(Imagem de capa: Nazar Sharafutdinov)
Saudações, leitor noturno!
No nosso último artigo fizemos uma viagem pelas assombrações do Japão (PARTE 1 e PARTE 2), e como já faz um tempinho que não damos um passeio, hoje vamos conhecer algumas das criaturas do folclore do leste Europeu.
As lendas e o folclore desta região são uma mistura interessante de cristianismo e lendas da mitologia dos povos Eslavos, como eram chamados na Antiguidade aqueles que habitavam as terras além do rio Vistula (na atual Polônia). Quando usamos o termo “eslavo” estamos nos referindo a uma palavra que tem origem no vocábulo “slovo” da língua protoeslava (que originou quase todas a línguas do leste europeu), e significa “quem fala a mesma língua”. Nos séculos I e II, antes da expansão do Cristianismo, textos Gregos e Romanos citam diversos povos e tribos cujas línguas pertenciam a família linguística eslava e viviam na região que hoje chamamos de Leste Europeu. Hoje em dia, os países considerados “eslavos”, isto é, cuja população descende (ao menos em parte) destas tribos e povos originais, são: Polônia, República Tcheca, Eslováquia, Rússia, Ucrânia, Belarus, Bulgária, Bósnia e Hezergovina, Montenegro, Sérvia, Croácia e Eslovênia.
Se você tem acompanhado o noticiário e vem tentando entender as origens e desdobramentos da Invasão Russa na Ucrânia, deve ter uma ideia de que a questão da identidade nacional e cultural continua sendo um forte elemento social político neste canto do mundo. Cada país do Leste Europeu tem suas tradições e cultura específicas, sua própria identidade nacional independente (não importa o quanto certos políticos tentem convencer o mundo do contrário), mas eles também tem uma longa e conturbada história compartilhada. Há muitas diferenças e semelhanças entre eles, e suas lendas e mitos circularam ao longo dos séculos, cruzando fronteiras e se modificando e recriando. Isso que significa que cada uma das criaturas que vamos conhecer neste artigo tem suas variações nacionais/regionais e nomes diferentes, e podem existir no folclore de um país e não de outro, ou serem exclusivos de um lugar ou outro, algumas delas como a Baba Yaga e o Leshii podem até ser consideradas “pan-eslavas” pois existem de alguma forma em todo o Leste Europeu. Então, o que eu vou apresentar aqui são as versões mais populares, mais conhecidas e, claro, mais assustadoras!
Então relaxe, faça um chá (ou se sirva de uma boa dose de vodka) e se prepare para os arrepios!
1-Strzyga

A Strzyga (plural Strzygi) é uma criatura do folclore polonês que se parece um pouco com um vampiro, mas com característic am bem diferentes. De acordo com o historiador e especialista em línguas eslavas, Aleksander Brückner, é muito provável que a Stryga tenha sido “inspirada” no mito Greco-romano da Stryx, uma criatura que se metamorfoseia em pássaro para atacar seres humanos e se alimentar de seu sangue e sua carne, e que tinha uma certa preferência por bebês. O termo teria, inclusive, dado origem à palavra italiana “strega”, que significa “bruxa”.
Strzyga é uma espécie de demônio geralmente feminino, que nasce de pais humanos, mas vem ao mundo com dois corações, duas almas e duas arcadas dentárias. Graças a esse mito, crianças cujos dentes permanentes começasse a sair antes que os dentes de leite caíssem ou bebês que já nascessem com dentinhos (ocorrências pouco comuns, mas perfeitamente normais) eram consideradas Strzygi, e muitas vezes isoladas do resto da comunidade. Pessoas que sofriam de sonambulismo também eram frequentemente acusadas de ser Strzygi. Durante pandemias, quando corpos eram enterrados ao montes em valas comuns, também surgiu o mito de que, se uma pessoa fosse enterrada e conseguisse sair do túmulo, era uma sinal certo de que ela era uma Strzyga. Essa crença pode ter surgido de casos reais de pessoas enterradas vivas devido a identificação incorreta de seu óbito.
