Imagem de capa: Bianca Castillo
O conto “Vera” foi publicado pela primeira vez em 1874 na revista La Semaine Parisienne. e posteriormente incluído na coletânea “Contes Cruels” em 1883
…
Dedicado à Sra. Condessa de Osmoy.
A forma do corpo é mais essencial que sua substância.
Fisiologia Moderna.
O amor é mais forte que a morte, disse Salomão. Sim, seu poder misterioso é infinito.
Foi no final de uma recente tarde de outono, em Paris. Na direção do sombreado Faubourg Saint-Germain, as carruagens, com suas luzes já acesas, circulavam, demorando-se depois do horário tradicional dos passeios no parque. Uma delas parou em frente ao portal de uma grande mansão senhorial, cercada de jardins centenários. O portal era encimado pelo escudo de pedra com os o brasão da antiga família dos Condes d’Athol: uma estrela prateada sobre fundo azul, com o lema “Pallida Victrix”1, sob uma coroa enrolada em arminho principesco. Os pesados portões se abriram. Um homem de uns trinta a trinta e cinco anos, vestido de luto, com o rosto mortalmente pálido desceu da carruagem. Na varanda, os empregados silenciosos acendiam tochas. Sem sequer olhar para eles, o homem subiu os degraus e entrou.
Era o Conde d’Athol.
Cambaleando, ele subiu as escadas brancas que levavam ao aposento onde, na manhã daquele mesmo dia, ele havia depositado em um caixão forrado de veludo, toda envolvida em cambraia e coberta de buquês de violetas, sua dama adorada, sua pálida esposa, Vera, a razão de seu desespero.
No andar de cima, a porta deslizou quieta sobre o tapete; ele abriu as cortinas.
Todos os objetos estavam no mesmo lugar onde a Condessa os havia deixado um dia antes. A morte atacara de repente. Na noite anterior, sua amada estava envolvida em uma alegria tão profunda, se perdera tão completamente em seus braços, que seu coração, fulminado pelo prazer, não resistiu; seus lábios, de repente, foram tingidos pelo roxo da morte. Ela quase não teve tempo de dar um beijo de adeus ao esposo, sorrindo, sem dizer uma palavra, seus longos cílios caíram como um véu de luto sobre a bela noite de seus olhos
O dia inominável chegava ao fim.
Por volta do Meio-dia, o Conde d’Athol, após a terrível cerimônia no mausoléu da família, dispensou do cemitério todo o séquito vestido de negro. Então, fechando-se sozinho com a recém-enterrada, entre as quatro paredes de mármore, trancou a porta de ferro do mausoléu. O incenso queimava em um tripé na frente do sarcófago e um arranjo brilhante de velas ao lado o iluminava.
Ele ali ficou, de pé, pensativo, envolvido por um sentimento ímpar de ternura sem esperança. Ficou ali o dia inteiro. Por volta das seis da tarde, ao pôr do sol, deixou o campo santo. Ao trancar o sepulcro, arrancou a chave de prata da fechadura e, levantando-se no último degrau da soleira, jogou-a suavemente no interior da do mausoléu, sobre o pavimento interno, através do trevo que decorava o portal. Por quê?… Com certeza, tinha tomado a decisão íntima de nunca mais retornar.
E agora estava de volta ao seu quarto de viúvo.
