Capítulo I
Peg O’Neill paga as dívidas do Capitão
Algo muito estranho aconteceu com meu tio, o Sr. Watson de Haddlestone, e para explicar o que foi, devo começar pelo começo.
No ano de 1822, o Sr. James Walshawe, mais conhecido como Capitão Walshawe, morreu aos 81 anos de idade. Em sua juventude, enquanto a saúde e a força o permitiam, o capitão era um malandro intrigante e vivo que gastava seus dias, digamos assim, ‘plantando sua semente em diversos jardins’, sem dar sinais de exaustão. A colheita desta “lavoura” era abundante em espinhos, urtigas e ervas daninhas que muito arranharam seu lavrador, sem, no entanto, enriquecê-lo.
O capitão Walshawe era muito conhecido na região de Wauling, onde os moradores em geral o evitavam. Era “capitão” só por cortesia, pois nunca tinha chegado a alcançar tal patente no exército. Ele havia abandonado o serviço em 1766, aos vinte e cinco anos, imediatamente antes do período em que suas dívidas se tornaram tão problemáticas que ele levado a tentar se libertar delas casando-se com uma rica herdeira.
Apesar de não ser tão rica quanto ele imaginara, a moça revelou-se um investimento muito confortável para o que ainda restava de seus afetos despedaçados. Ele voltou aos seus velhos hábitos, viveu e se divertiu muito às custas dela, entrando em um sem-fim de confusões e escândalos, e contraindo muitas dívidas e problemas com dinheiro.
Quando se casou, o capitão estava aquartelado na Irlanda, em Clonmel, onde havia um convento de freiras, no qual residia, como pensionista, a Srta. O’Neill ou, como era conhecida na região, Peg O’Neill—a herdeira a quem me refiro.
Sua situação era o único ingrediente romântico do relacionamento, pois a jovem era decididamente sem graça, embora fosse bem-humorada, tinha aquele tipo de rosto que na Irlanda se costuma chamar de “cara de batata”; era um pouco rechonchuda demais e de estatura bem baixa. Mas ela era impressionável, e suas tendências monásticas não foram páreo para o belo e jovem tenente inglês, e acabou fugindo com ele.
Na Inglaterra há muitas histórias de caçadores de fortunas irlandeses, e na Irlanda contam-se as mesmas histórias sobre os ingleses. O fato é que, nos velhos tempos, os sem-destino de um país iam para o outro e vice-versa. Suponho que um vagabundo bonito, fosse em seu país ou no exterior, faria de tudo para tirar proveito de sua aparência, afinal ela era sua única fortuna.
Em todo o caso, o capitão levou a moça embora de seu santuário; e por alguma razão, que imagino suficiente, ios dois estabeleceram residência em Wauling, no Lancashire.
Lá, o galante capitão divertiu-se à sua maneira, indo às vezes, sempre a negócios evidentemente, para Londres. Acredito que poucas esposas tenham chorado tanto quanto aquela pobre, desajeitada herdeira com cara de batata, que, por amor, pulou o muro do jardim do Convento para os braços do belo Capitão.
Ele gastou a fortuna da esposa, e aterrorizou com juras e ameaças, e partiu seu coração.
No fim, Peg se isolou quase completamente, trancada em seu quarto. Ela tinha uma criada irlandesa muito idosa e sinistra a seu serviço. Tal criada era alta, magra e religiosa; e o capitão sabia instintivamente que ela o odiava. Ele retribuía o sentimento, e frequentemente ameaçava expulsá-la da casa, às vezes até dizia que ia jogá-la da janela. Sempre que algum dia chuvoso o obrigava a ficar em casa ou no estábulo, quando se cansava de fumar ele se punha a gritar com ela, e a xingava de “encrenqueira miserável”, reclamava do quanto ela dificultava tudo para ele, a acusava de perturbar a casa com suas “histórias amaldiçoadas” e assim por diante.
Mas os anos foram passando, e Molly Doyle seguia imperturbável em sua posição. Talvez ele acredita-se que havia alguém naquela casa, e que ele não era, afinal, que ainda podia mudar para melhor.