Dentre as criaturas folclóricas que vamos falar neste artigo, a Strzyga tem características bem diferentes por causa de sua origem inteiramente humana. Acreditava-se que elas eram inofensivas enquanto vivas mas que tinham tendência a morrer cedo. E era após a morte que sua natureza sobrenatural aflorava e elas se tornavam perigosas. Quando uma Stryga morria, suas duas almas se separavam: uma delas ia para o além como a alma de qualquer pessoa, mas a outra retornava para dentro do cadáver, que então voltava à vida como uma criatura completamente diferente: a Strzyga ganhava poderes sobrenaturais ao “renascer” . Então, a morta-viva passava a atacar os vivos para beber seu sangue e comer sua carne e órgãos internos. Acreditava-se que a Strzyga preferia atacar à noite, quando se transformava em uma coruja monstruosa e caçava na floresta, por isso as pessoas deviam evitar sair de casa e viajar durante a noite. Geralmente, elas procuravam casas abandonas para se esconder durante o dia, e vivam nelas normalmente, fazendo tarefas domésticas e tudo, já que ainda se lembram de sua vida passada como ser humano. Por isso se aconselhava as pessoas a evitar casas abandonadas, pois elas podiam estar abrigando uma destas criaturas. Em algumas tradições acreditava-se que elas também eram capazes de prever a morte dos seres humanos, de foma similar à Banshee irlandesa. No folclore polonês existe uma versão masculina chamada Strzygoń, considerada mais ardilosa e capaz de se “disfarçar” e levar uma vida normal durante o dia, chegando até a casar e ter filhos.
Por ser uma criatura que só se manifesta após a morte do corpo, a únicas maneiras de se livrar de uma Strzyga eram justamente destruir o corpo da pessoa “suspeita”. Algumas “técnicas” incluíam decapitar o cadáver e enterrar a cabeça e o corpo separadamente, ou enterrar o corpo virado para baixo com uma foice amarrada no pescoço, assim, ao acordar, elas se enterrariam mais fundo e no esforço de sair da tumba cortariam a própria cabeça com a foice.
2-Rusalka

A Russalka (plural: Russalki) aparece nos mitos de quase todos os países do leste europeu, mas tem mais proeminência na Rússia. Muitas vezes seu nome é traduzido como “sereia”, mas essa tradução não é muito adequada. A palavra “Rusalka” vem de “rousajila”, uma adaptação eslávica do termo bizantino “rousália”, o festival das rosas celebrado perto do Pentecostes, o que indica a conexão destes espíritos com essa época do ano.
As Rusalki são espíritos femininos que habitam as águas. Acredita-se que sempre que uma mulher ou menina morre afogada (por acidente, suicídio ou assassinato) sua alma fica presa às águas onde morreu, e ela se transforma em uma Rusalka. Ao contrário das sereias, Rusalki não são metade mulher e metade peixe: sua aparência é a de uma mulher extremamente bonita com longos cabelos loiros, negros ou verdes e sempre soltos, pois o cabelo solto é tradicionalmente considerado um sinal de um “espírito impuro” (por essa razão as tranças elaboradas são parte importante da cultura de diversos povos do leste europeu.) Mas o que as Rusalki tem em comum com as sereias e com vários espíritos femininos das águas de diversas culturas, é o fato de serem muito perigosas e sedutoras. Elas costumam atrair suas vítimas, geralmente homens, para dentro da água e enrolam seus longos cabelos em suas pernas, impedindo que eles nadem e se salvem. Caso a vítima tente se agarrar à rusalka para não se afogar, o corpo delas se torna escorregadio, e seus cabelos puxam sua presa para o fundo. Um elemento bastante tétrico da lenda é que as Rusalki costumam gargalhar enquanto suas vítimas se afogam, como se estivessem apenas brincando.