A janela, coberta de vastas cortinas de caxemira cor de malva com detalhes em dourado, estava aberta, e um derradeiro raio de sol iluminava o retrato da finada em sua antiga moldura de madeira. O conde olhou ao seu redor para o vestido jogado no dia anterior sobre uma poltrona, as jóias sobre a lareira, o colar de pérolas, o leque meio fechado, os pesados frascos de perfume que ela nunca mais usaria. Na cama de ébano de colunas sinuosas, ainda desarrumada, junto do travesseiro no qual o contorno de sua divina cabeça ainda estava visível em meio às rendas, ele viu o lenço manchado com gotas rubras de sangue, deixadas quando o jovem coração parou de bater de repente. Sobre o piano aberto, a partitura de uma melodia, inacabada para sempre; os jasmins que ela tinha colhido na estufa, estavam morrendo dentro dos antigos vasos importados da Saxônia; e, ao pé da cama, sobre o tapete preto estavam as pequenas sandálias de veludo oriental, nas quais brilhava o lema risonho de Vera, bordado em pérolas: Quem verá, Vera amará. Os pés descalços da amada brincavam com eles na manhã do dia anterior, beijados, a cada passo, por penas de cisne! E ali, ali, na sombra, o relógio de pêndulo, cujo mecanismo ele tinha quebrado para que não mais marcasse a hora.
Assim, ela se foi! …Para onde então!… Como viver agora? Para quê viver? Era impossível, absurdo.
O conde se afundava em pensamentos desconhecidos.
Ele pensava em toda a sua existência pregressa. Seis meses haviam se passado desde o casamento. Não foi no exterior, no baile de uma embaixada que ele a viu pela primeira vez? Sim. Aquele exato momento apareceu com tanta clareza diante de seus olhos. Ele podia vê-la, radiante. Naquela noite, o olhar dos dois se encontrou. Eles haviam reconhecido intimamente a semelhança entre seus espíritos, e se amaram para sempre.
Ao trocarem as primeiras palavras, os sorrisos intrigantes, as insinuações, todas as dificuldades que o mundo inventa para atrapalhar a felicidade inevitável daqueles que se amam, desapareceram diante da certeza silenciosa de que, do momento em que se viram, eles pertenciam um ao outro,
Vera, cansada da frivolidade cerimoniosa do grupo que a acompanhava, veio até ele ao primeiro sinal de tédio, simplificando, da forma mais augusta, o caminho, encurtando os passos banais nos quais o precioso tempo da vida se perde.
Ah, como, nas primeiras palavras, as vãs opiniões dos outros, sem importância para a eles, pareceram-lhes como um bando de pássaros noturnos retornando às trevas! Que sorrisos trocaram! Que enlace inefável!
No entanto, a natureza de ambos era a mais estranha, na verdade! Eram dois seres dotados de sensibilidade maravilhosa, mas exclusivamente terrenos. Suas sensações se prolongavam com uma intensidade perturbadora. Eles se deixavam levar apenas em senti-las. Certas ideias do domínio da alma, por exemplo, do Infinito, do próprio Deus, pareciam veladas ao seu entendimento. A fé no sobrenatural, sentida por um grande número dos que vivem, era para eles apenas assunto de vago espanto: uma carta fechada com a qual não se importavam, sem qualidade para condenar ou justificar. Além disso, reconhecendo que o mundo era estranho a eles, imediatamente após sua união, os dois se isolaram nesta antiga e escura mansão, onde a densidade dos jardins abafava os ruídos do lado de fora.
Ali, os dois amantes submergiram-se num oceano de alegrias lânguidas e lascivas, onde o espírito se mistura com a carne misteriosa! Eles esgotaram a violência dos desejos, dos frêmitos e ternuras apaixonadas Se tornaram o batimento cardíaco um do outro. Neles, a mente penetrou tão bem no corpo, que suas formas pareciam intelectuais para eles, e os beijos eram elos ardentes da corrente que os atava em uma fusão perfeita. Que profundo êxtase! De repente, o feitiço foi quebrado; a terrível tragédia os separou, seus braços se desataram. Que sombra teria lhe roubado sua amada perdida? Morta! Não. A alma dos violoncelos é tirada pelo grito de uma corda quebrada?
As horas passaram.
Ele observava pela janela a noite avançando pelo céu. E a noite lhe parecia íntima, ele a enxergava como uma rainha que caminhava com melancolia, exilada, com diamantes cintilando em sua túnica de luto; Vênus solitária que reluzia acima das árvores, perdida na profundidade do azul.