CAPÍTULO II
A Vela Santa
O capitão tolerava ainda um outro intruso, e se senti um modelo de paciência e generosidade por isso. Era sacerdote católico que, com suas longas vestes negras e colarinho engomado com um filete de musselina branca ao redor do pescoço, costumava esgueirar-se para cima e para baixo pelas escadarias e corredores. Algumas vezes, o capitão topava com ele em um lugar, outras vezes em outro. Por algum capricho estranho, ele tratava o clérigo com deferência, até mesmo com uma certa cortesia mal-humorada, apesar de sempre reclamar de suas visitas pelas costas.
Não sei se o ele teria a hombridade, já que clérigo parecia severo e dono de si, mas capitão, de alguma forma, sabia que o padre não tinha uma boa opinião dele e que, se a ocasião se apresentasse, diria coisas muito desagradáveis, que exigiriam uma resposta.
E a ocasião finalmente se apresentou, quando a pobre Peg O’Neill, Sra. Walshawe por pura infelicidade, começou a tremer, gemer e rezar suas últimas orações. O médico veio de Penlynden, e foi bastante vago como de costume, porém mais pessimista. Por uma semana ele visitou com mais frequência. O padre com suas longas vestes negras também vinha diariamente. Por fim chegou a hora daquele último sacramento, quando o pecador atravessa os temidos portais da morte traçando com seus passos um caminho sem retorno, quando volta sua face para além da vida, e só vemos sua forma que se afasta e ouvimos sua voz ecoar distante, já irrevogavelmente parte do domínio dos espíritos.
Então a pobre dama morreu; e alguns diziam que o capitão “sentiu muito”. Eu não acredito nisso. Mas ele realmente não estava muito bem naquela época. Surpreendemente, parecia mesmo um marido enlutado e penitente, com ar desolado e enfermiço. Bebeu muito conhaque com água naquela noite e chamou o fazendeiro Dobbs, na falta uma companhia melhor, para beber com ele. Contou-lhe todas as sua queixas, e como teria sido feliz com sua “pobre senhora” se não fosse pelos “mentirosos, aduladores e fofoqueiros” que ficaram entre os dois, referindo-se a Molly Doyle, a quem xingou e amaldiçoou com mais ganas que nunca, pois o álcool o deixara mais eloquente. Descreveu seu próprio caráter e gentileza de forma tão emocionante, que até chorou lágrimas cheias de sentimentalismo. Quando Dobbs foi embora, ele bebeu um pouco mais, e continuou reclamando e xingando sozinho. Em seguida, subiu as escadas, já trôpego, para ver “o quê aquela diaba da Doyle e as outras bruxas velhas estavam fazendo no quarto da pobre Peg.”
Ao abrir a porta, encontrou uma meia dúzia de velhas, a maioria irlandesas, da cidade vizinha de Hackleton, sentadas em torno de uma mesa sobre a qual havia chá e rapé, etc…Havia velas acesas ao redor do corpo que estava vestido em um estranho traje de sarja marrom. Peg tinha pertencido secretamente a alguma ordem religiosa, acho que às Carmelitas mas não tenho certeza, e foi vestida em seu hábito para o enterro.
—O quê diabos estão fazendo com a minha mulher? — berrou o capitão, com violência. —Como ousam vesti-la nessa maldita fantasia? Sua velha traidora! Para quê essa vela na mão dela?
Acho que ele ficou um pouco assustado, pois a cena era bem lúgubre. A falecida estava vestida naquele estranho traje marrom, e em seus dedos rígidos estava encaixada uma vela enrolada em um rosário de contas grandes de madeira; a chama lançava uma luz branca sobre os traços afilados de seu rosto. Molly Doyle não se deixou intimidar pelo capitão, a quem ela odiava, e como seria de se esperar, nas palavras dela mesma, não ia “levar desaforo para casa”. A fúria do capitão foi ficando mais violenta; ele arrancou a vela das mãos da morta, e quase a jogou na cabeça da empregada.