No início do mês de Junho o calendário tradicional eslavo inclui uma semana conhecida como “semana verde” ou “semana da Rusalka”. Esses dias são dedicados às festividades que marcam o auge do verão e são também associados ao culto dos mortos e da fertilidade. Depois da cristianização dos povos eslavos, essa semana também passou a marcar a aproximação da celebração de Pentecostes pelo calendário Ortodoxo. Durante a Semana Verde, as Rusalki ficam mais poderosas e podem até sair das águas e subir nas árvores durante a noite, por isso se tornam um verdadeiro perigo para os desavisados que resolvam dar um passeio no bosque. Por essa razão é estritamente proibido nadar durante a Semana Verde, e os camponeses costumavam colocar oferendas nas árvores para acalmar as Rusalki.
Segundo o folclorista soviético Vladimir Propp, as Rusalki eram originalmente, divindades ligadas à fertilidade que saiam das águas durante a primavera e o verão para regar os campos e as plantações, garantindo assim boas colheitas. Com o passar do tempo elas teriam ganhado conotações negativas, graças à influência de mitos de outras culturas, como as sereias greco-romanas, a Nixie e a Lorelei germânicas e a Melusine francesa. A Rusalka é uma das figuras folclóricas mais populares do folclore do leste europeu, e já foi tema de inúmeros livros, poemas, filmes (com o o curta de animação de Aleksander Petrov, que você pode assistir AQUI) e até duas óperas ( “Rusalka” de Dvojark e “Rusalka” de Dargomyzhsky ) .
3-Vodyanoy / Vodnik

O Vodyanoy (cujo nome vem da palavra “vod”, ou água, a mesma que origina a palavra “vodka”) é um espírito das águas, quase uma espécie de versão masculina da Rusalka. Ele aparece com o nome de Voydyanoy nas lendas da Rússia, e Vodnik no folclore da República Checa e da Eslováquia. Embora os dois sejam parecidos o suficiente para que muitos os considerem versões alternativas da mesma criatura, há muitas diferenças entre o Voydyanoy e o Vodnik. Então vamos falar dos dois, começando pelo Vodyanoy.
Ao contrário das Rusalki, o Vodyanoy das lendas russas não é uma figura sedutora. Ele costuma assumir a forma de um velho com uma longa barba verde, e cabelos também verdes e compridos, muitas vezes com cara e mãos de sapo, que anda coberto de lodo do fundo do rio, e usa um chapéu feito de juncos. No entanto, ele tem uma coisa em comum com as Rusalki: o hábito de afogar seres humanos. Obviamente, ele não atrai as vítimas com a sua beleza, mas prefere esperar que os banhistas entrem na água para nadar e se divertir, e os puxa para o fundo. Geralmente ele prefere afogar aqueles que nadam à tarde, mas tem planos diferentes para quem resolve nadar depois do pôr do sol: ele os captura e transforma em seus escravos. A melhor maneira de evitar um encontro com o Vodyanoy é fazer o sinal da cruz antes de entrar na água. Porém, a criatura não era um perigo só para os banhistas: quando irritado, o Vodyanoy arrebentava represas provocando enchentes. Curiosamente, a mulher do Vodyanoy, a Vodyanitsa, é seu completo oposto. Ela é uma mulher muito bonita, com uma longa cabeleira verde, que costuma se transformar em um peixe com barbatanas douradas ou em um cisne branco. A contrário do marido, ela é um espírito inofensivo que, no máximo, rasga as redes dos pescadores ao nadar em meio a elas.
