabuki to Anime and Manga. Iuniverse Publishing, 2007
Uau! Essa é uma bela coincidência! Faz só algumas semanas que fiz alguns posts no instagram sobre uma trilogia produzida nos anos 60 chamada no ocidente de “Yokai Monsters”. O primeiro filme é justamente sobre essa reunião das 100 histórias!!! Eu quis escrever algo sobre esses filmes porque os adoro e porque eles tinham acabado de aparecer em bluray na rede, mas na real me vi obrigado a abrir meus comentários com: “Sempre piso em ovos pra falar de horror japonês, porque o que sei de cultura japonesa, ainda mais dos anos 60, não vai muito além das Wikipédia da vida…🤔” Se eu soubesse que você ia postar uma matéria dessas eu teria esperado um pouquinho mais antes de me aventurar a dar meus pitacos…😅
Amei, amei, amei… ansioso pela segunda parte! E agora preciso rever minha coleçãozinha de filmes de horror japoneses dos anos 60.🥰
P.S. Não tem nada a ver com esse post, mas como eu sei que você gosta daquele meu dossiê sobre a série Ghost Stories for Christmas, deixa eu dar um toque que eu basicamente o reescrevi inteirinho nesse último Natal. Tipo, reescrevi mesmo, o texto é 80% novo, porque surtei e me convenci de que antes estava horrível! Agora estou bem mais satisfeito com ele, caso sinta vontade de reler.😉
CurtirCurtir