—A vela santa, pecador! — ela gritou
—Eu faço você engolir essa vela, sua imbecil! —ameaçou o capitão
No entanto, creio que ele não sabia o que era a vela, pois ou ouvir o que ela disse, se acalmou um pouco e a colocou no bolso (a chama já tinha se extinguido), dizendo:
—Você sabe muito bem que não pode fazer essa sua…sua…bruxaria perto da minha mulher sem a minha permissão, você sabe! Agora, por favor, tire esse maldito avental marrom dela e a vista com alguma coisa decente para o enterro. Eu vou jogar fora essa sua vela do demônio.
E saiu do quarto.
—Agora a pobre alma dela está aprisionada, maldito, por sua culpa. Mas a sua alma vai ficar presa no pavio dessa mesma vela, até ela se apagar, seu monstro!
—Eu deveria era acusá-la de bruxaria! —rugiu o capitão, já no pé da escadaria, agarrado ao corrimão. Porém, a porta do quarto se fechou com violência e ele foi até o salão onde, com cambaleante concentração, examinou a vela santa. Então, com aquela reverência pelo simbólico que caracteriza os malandros e espertalhões, a trancou cuidadosamente em um móvel no qual acumulava todo tipo de besteira usada, baralhos e cachimbos velhos, latinhas de unguentos, sua espada do exército, alguns volumes empoeirados do Flash Songster1 e outros livros de gosto questionável.
Ele não voltou a perturbar ninguém no quarto da falecida. Sendo um homem volátil, era provável já estivesse distraído com planos ocupações mais alegres.
CAPÍTULO III
Tio Watson visita Wauling.
Então, a infeliz dama foi enterrada decentemente, e o Capitão Walshawe reinou sozinho por muitos anos na mansão Wauling. Nessa época, ele já era bastante astuto e experiente demais para cometer o erro de correr pela colina íngreme da ruína. Havia um método em sua loucura, e depois de uma carreira de viúvo de mais de quarenta anos, ele também faleceu com um bom dinheiro no cofre.
Mais de quarenta anos tem um grande poder de transformação, e edax rerum2, deixaram suas marcas no jovial Capitão Walshave. Sobreveio-lhe a gota, o que serviu mais para piorar seu temperamento que melhorá-lo, e deixou suas mãos elegantes inchadas nas juntas até que foram se transformando em garras deformadas. Como já não se exercitava, ele foi engordando até ficar bem corpulento. Também sofria do mal que a Sra. Holloway chamava de “pernas ruins” e precisava ser levado para todo lugar em uma cadeira revestida de couro. Ao longo dos anos, as enfermidades foram se acumulando.
Lamento informar, mas até onde sei, ele nunca se arrependeu nem pensou seriamente no futuro. Pelo contrário, suas palavras eram cada vez mais sujas, suas diversões mais pecaminosas e seu temperamento mais truculento. Mas ele não afundou na senilidade. Apesar das agruras do corpo, sua energia e sua maldade, ambas sempre muito fortes e ativas, não foram influenciadas pelo passar do tempo. E assim ele seguiu até o fim. Quando algo o irritava, ele berrava e xingava de um jeito que fazia qualquer pessoa decente tremer. Respondia palavras atravessadas com golpes que foram perdendo força com a idade, felizmente. Mesmo velho ele pegava a bengala para bater em quem o ofendesse, senão a bengala, então um vidro de remédio ou uma caneca.
Era uma peculiaridade do Capitão Walshawe, que ele, por esse tempo, odiava quase todo mundo. O meu tio, o Sr. Watson, de Haddlestone, era primo do capitão e seu herdeiro legal. Ele tinha emprestado dinheiro ao capitão para pagar a hipoteca de suas propriedades, e havia um acordo de venda, no qual termos e um preço estavam acordados em “artigos” que os advogados garantiram ainda estar em vigor.