Já o Vodnik (plural: Vodnici) do folclore da República Checa e da Eslováquia é menos sinistro. Ele tem a aparência de um homem normal, nem muito jovem nem muito velho, mas com algumas características que entregam sua origem sobrenatural: ele costuma se vestir roupas multicoloridas feitas de vários retalhos diferentes e usa um chapéu de palha decorado com fitas, seus cabelos são de uma cor loira-esverdeada, e ele tem membranas entre os dedos das mãos. Ao contrário de sua versão russa, os Vodnici não são necessariamente perigosos: assim como acontece com os seres humanos, há Vodnici bons e maus. Alguns Vodnici tem o hábito de afogar banhistas assim como o Voydyanoy, e “guardam” as almas dos afogados em potes de porcelana, pois as consideram muito preciosas. Só quando um destes potes é quebrado a alma contida nele consegue se libertar e descansar em paz. Mas há outros Vodnici, que preferem ficar na beira dos rios e lagos fumando ou jogando cartas, e ajudam os pescadores a pegar mais peixes. Por isso era costume entre os pescadores deixar oferendas de tabaco para pedir (ou a agradecer) a ajuda deles.
4-Mavka

A Mavka (plural: Mavki) é parecida com a Rusalka, mas é uma figura exclusiva do folclore da Ucrânia. Segundo a lenda, as Mavki são os espíritos de meninas e mulheres que morreram de forma trágica e prematura ou de bebês mortos antes do batismo. Esses espíritos assumem a forma de belas moças completamente nuas, ou usando vestes de linho fino, quase transparente, com cabelos longos e soltos, tão etéreas que não projetam nem sombra no chão nem reflexo na água. Elas vivem nos bosques ou nas montanhas, escondendo-se em cavernas que decoram com flores e tecidos delicados que elas mesmas tecem. A característica mais estranha das Mavki é não possuírem pele ou músculos nas costas, o que deixa sua coluna e órgãos internos expostos, por isso usam o cabelo solto.
Elas usam sua beleza atrair rapazes para o bosque, onde fazem cócegas neles até que morram de exaustão ou então elas simplesmente os afogam. No entanto, contrário de outras entidades parecidas, as Mavkas não atacam suas vítimas por maldade: ao ver um homem jovem e bonito, as Mavki entram em uma espécie de transe e só percebem que estão causando mal à vítima quando já é tarde demais. Essa crença vem da lenda de Kostroma e Kupalo. Os dois eram um casal de irmãos, filhos gêmeos do deus do fogo Simargi e da deusa da noite Kulpalnitsa. Mas ainda criança, Kupalo foi sequestrado por um pássaro mágico mandado pelo deus do submundo, Chernabog. Depois de adultos, Kostroma e Kupalo se reencontraram e, sem saber que eram irmãos, se apaixonaram e se casaram. Ao descobrir a verdade, os dois se suicidaram: Kupalo se lançou às chamas e Kostroma se afogou num lago. O espírito dela ficou preso nas águas e, sempre que via um jovem rapaz se aproximar de seu lago, pensava se tratar de seu amado Kupalo, e o arrastava paras as águas, afogando-o sem querer. Assim, Kostroma se tornou a primeira Mavka.
Quando não estão neste “transe assassino” as Mavki são seres gentis, que adoram flores, e ajudam os camponeses a encontrar animais perdidos e mantêm animais selvagens e ferozes longe das fazendas. Mas algumas lendas não pintam um retrato tão gentil das Mavki: em algumas regiões da Ucrânia, acredita-se que quando encontram um ser humano na floresta, elas costumam pedir um pente ou escova de cabelo. Caso receba o objeto pedido, a Mavki se distrai penteando seus cabelos e deixa que a pessoa siga seu caminho. Mas se a pobre vítima não tiver um pente ou escova consigo, então ela é morta pela Mavka . Alguns folcloristas explicam essa dualidade por uma diferença geográfica: no Oeste da Ucrânia, o terreno é mais acidentado e montanhoso, e mais sujeito a acidentes: nesta região as lendas sobre a Mavka tendem a mostrá-la como uma figura mais perigosa, já nas áreas mais centrais da Ucrânia, há mais bosques e fazendas, e o terreno é menos perigoso, então nessa região lendas que mostram as Mavki como criaturas bondosas são mais comuns.