— É Vera—pensou.
Com o sussurro daquele nome, ele tremeu como se despertasse; então, se endireitou e olhou ao seu redor.
Os objetos no quarto estavam iluminados por um brilho até então impreciso, uma luz noturna, que borrava a escuridão, e que a noite, subindo ao firmamento, fazia aparecer uma outra estrela. Era a luz, com aromas de incenso, de uma iconóstase2, relicário de família de Vera. O tríptico, de uma madeira antiga e preciosa, parecia, graças a sua espartaria3 russa, uma mistura de vidro e a pintura. Um pouco da luz dourada de seu interior caiu, fulgurante, sobre um colar, em meio às as joias em cima da lareira.
A auréola da Virgem de vestes celestiais brilhava, decorada com uma cruz bizantina, cujas extremidade finas e vermelhas se misturavam ao reflexo da luz, emprestando um tom de sangue ao lustre furta-cor das pérolas. Vera sempre reclamara de que desde a infância, devido à sua própria natureza, não pudera infelizmente, ser capaz de consagrar mais que um amor supersticioso àqueles grandes olhos do rosto materno e tão puro da Virgem familiar, um amor às vezes oferecido, ingênuo e pensativo, quando passava em frente ao oratório.
O conde, ao ver o relicário e sentindo-se tocado no mais íntimo de sua alma pelas recordações, levantou-se, soprou as santificadas velas, e estendeu a mão para tocar a sineta.
Um servo apareceu, um velho vestido de preto, segurando uma lamparina, que colocou na frente do retrato da Condessa. Ao voltar-se, foi com um arrepio de terror supersticioso que viu seu mestre sorrindo como se nada tivesse acontecido.
— Raymond, —disse o conde, tranquilamente— hoje à noite estamos sobrecarregados de fadiga, a Condessa e eu; pode servir o jantar por volta das dez horas. A propósito, decidimos ficar aqui, isolados a partir de amanhã. Nenhum dos meus servos, além de você, deve passar a noite na casa. Faça com que recebam os salários equivalentes a três anos, e mande todos embora. Depois, feche o cadeado do portão; acenda as tochas no andar de baixo, na sala de jantar. Só você nos será suficiente. Não receberemos mais ninguém no futuro.
O velho tremia e olhava atentamente para seu mestre.
O Conde acendeu um charuto e desceu para o jardim.
A princípio, o servo pensou que a dor, tão pesada, tão desesperada, havia perturbado o juízo do patrão. Ele o conhecia desde a infância; e entendeu imediatamente que o choque de um despertar súbito poderia ser fatal para ele, como para um sonâmbulo. Seu dever, em primeiro lugar, era proteger o segredo.
Inclinou a cabeça. Seria uma cumplicidade dedicada a um delírio religioso? Obedecer?… Continuar a servir a ambos, ignorando a morte dela? Que ideia mais estranha! Isso duraria só uma noite? E amanhã? O que aconteceria amanhã? Infelizmente, quem poderia saber? Talvez….Era, afinal, um plano inviolável! Que direito tinha ele de questionar?
Saiu do quarto e executou as ordens exatamente como orientado e, naquela mesma noite começou para ele uma existência insólita.
Tratava-se de criar uma ilusão terrível.
O desconforto dos primeiros dias desapareceu logo. Raymond, primeiro com espanto, depois com uma certa deferência e até ternura, conseguiu agir de forma tão natural que mal tinham se passado três semanas quando ele começou a sentir, de vez em quando, que ele mesmo acreditava de boa vontade na mentira. O propósito oculto desaparecia! Às vezes, experimentando uma espécie de vertigem, ele precisava lembrar a si mesmo que a Condessa estava realmente morta. Se deixou levar por aquele jogo mórbido, tanto que a cada momento esquecia a realidade. Logo, já não precisava de mais que um pensamento para se convencer e se recompor. Percebeu que acabaria por se render completamente ao pavoroso feitiço com que o conde gradualmente impregnava a atmosfera ao redor de ambos. Ele tinha medo, um medo indeciso e contido.