Creio que o mal-humorado capitão guardava rancor de meu tio por ele ser mais rico, e desejava o seu mal. Mas nunca tentou ser um empecilho em seu caminho, ao menos não enquanto estava vivo.
Meu tio Watson era um Metodista, e o que eles chamam de “líder de classe”; e, no geral, um homem muito bom. Perto dos cinquenta anos de idade, ele era sério como seria de se esperar dado sua vocação, quiçá um pouco seco e rígido, talvez, mas um homem justo.
Em Haddlestone, ele recebeu uma carta do médico de Penlyden, anunciando a morte do velho e perverso capitão, e sugerindo que sua presença no funeral tornaria mais expediente a resolução dos assuntos em Wauling. Meu tio considerou o pedido muito razoável, e partiu imediatamente para a velha mansão em Lancaster, onde chegou bem a tempo para o funeral.
Meu tio, que só conhecia o capitão por intermédio de sua mãe e só lembrava-se dele como um jovem belo e esbelto, bem vestido, com rendas e um chapéu de lado, ficou chocado com o tamanho do caixão que continha seus restos mortais. Mas como a tampa já tinha sido fechada, ele não teve a oportunidade de ver o rosto do velho e inchado pecador.
CAPÍTULO IV
No Salão
Tudo que vou relatar, eu ouvi da boca de meu tio, um homem honesto que nunca foi propenso a invencionices.
Como naquele dia caiu uma horrível tempestade e chovia muito, meu tio convenceu o médico e o advogado a passar a noite em Wauling.
Não havia testamento, o advogado garantiu, pois as inimizades do Capitão estavam sempre mudando, e ele nunca conseguia decidir a quem prejudicaria e de que forma, pois sua maldade sempre mudava de alvo. Ele fora orientado escrever um testamento dezenas de vezes. mas o processo era sempre interrompido.
Após uma busca, não foi encontrado nenhum testamento. Os documentos, na verdade, estavam em ordem, com uma importante exceção: não foram encontrados os arrendamentos de terras. Havia circunstâncias especiais relacionadas com várias das principais divisões da propriedade (é desnecessário detalhar) o que tornava a perda destes documentos um problema sério, e até mesmo perigoso.
O meu tio, portanto, procurou incansavelmente. O advogado o ajudou, e o médico também ofereceu algumas sugestões de onde procurar. O velho criado surdo parecia ser muito honesto, e de fato não sabia de nada.
Tio Watson estava muito preocupado. Por um momento, ele acreditou ter visto uma expressão estranha no rosto do advogado, o que devia ser só coisa de sua imaginação; mas a partir daquele momento ele cismou que o homem devia saber tudo sobre os contratos de arrendamento. O Sr. Watson expôs sua desconfiança ao médico, ao advogado e ao servo surdo naquela mesma noite, na sala de estar. A história de Ananias e Safira3 figurava em primeiro plano em seu discurso. A natureza abjeta da fraude e roubo, de adulteração em qualquer sentido com a regra da honestidade em assuntos relacionados com propriedades, etc. foram incisivamente analisadas; e, em seguida, veio uma longa e extenuante oração, na qual ele apelou com fervor e desenvoltura que o coração duro do pecador que tinha surrupiado os documentos se suavizasse de modo a levar a sua restituição; ou que, ele prosseguiu reservado e contumaz, que ao menos fosse da vontade de Deus trazê-lo publicamente frente à justiça para que os documentos viessem a luz. O fato é que ele estava orando pelo advogado.
Ao término destes exercícios religiosos, quando os visitantes retiraram-se para seus aposentos, tio Watson sentou-se junto à lareira e escreveu duas ou três cartas urgentes. Era bem tarde quando concluiu a tarefa; as velas já estavam inteiramente derretidas, e todos, eu suponho, dormiam em suas camas, exceto meu tio.
Ele estava com frio. O fogo já ia se apagando e a chama das velas se retorcia estranhamente, lançando clarões e sombras por todo o antigo salão de painéis de madeira e mobiliário elegante. Lá fora, só havia o trovão selvagem e os rugidos da tempestade, o distante tremor das janelas ressoava pelos corredores e escadarias, como se uma multidão furiosa sacudisse a casa.