4-Likho

Essa é uma criatura do folclore da Rússia, Belarus e Polônia. “Likho” e uma palvra russa que significa “má sorte” ou “desgraça”; e é exatamente isso que essa criatura personifica. “Likho” é uma entidade tão tenebrosa que ninguém sequer sabe o seu nome verdadeiro, ele é literalmente conhecido apenas pela palavra que evoca tudo de ruim e amaldiçoado. Ele aparece de várias formas diferentes: uma mulher vestida de negro, um gigante ou, em sua versão mais comum, como uma espécie de duende, mas em qualquer forma ele sempre tem um olho só.
Ao contrário de outras criaturas do folclore do leste europeu cujas origens que remontam à mitologia dos povos eslavos, o Likho parece existir exclusivamente em contos de fadas. Nestes contos ele age como uma personificação da desventura, miséria ou fatalidade, e serve com o um aviso, um lembrete da importância da prudência. Há tantos contos que trazem o Likho como antagonista, que nem vale a pena tentar fazer um resumo, mas o que todas as histórias tem em comum é que o herói ou heroína encontra o Likho, e precisa passar por alguma prova ou se salvar dele de alguma forma, geralmente de alguma maneira que comprove suas qualidades morais ou esperteza. Ou seja, o herói ou heroína tem que se mostrar inteligente ou moralmente correto para escapar das garras do Likho. Caso isso não aconteça, e o herói seja egoísta, ganancioso ou estúpido, o Likho o devora ou o mata de outras maneiras, dependendo de qual erro o protagonista cometa. Um a versão muito comum do mito diz que o Likho costuma “montar” no pescoço de suas vítimas, que, desesperadas para se livrar dele, acabam pulando dentro de um lago ou rio. Outro tema comum é que o Likho usa objetos preciosos para atiçar a ambição de suas vítimas que então ficam presas ao objeto tentando roubá-lo, e precisam ter sua mão cortada para escapar de serem devoradas. O Likho é uma espécie de bicho-papão, e as histórias que envolvem essa figura sempre tem uma moral ou ensinamento. Além dos contos em que aprece, o Likho é figura comum em crendices, superstições e ditados em vários países. Em Russo, há a expressão “Não acorde o Likho quando ele está quieto”, já em Polonês encontramos o ditado “Cuidado, só Likho sabe” quando queremos que alguém guarde um segredo.
5- Drekavac

O Drekavac vem do folclore dos povos eslavos do Sul (Bulgária, Bósnia e Hezergovina, Montenegro, Sérvia, Croácia e Eslovênia). Seu nome significa “gritador”/”aquele que grita” e vem da palavra drečati (“gritar” ou “guinchar”). Ele é descrito de diversas formas: pode aparecer na forma de um cadáver recém saído da tumba, ou de uma criança morta-viva, ou ainda um cachorro, gato ou pássaro, ou ainda uma híbrido de homem e cachorro que caminha sobre duas patas. Em algumas localidades ele também toma a forma do cadáver reanimado de um soldado, um provável reflexo das diversas guerras pelas quais passou (e infelizmente, ainda passa) a região. Embora sua aparência varie muito, ele sempre tem uma característica marcante em todas as sua versões: ele é capaz de emitir um grito horripilante. É possível que a lenda do Drekavac tenha como uma forma de explicar aos berros das raposas nos bosques, que, quando ouvidos nas fazendas e vilarejos, realmente parecem com o grito de alguma entidade apavorante (ouça AQUI e tire a prova). Conta-se que o Drekavac nasce das almas das crianças mortas sem batismo, por isso às vezes seu grito é interpretado como um pedido de batismo.