De fato, o Conde d’Athol vivia completamente inconsciente da morte de sua amada! A imagem da jovem esposa estava tão amalgamada com a dele, que não podia evitar de encontrar sua presença em tudo. Às vezes, em dias ensolarados, ele sentava em um banco no jardim e lia em voz alta os poemas que ela amava; às vezes, à noite, ao lado do fogo, com duas xícaras de chá sobre a mesa de pedestal, ele conversava com a Ilusão que, aos seus olhos, estava sentada na outra poltrona, sorrindo para ele.
Os dias, as noites, as semanas voaram. Nenhum dos dois homens tinha ideia do que estavam conjurando. Fenômenos singulares começavam a ocorrer, tornando difícil distinguir até que ponto o imaginário e o real eram idênticos. Uma presença flutuava pelo ar: uma forma esforçava-se para aparecer, para se compor no espaço tornado indefinível.
D’Athol vivia uma vida dupla, iluminado. Um rosto suave e pálido vislumbrado como um raio num bater de pálpebras; um acorde sutil tocado no piano, de repente, um beijo lhe fechava a boca no momento em que ia falar, afinidades de pensamentos femininos despertavam nele em resposta às suas palavras, uma duplicação de si mesmo, que ele sentia, como uma névoa fluida, a estonteante fragrância doce de sua amada com ele, e, à noite, entre acordar e dormir, palavras ditas em voz baixa…tudo isso ele sentia. Era a negação da morte elevada, por fim, a um poder nunca antes visto!
Certa vez, d’Athol a sentiu e a viu tão claramente junto de si, que a tomou em seus braços: mas esse movimento dissipou sua imagem.
— Pequena! — murmurou, sorrindo.
E voltou dormir como um amante acalentado por sua amada risonha e lânguida.
No dia do aniversário dela, ele colocou, como se fosse uma piada, uma sempre-viva no buquê que depositou sobre o travesseiro de Vera.
— Porque ela pensa que está morta! — explicou
Graças à profunda e onipotente vontade de Monsieur d’Athol, que, pela força do amor, recriou a vida e a presença de sua esposa na solitária mansão, sua existência ia ganhando um encanto sombrio e convincente. O próprio Raymond já não sentia mais medo, acostumando-se gradualmente àquele ambiente.
Um vestido de veludo preto vislumbrado num canto; uma voz risonha que chamava na sala de estar; a campainha tocando pela manhã no horário em que ela acordava… Como nos velhos tempos. Tudo isso se tornou familiar. Parecia que a falecida estava brincando de ser invisível, como uma criança. Ela se sentia tão amada! Era tudo tão natural.
Um ano se passou.
Na noite do aniversário de casamento, o Conde, sentado à beira da lareira, no quarto de Vera, tinha acabado de ler para ela um fabliau4 Florentino, Calímaco. Ele fechou o livro e serviu o chá:
—Dushchka5—disse — você se lembra do Vale das Rosas, das margens do Lahn, do Château des Quatre-Tours?… Esta história não te lembrou dele?