Meu tio Watson pertencia a uma religião não rejeitava de modo algum a existência do sobrenatural, e cujo fundador, pelo contrário, afirmou enfaticamente a existência de fantasmas. Ele ficou feliz, portanto, ao lembrar que, enquanto conduzia suas buscas naquele dia, tinha visto uma vela de uns quinze centímetros no móvel do salão. Não estava nem um pouco disposto a se surpreendido pela escuridão. Sem tempo a perder; pegou o molho de chaves—que agora lhe pertencia— destrancou o móvel, pegou a vela, um verdadeiro tesouro dadas as circunstâncias, a acendeu e substituiu uma das velas derretidas. Apagou as outras e olhou em volta com o auxílio da luz mais estável. Naquele momento, uma rajada de vento estranhamente violenta soprou um punhado de cascalho contra a janela do salão, fazendo um barulho tão intenso que o assustou, mesmo em meio ao rugir da tempestade. Até a chama da vela tremulou no movimento do ar.
CAPÍTULO V
O quarto
Meu tio foi para a cama protegendo a vela com a mão, pois as janelas do átrio chacoalhavam furiosamente e ele estava ainda menos à vontade com a possibilidade de ficar no escuro.
Seu quarto era confortável, embora antiquado. Fechou e trancou a porta. Havia um espelho alto na penteadeira que ficava entre as janelas, virada na direção da cama de dossel. Ele tentou juntar as cortinas da cama, mas elas não se fechavam e, como muitos cavalheiros pego em situações semelhantes, ele não tinha um alfinete, nem encontrou um na enorme almofada de alfinetes que estava embaixo do espelho.
Virou o espelho de modo a ficar de costas para a cama, fechou o cortinado, e posicionou uma cadeira junto delas, para evitar que se abrissem. O fogo estava bom, e havia carvão e lenha extra encostados na grade de proteção da lareira. Então, alimentou o fogo com mais madeira para garantir que uma alegre chama o aqueceria a noite inteira, colocou uma pequena mesa de mogno negro com pernas esculpidas em forma de sátiro junto da cama e sobre ela depositou sua vela. Entrou embaixo das cobertas e pousou sua cabeça protegida por um gorro vermelho sobre o travesseiro, pronto para dormir.
A primeira coisa que o deixou desconfortável foi um ruído ao pé da cama, bastante distinto graças a uma momentânea pausa na tempestade. Mas era só o suave mover e farfalhar das cortinas que tinham se aberto novamente. Quando ia fechando os olhos, ele as viu se abrir completamente. Sentou-se na cama, quase certo de que veria algo inexplicável naquela abertura.
Não havia nada a não ser a penteadeira, outros móveis escuros e as cortinas de janela ondulando devagar em meio a violência da tempestade. O fogo estava tão luminoso e reconfortante que ele nem se preocupou em levantar para reposicionar a cadeira, pois sabia que as cortinas que o assustaram tanto iam acabar se abrindo de novo se ele as prendesse.
Logo, voltou a adormecer mas foi novamente perturbado por um som, que lhe pareceu vir da mesa sobre a qual tinha pousado a vela. Não tinha certeza do que era, mas acordou de um susto, e ficou deitado meio atônito, ouvindo distintamente um som que o alarmou bastante, apesar de não identificar nele nada de sobrenatural. Meu tio descreveu o som como o de um tampo de mesa empenado, e alguém tentasse empurrar para consertar, fazendo a madeira estalar de volta. Um golpe alto e repentino, que fez o pesado castiçal pular. Foi só isso, mas meu tio não conseguiu voltar a dormir por pelo menos uns dez minutos.
A terceira vez que acordou foi daquela maneira calma porém estranha, que acontece com as pessoas às vezes. Quando abrimos os olhos no meio da noite sem saber muito bem porque e ficamos imediatamente despertos, mas muito tranquilamente. Tinha conseguido dormir um pouco mais desta vez, pois viu que a chama da vela estava tremulando e se esticando in articulo4 no castiçal de prata.