O Drekavac tem forte associação com a morte. Quando aparece na forma de uma criança, ele tem o poder de prever a morte das pessoas, e quando toma a forma de um cachorro, pode prever a doença ou a morte de animais das fazendas. Ouvir o o seu grito pode ser considerado sinal de que o fim se aproxima. Também se acredita que se a sua sombra se projetar sobre alguém, essa pessoa ficará doente e morrerá. No entanto, nas histórias em que ele ataca seres humanos, ele tende a preferir aqueles que escondem pecados graves ou crianças que não tenham sido batizadas. O Drekavac só se movimenta à noite ou quando o tempo está escuro, pois odeia a luz, e fica mais ativo no início da primavera ou nos doze dias que antecedem o Natal, conhecidos na tradição servo-croata como “dias não batizados”. Uma maneira de evitar o Drekavac é andar sempre acompanhado de um cachorro, pois esse seria o único animal que ele teme.
Algo interessante sobre o Drekavac é que ele ainda está muito vivo no imaginário popular, e há diversas suspeitas de “avistamentos” desta criatura até recentemente. Em 1992, no vilarejo de Krvavica, na Sérvia, foram encontrados restos mortais de um animal não identificado. Imediatamente começaram a circular rumores de que se tratava de Drekavac, A “descoberta” criou sensação até se revelar que se tratava de uma raposa. Já em 2003, outro caso um pouco mais convincente foi registrado em Tometino Polje, também na Sérvia: as ovelhas das fazendas locais começaram a aparecer mortas, depois de misteriosos ataques. Enquanto alguns moradores acreditavam se tratar de um Drekavac. O caso nunca foi resolvido. Além das lendas, rumores e supostos avistamentos, o Drekavac também aparece na literatura (no conto “O Braco Mita e o drekavac do lago”, de Branko Ćopić), no video game “Devil May Cry”, no RPG “Magic: The Gathering”, no jogo de cartas sérvio Izvori Magije, além de dar título à uma música da banda sérvia de Trash Metal Horror Piknik (assita o clipe AQUI )
6- Leshii

O Leshii (ou Leshy) é o espírito protetor das florestas e bosques. Essa descrição pode nos fazer pensar que se trata de um espírito “bonzinho”, mas na verdade o Leshii é uma entidade temível. Ele é conhecido como Leshii na Rúsia e Belarus e por variações desse nome (Lesnik, Lesovoi, Lesovik) em diversos outros países: Polônia, Bulgária, Ucrânia, Sérvia e Croácia. Todas as variações do seu nome derivam do vocábulo “Les” que significa “bosque” ou “floresta”, ou seja “Leshii” significa “aquele que é da floresta”, mas às vezes ele é chamado apenas de “o mestre da floresta”, “o espírito da floresta”, o “avô da floresta” ou simplesmente “Ele”, pois é tão temido que nem sequer se pode referir a ele por um nome.
Segundo a lenda, cada floresta tem seu próprio Leshii, e muitas vezes eles até entram em conflito entre si, o que provocaria tempestades, deslizamentos de terra e outros desastres naturais. Algumas florestas seriam até lar para tribos inteiras destas criaturas. A aparência do Leshii é a de um homem alto, geralmente idoso, com a pele azulada e áspera como a casca de uma árvore e coberto de pelos verdes. Seus olhos também são verdes, de um verde muito intenso e brilhante, e às vezes ele tem cascos no lugar dos pés ou das mãos e chifres ou galhadas na cabeça. Mas nem sempre ele parece aos olhos humanos desse jeito, já que seu principal poder é o de assumir a forma de qualquer animal, pessoa ou planta. Sua capacidade de transformação também lhe permite mudar de tamanho e ficar menor que uma folha ou maior que a árvore mais alta. Ele também tem a mania de vestir suas roupas e sapatos com a frente para trás, confundindo assim qualquer ser humano que tente rastrear suas pegadas.