Ele se levantou e no vidro azulado, viu-se mais pálido do que o normal. Pegou uma pulseira de pérolas jogada dentro de uma taça e a analisou com calma. Vera não tinha acabado de tirá-la do braço, agora mesmo antes de se despir? As pérolas ainda estavam mornas e seu brilho mais fosco, como se retivessem o calor de sua pele. E a opala do colar siberiano, que amava tanto o belo seio de Vera que parecia té empalidecer, mortiça em seu pingente dourado, quando a jovem esquecia de tirá-lo Por isso a Condessa amava aquele fiel pedra preciosa!… Nesta noite, a opala brilhava como se tivesse acabado de ser usada, como se o requintado magnetismo da bela falecida ainda a penetrasse. Ao deixar de lado o colar e sua pedra preciosa, a mão do conde, por acaso, tocou o lenço de batista no qual as gotas de sangue ainda estavam vermelhas e úmidas como um cravo rubro jogado sobre a neve! E ali, sobre o piano, quem teria virado a página final da partitura daquela melodia? O quê? a luz da vela sagrada estava acesa de novo no relicário! Sim, sua chama dourada iluminava misticamente o rosto de olhos fechados, da Virgem! E aquelas flores orientais, recém colhidas, que floresciam ali, nos velhos vasos da Saxônia, que mão as teria colocado ali? O quarto parecia alegre e cheio de vida, de uma forma mais significativa e intensa do que o habitual. Mas nada surpreendia o Conde! Parecia tudo tão normal para ele, que nem prestou atenção que a hora soava no relógio cujo pêndulo estivera parado por um ano.
Naquela noite, no entanto, parecia que, das profundezas do além-túmulo, a Condessa Vera apaixonadamente tentava retornar àquele quarto tão impregnado com sua essência! Ela tinha deixado tanto de sua pessoa ali! Tudo o que um dia constituíra sua existência a atraía de volta. Seu charme pairava ali, a longa violência do desejo apaixonado de seu marido devia ter afrouxado os sutis laços do invisível que a atavam!
Ela estava ali pois ele precisava dela. Tudo o que ela amava estava ali.
Ela provavelmente queria voltar e rever seu próprio sorriso naquele misterioso espelho, no qual tantas vezes tinha admirado seu semblante alabastrino! Nele, a doce falecida tremera, certamente, junto às violetas e sob a luz das lamparinas acesas; a divina morta tremeu em seu túmulo, sozinha, ao ver a chave de prata jogada no chão. Ela também queria chegar até ele! E sua vontade se perdia no perfume de incenso e no Isolamento. A morte é uma circunstância final apenas para aqueles que esperam pelo céu; mas o que seria a morte, o céu e a vida para ela, se não o abraço dele? E o beijo solitário de seu marido atraiu seus lábios, em meio as sombras. E o som passado de melodias, as palavras ébrias de outrora, os tecidos que cobriam seu corpo e conservavam sua a fragrância, essas pedrarias mágicas que desejavam, em sua secreta simpatia, acima de tudo a imensa e absoluta impressão de sua presença, opinião compartilhada enfim pelos próprios objetos, tudo a chamava, clamava por ela há tanto tempo, e tão imperceptivelmente, que, finalmente curada da morte adormecida, tudo o que faltava era Ela, apenas Ela!
Ah! As ideias são seres vivos!… O Conde esculpira no ar as formas de sua amada, logo era necessário que esse vazio fosse preenchido pelo único ser que lhe era idêntico, caso contrário, o universo desabaria. A impressão era de que, naquele momento, definitiva, simples, e absoluta, Ela tinha que estar ali, naquele quarto! Ele estava tão serenamente certo disso quanto de sua própria existência, e todas as coisas ao seu redor estavam saturadas com essa convicção. Podia vê-la, ali mesmo! E,como tudo o que faltava era a própria Vera, tangível, exterior, era necessário que ela estivesse ali e que o grande sonho da vida e da morte abrisse suas infinitas portas por um momento! O caminho da Ressurreição tinha sido construído pela fé até chegar a ela! Uma nova explosão de riso musical iluminou o leito nupcial com sua alegria. O Conde se virou. E lá, diante de seus olhos, feita de vontade e memória, inclinada, fluida, sobre o travesseiro de renda, com a mão nos pesados cabelos negros, a boca deliciosamente entreaberta em um sorriso, toda voluptuosidade decadente, mortalmente bela, finalmente! A Condessa Véra, ainda um pouco sonolenta, olhava para ele novamente.