Mas o fogo ainda estava luminoso e reconfortante, então tio Watson encaixou o abafador de vela no castiçal, e quase que ao mesmo tempo ouviu uma batida em sua porta, em uma espécie de crescendo, fazendo “sh-sh-sh!” Novamente, meu tio se sentou na cama, assustado e aturdido. Mas logo se lembrou que tinha passado o trinco na porta, e com todos somos essencialmente materialistas mesmo em face de nosso espiritualismo, isso o tranquilizou. Deu um suspiro profundo e começou a se acalmar. Mas depois de um minuto ou dois de descanso, ouviu uma batida mais alta e mais incisiva na porta, tanto que, instintivamente, gritou “Quem está aí?” em um tom severo e retumbante. No entanto, não recebeu nenhuma resposta. O nervosismo foi diminuindo e acredito que meu tio deve ter se lembrado que, especialmente em noites de tempestade, os ruídos de uma casa ficam mais audíveis e tendem a simular todo tipo de barulho de assombrações.
CAPÍTULO VI
O abafador é retirado.
Depois de algum tempo, tio Watson se deitou com as costas viradas para o lado do quarto onde ficava a porta e o rosto voltado para a mesa na qual estava o grande castiçal, ainda fechado com o abafador, e nesta posição, fechou os olhos. Mas o sono não voltou. Visões bizarras começaram a perturbá-lo, ainda me lembro de como descreveu algumas.
Ele sentiu a ponta de um dedo, ao menos é o que ele pensou que fosse, pressionada contra a ponta de seu dedão do pé, como se uma mão tivesse entrado por entre suas cobertas e alguém lhe pedisse atenção ou silêncio. Então, sentiu alguma coisa mais ou menos do tamanho de um rato saltar de repente sobre seu travesseiro. Depois, uma voz fez um som de “Oh!”, muito docemente, bem junto a sua nuca. Ele tinha absoluta certeza do que sentia, quando procurava, não encontrava nada. Sentiu pequenas cãibras esquisitas esgueirando-se por seu corpo, e de repente o dedo do meio de sua mão virou para trás com um ligeiro puxão
Enquanto a tempestade continuava sua canção de uivos, gemidos e assovios roucos por entre as chaminés e os galhos das velhas árvore, e meu tio Watson, por mais que estivesse orando e meditando como era de seu costume, sentiu seu coração pulsar sobressaltado. Não conseguia decidir se estava sendo atormentado por espíritos malignos ou sofrendo de alguma febre em seus estágios iniciais.
Resolutamente, manteve os olhos fechados e, como os companheiros naufragados de São Paulo5, esperou pelo raiar do dia. Em algum momento, o sono parece ter se insinuado em seus sentidos, pois ele acordou do mesmo modo tranquilo de antes, abriu os olhos de uma vez e viu tudo ao seu redor como se nem tivesse dormido.
O fogo ainda queimava, vermelho, não havia dúvida quanto a isso, e o pesado castiçal de prata, ainda tapado com seu grande abafador, estava bem no centro da mesa de mogno preto como antes. Mas ao olhar para ele, por puro acaso, meu tio viu algo que o fez duvidar da de seus próprios olhos.
Ele uma mão minúscula se esgueira de dentro do abafador e levantá-lo, e uma pequena face humana, do tamanho de uma unha de polegar, mas com características bem proporcionais, apareceu, espreitando por baixo. No semblante liliputiano havia uma consternação tão intensa que meu tio ficou indescritivelmente horrorizado. Depois saiu um pequeno pé aqui e outro ali, e um par de perninhas com meias curtas de seda e sapatinhos de fivela, depois o resto do corpo. Com os braços se apoiando no bocal as perninhas se esticaram e esticaram, penduradas junto a haste do castiçal até que os pés alcançaram a base. Depois desceram ao longo das pernas esculpidas da mesa, até chegarem no chão, estendendo-se elásticas, e crescendo insolitamente em todas as proporções conforme desciam até que os pés ficaram do tamanho dos pés de um homem adulto de bom tamanho, enquanto a parte de cima o corpo se afunilava, ainda com as mesmas proporções diminutas, como se a figura estivesse refletida em um espelho estranhamente retorcido.