O Leshii costuma ser mais ativo durante a primavera e o verão, e menos ativo no Inverno, quando hiberna. Como protetor da floresta e dos animais, o Leshii nunca sai dos bosques no quais habita, mas representa um enorme perigo para os seres humanos que se atrevem a entrar no seu domínio, sejam eles adultos ou crianças que resolvam brincar ou passear no bosque. Além da capacidade de se transformar, ele também tem uma espécie de poder “psíquico” que usa para fazer com que suas suas vítimas fiquem confusas, e se percam na floresta para nunca mais aparecer. Ele usa sua capacidade de se transformar em qualquer coisa para enganar os seres humanos: ele pode se fazer passar por um animal para atrair um caçador, por um outro ser humano e fingir que precisa de ajuda ou socorro ou simplesmente se transformar em um monstro. E mesmo que a vítima em potencial conseguisse escapar das artimanhas do Leshii, era quase impossível fugir dele, pois ele era capaz de rastrear sua “presa” e conhecia a floresta melhor do que qualquer ser humano seria capaz. Por essa razão, pessoas que precisavam entrar na floresta, como caçadores ou lenhadores, tinham o costume de deixar uma oferenda com ovos e panquecas, para apaziguá-lo. Outra maneira de escapar dele era usar os truques do próprio Leshii contra ele, isto é, se vestir com as roupas e sapatos virados de frente para trás, para que ele não possa rastrear sua vítima.
Apesar de não ter a popularidade da Baba Yaga, que veremos a seguir, o Leshii aparece em diversas lendas, é mencionado no clássico poema “Russlan e Ludmila” de Pushkin, inspirou a canção Lukomorye de Vladymyr Vysotsky, e já apareceu nas série Supernatural, The Witcher e Grimm. E seus poderes de transformação e controle dos elementos também fazem com que ele seja um personagem perfeito para video games: ele é um dos antagonistas de Inscription, e vai ganhar seu próprio game, Leshy, com lançamento previsto para 2023 (veja o Trailer AQUI )
7- Baba Yaga

Ilustração de Ivan Bilibin (fonte: wikicommons)
Deixamos Baba Yaga por último, por uma boa razão. Trata-se da figura folclórica mais conhecida e temida do Leste Europeu, tanto que ela é quase um arquétipo da bruxa/bicho papão na cultura eslava. Também é o “monstro” mais conhecido mundo afora, aparecendo em filmes, video games, séries, livros e arte produzidos por criadores de diversas nacionalidades. A lenda da Baba Yaga também é bastante consistente de país a país apresentando poucas variações, o que a torna uma figura folclórica que poderíamos chama de “pan-eslava”.
O nome da Baba Yaga (ou “Baba Jaga” na Polônia) é formado por duas palavras de significado conflitantes. “Baba” e suas variações é a raiz da palavra “avó” ou “vovó” nas línguas eslavas. No eslavo antigo, o termo “baba” indicava uma mulher mais velha ou idosa com conhecimentos místicos (o que incluiria “bruxas”, mas também parteiras, benzedeiras etc), mas com o passar do tempo o termo originou outras palavras que significam “vovó”: babusya (Ucraniano), babcia (polonês), baba (servo-croata, bósnio, búlgaro) e babuskha (russo). Já o termo “yaga” é um bem menos claro em seu significado. Há diversas teorias sobre sua origem, mas algumas possíveis raizes incluem: ‘jeza’ do servo-croata, significando “horror” ou “arrepio”, “jeza” do esloveno, que quer dizer “fúria”, jězě palavra do checo arcaico que significa “bruxa” ou “feiticeira”, “jezinka” palavra do checo moderno que indica um espírito maligno da floresta, já no eslavonico arcaico, jęza/jędza significa “doença”. Seja qual for a origem, o nome da Baba Yaga é uma junção de um termo afetivo associado às avós, e uma palavra de teor negativo, relacionada ao medo e ao mal.