— Roger!… — ela chamou com uma voz distante.
Ele foi até ela. Seus lábios s encontraram em uma alegria divina, enlevada, imortal!
E eles perceberam, então, que eram, de verdade, nada mais que um único ser.
As horas voaram de uma forma estranha naquele êxtase no qual se misturavam pela primeira vez a terra e o céu.
De repente, o Conde d’Athol estremeceu, como se tivesse sido atingido por uma lembrança fatal.
— Ah! Agora eu me lembro! — ele disse.— Então, o que eu tenho? Você está morta!
Neste o exato momento, nesta exata palavra, a luz noturna e mística do altar se apagou. A luz pálida da manhã, de uma manhã banal, cinzenta e chuvosa, entrava no quarto, filtrada pelas frestas abertas das cortinas. As velas bruxulearam e se apagaram, os seus pavios incandescentes fumegando com um odor acre; o fogo desapareceu sob uma camada de cinzas quentes; as flores murcharam e secaram em questão de segundos; o pêndulo foi parando gradualmente. A materialidade de todos os objetos, de repente, desvaneceu-se. A opala, morta, já não brilhava mais; as manchas de sangue também haviam desaparecido da cambraia, ao seu lado; e ela sumiu entre os braços desesperados que tentavam em vão abraçá-la novamente. A visão ardente e branca retornou ao ar e se perdeu nele. Um frágil suspiro de despedida, nítido ainda que distante, alcançou a alma de Roger. O Conde levantou-se, percebendo que estava sozinho. Seu sonho tinha acabado de desfazer-se de uma só vez; ele quebrara o fio magnético de sua trama radiante com uma única palavra. Agora, a atmosfera pertencia aos mortos.
Como lágrimas de vidro, ilogicamente acumuladas, e ainda assim tão sólidas que um golpe de martelo não as quebraria, mas que se desmanchavam em poeira repentina e impalpável se alguém as espetasse com a ponta da mais fina das agulhas, tudo desapareceu.
— Oh! — ele sussurrou— Então… acabou! Perdida!… Sozinha! Qual é o caminho, agora, para chegar até você? Diga-me o caminho que pode me levar até você!…
De repente, como em resposta, um objeto brilhante caiu do leito nupcial, sobre o tapete preto, com um ruído metálico: um raio da terrível luz do dia terrestre o iluminou!… O homem, abandonado, inclinou- se e a pegou. Um sorriso sublime iluminou seu rosto ao reconhecer o objeto: era a chave do túmulo.
Notas da Tradutora
1Pallida Victrix- Pálida e Triunfante”. O epíteto “victrix” era atribuído à diversas deusas do panteão romano, mais notavelmente à Vênus, a deusa do amor, para indicar que o amor tudo vence.
2Iconostase ou iconostásio (do grego antigo tardio εικονοστάσιον). Um objeto religioso da Igreja Ortodoxa, é uma espécie de biombo ou divisória que separa o espaço onde ficam os fiéis do santuário, reservado ao clero (exemplo: iconostáse da Catedral de Hadjúdorog, na Hungria). Ele é ricamente decorado com imagens de santos e anjos destinadas à contemplação e à oração. Existem versões pequenas para uso pessoal ou familiar, mas nesse caso elas não são usadas para divisão de ambientes, mas sim para a decoração de pequenos altares (exemplo de iconostase caseira)
3Espartaria- forma de artesanato feita com fibras vegetais, em especial com a gramínea conhecida como “esparto”
4Fabliau era um gênero literário da França medieval, que consistia em narrativas cômicas, geralmente caracterizadas por seu conteúdo sexual ou escatológico, e suas críticas à nobreza e ao clero. O gênero foi posteriormente adaptado para outros países e serviu de inspiração para o Decameron de Boccaccio e Os Contos de Canterbury de Chauncer.
5Dushkha- palavra russa usada para se referir à pessoa amada.
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