Com os pés apoiados no chão, a figura se expandiu, como isso era possível meu espantado tio não conseguia entender, até alcançar proporções normais e ficar quase de perfil ao lado da cama. Era um jovem bonito e elegante, trajando um uniforme militar antiquado, com um pequeno chapéu adornado um pluma de três polegadas na cabeça, mas sua expressão era de um desespero indescritível, como a de um homem prestes a ser enforcado.
Ele caminhou com passo leve até a lareira e voltou-se por um momento, muito cabisbaixo, com as costas viradas para a cama. O punho de seu florete brilhou à luz do fogo. Depois, ele atravessou o quarto e foi até a penteadeira, que meu tio podia ver por entre as cortinas da cama. O fogo ardia tão intensamente que o meu tio conseguiu ver o homem tão claramente como se meia dúzia de velas estivessem a arder.
CAPÍTULO VII
O ponto alto da visita
O espelho era uma peça de mobília antiquada, e tinha uma gaveta por baixo. Meu tio tinha passado o dia procurando pelos papéis desaparecido; mas a figura silenciosa abriu bem a gaveta e pressionou uma mola na lateral, revelando um fundo falso trás dela. Dali, tirou um monte de papéis amarrados com uma fita cor de rosa.
Enquanto isso, tio Watson o encarava apavorado, sem piscar nem respirar. A aparição, por sua vez, não deu nenhum sinal de ter consciência de que havia um ser humano vivo no quarto. Mas então, pela primeira vez, ela voltou seu olhar lívido diretamente para o meu tio e, abrindo um sorriso odioso e significativo, levantou os papéis, segurando-os entre os dedos delgados. Então, deu uma longa e astuta piscadela, e uma de suas bochechas pareceu se contorcer em um sorrisinho burlesco que, se não fossem as horrendas circunstâncias, pareceria ridículo. Meu tio não sabia se aquilo era um sorriso de fato ou se era só uma das horripilantes distorções que constantemente torciam as formas daquela figura, como se ele o visse através de algum fluido turvo e deformante.
A figura se aproximou da cama, com aparência cada vez mais exausta e maligna conforme se aproximava. À essa altura o pavor do meu tio quase atingiu seu ápice, pois ele realmente acreditava que a figura se aproximava a dele com algum propósito nefasto.
Mas não foi o que aconteceu.
O soldado espectral, que pareceu ter envelhecido vinte anos durante o breve momento que levou para ir até penteadeira e de volta, sentou-se em uma grande poltrona de couro de espaldar alto, e apoiou os calcanhares na grade da lareira. Seus pé e pernas pareciam inchar indistintamente até ficarem enormes, e bandagens apareceram enroladas em torno deles. O restante do corpo também se deformou e se reconstituiu até atingir proporções similares, virando tudo uma grande massa de corpulência, com um rosto cadavérico e doentio, cheio de as rugas que indicavam uma idade avançadíssima e com olhos cinzentos e mortiços. Estas mudanças aconteceram de forma indefinida porém rápida, como a mudança das nuvens de um entardecer. E com elas, vieram outras: o belo traje regimental desapareceu, dando lugar a trapos de lã velhos e acinzentados, que pareciam manchados e podres, dos quais saía enxame de larvas conforme a figura ia ficando mais e mais pálida, de uma cor que meu tio, que gostava muito de fumar seu cachimbo, descreveu como uma cor de cinzas de tabaco. Tio Watson também descreveu como as larvas pareciam correr e se enrolar do mesmo jeito que os resíduos de uma folha de papel em chamas. Com a forte corrente de ar quente criada pelo fogo e o ar frio que entrava nas janelas chacoalhadas pela tempestade, os pés da aparição pareceram ser sugados pela lareira até que a figura inteira, leve como fumaça, flutuou e desapareceu, puxada para dentro da grande chaminé.