Baba Yaga costuma ser representada como uma mulher muito velha e magra, até esquelética em algumas versões, e também muito alta. Às vezes ela é representada com um nariz comprido feito de metal, que lhe permite localizar suas vítimas pelo cheiro, ou seja não há como escapar dela a não ser que você seja bastante esperto para tapeá-la. Baba Yaga vive nas profundezas mais escuras da floresta em uma cabana de madeira apoiada em gigantescas patas de galinha. Esta casa gira constantemente sobre seu próprio eixo, e só para quando é proferido o encantamento: “Casinha, casinha, vire as costas para a floresta e a frente para mim”. A cabana da Baba Yaga é circundada por uma cerca feita de ossos e fechada com uma tranca feita de mandíbulas e iluminada por lanternas feitas de caveiras. Mas o detalhe mais tétrico é que todos esses ossos são humanos, vindos das inúmeras vítimas que a Baba Yaga capturou e devorou. Ao contrário das bruxas que voam em vassouras, ela se locomove usando um almofariz como se fosse um barco, e um pilão como remo, e com eles ela consegue voar pelos ares. Ela também possui inúmeros outros objetos mágicos, e diversas lendas tem como tema protagonistas que precisam obter esses itens.
A presença da Baba Yaga em contos de fada é tão comum que muitos costumam vê-la mais como uma típica “bruxa malvada” como a de “João e Maria”, mas na verdade ela é um ser sobrenatural muito mais poderoso. Um exemplo do seu poder está no conto “Vasilisa, a bela”, no qual Baba Yaga tem o controle dos cavaleiros místicos que representam o ciclo do dia (o cavaleiro na manhã em seu cavalo branco, o da tarde em um cavalo alazão e o da noite em um cavalo negro). Muitos estudiosos acreditam que todo esse poder e os objetos simbólicos com os quais ela é representada são indícios de que a Baba Yaga já foi uma divindade associada ao tempo, à magia e à morte e que, com a Cristianização, se transformou em bruxa de contos de fada e “bicho papão” canibal.
Baba Yaga sempre aparece em contos e histórias que tem a ver com a passagem da infância à vida adulta. Uma estrutura narrativa comum apresenta um herói ou heroína adolescente que é mandado para a floresta, geralmente por uma madrasta ou padrasto malvado ou algum outro parente que tenha interesse no desaparecimento da criança, com o objetivo de conseguir algum objeto precioso ou mágico. Lá o protagonista encontra com a Baba Yaga, e precisa usar de esperteza para ludibriá-la e conseguir cumprir sua missão e retornar para assumir seu lugar de direito na sociedade (em geral através do casamento). Nestes contos, a Baba Yaga representa as dificuldades da vida adulta com as quais a criança/adolescente precisa aprender a lidar com sabedoria e inteligência. Por essa razão ela é o bicho-papão favorito do Leste Europeu. Afinal nada é mais assustador do que crescer.
Material consultado:
Artigos:
Christopher Michael McDonough,. “Carna, Proca and the Strix on the Kalends of June”. Transactions of the American Philological Association. The Johns Hopkins University Press. 1997
Baba Yaga: The Ancient Origins of the Famous ‘Witch’ | Monstrum
Leshy: The Slavic Lord of the Forest | Monstrum
Livros
Carol Rose. Giant, Monsters and Dragons: An Encyclopedia of Folklore, Legend and Myth. W. Norton & Company: 2001.
Charles Phillips,Michael Kerrigan. Forests of the Vampires: Slavic Myth. Time-Life Books. 2000
Joanna Hubbs. Mother Russia: The Feminine Myth in Russian Culture. Indiana University Press. 1993
J.L Jaroslav. Slavic Soul: Myths and Lengeds. Publicação independente. 2021
Linda J. Ivanits. Russian Folk Belief. Routledge 1989
Mike Dixon-Kennedy. Encyclopedia of Russian and Slavic Myth and Legend. Santa Barbara, California: 1998
Natalie O. Kanonenko. Slavic Folklore: A Handbook. Greenwood Press: 2007
Tomasz Kamusella, Motoki Nomachi & Catherine Gibso. The Palgrave Handbook of Slavic Languages, Identities and Borders. London: Palgrave Macmillan: 2016
Sites
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