O aposento ficou tão escuro e frio que meu tio achou que o fogo tinha se apagado. De repente, veio o bramido horrendo e o alvoroço da tempestade que pareceu sacudir a casa inteira de alto a baixo, como o rugir de uma multidão sedenta de sangue prestes a finalmente pôr as mãos na vítima que há muito tempo perseguia.
Meu bom tio Watson costumava dizer “Já estive em muitas situações assustadoras e perigosas ao longo de minha vida, mas nunca orei com tanta agonia, nem antes nem depois daquela noite. Tenho a mais absoluta certeza de que vi um espírito maligno.”
CONCLUSÃO
Há duas circunstâncias que devem ser observadas em relação ao meu tio que, como já disse, era um homem perfeitamente íntegro.
A primeira: a vela que ele tirou do móvel do salão e que queimou até o fim na mesa ao lado de sua cama naquela noite tétrica era, sem sombra de dúvida de acordo com o depoimento do velho empregado surdo que trabalhou em Wauling por cinquenta anos, idêntica à “vela santa” que estava nas mãos da falecida Sra. Walshawe, na noite em que a velha irlandesa, já há muito falecida, lançou aquela estranha maldição sobre o capitão.
A segunda: atrás da gaveta embaixo do espelho, meu tio realmente descobriu um fundo falso, no qual estavam escondidos documentos idêntico aos que ele suspeitava terem sido surrupiados pelo advogado. Circunstâncias posteriormente reveladas que convenceram meu tio de que o velho capitão os havia escondido ali, fazendo planos de queimá-los, o que ele quase tinha feito.
Agora, um ingrediente muito interessante nesta história do meu tio Watson era que, que até onde o meu pai, que nunca tinha visto o Capitão Walshawe na vida, sabia, o fantasma tinha uma semelhança horrível e grotesca, mas inconfundível, com aquele defunto canalha nas várias fases de sua longa vida.
A propriedade de Wauling foi vendida no ano de 1837, e a antiga mansão demolida pouco depois. Uma nova casa foi construída mais perto do rio. Já me perguntei diversas vezes se havia rumores de que a mansão era mal-assombrada, e que histórias circulavam sobre ela. Era uma casa antiga, sólida e cômoda, e até muito bonita; o que tornava sua demolição certamente suspeita.
Notas da Tradutora
1“Flash Songster” era um estilo de publicações populares do século XIX. Continham canções e poemas eróticos, assim como caricaturas, desenhos, piadas e comentários irreverentes sobre diversos assuntos. Eram publicados clandestinamente e em formato pequeno que permitia que fossem trasnportados no bolso e passados de mão em mão às escondidas.
2 O autor se refere à expressão em latim ‘Tempus edax rerum‘, que significa “O tempo tudo devora”
3 A história de Ananias e Safira vem do capítulo 5 dos Atos dos Apóstolos do Novo Testamento. Segundo Atos dos Apóstolos, os primeiros cristãos vendiam seus bens a fim de usar o dinheiro para cuidar dos pobres e auxiliar na expansão da religião. Ananias e sua esposa Safira venderam seus bens, mas guardaram uma parte do dinheiro para si. Ao serem questionados, ambos mentiram, e imediatamente caíram mortos, por terem mentido n ão aos homens, mas a Deus.
4 ‘In articulo Mortis’ uma expressão em latim que significa ‘no ato de morrer’ ou ‘a ponto de morrer’, ou seja, no caso da vela, a ponto de se apagar.
5Em Atos dos Apóstolos, capítulo 27, São Paulo foi conduzido até Roma para julgamento. O navio em que ele e seus companheiros estavam foi atingido por uma violenta tempestade perto da costa da ilha de Malta, mas todos a bordo sobreviveram. A ilha à qual, segundo a tradição, os náufragos teriam chegado a nado, ainda hoje tem o nome de Ilha de São Paulo.
Muito bom conteúdo. Parabéns.
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