Saudações, Leitor Noturno!
A semana que antecede o Domingo de Páscoa é celebrada por Cristãos de diversas denominações através de rituais e tradições que relembram ou emulam os últimos dias da vida de Jesus Cristo. Algumas tradições são bem “universais”: orações, vigílias, a abstenção do consumo de carne, etc. Mas há tradições específicas de cada cultura, algumas das quais são bem diferentes daquelas com que nós estamos acostumados.
Se você por acaso visitar a Espanha durante a Semana Santa, em especial se escolher a Andaluzia como destino, com certeza vai reparar em duas coisas: a enorme opulência das procissões que marcam Sexta-Feira Santa e a presença de homens vestindo trajes um tanto quanto…digamos, excêntricos, pelo menos aos olhos de quem não está acostumado.
A roupa varia de cor, mas um elemento em comum é o capuz pontiagudo que cobre inteiramente o rosto de quem o usa. Este capuz é conhecido como “capirote” (ele também tem outros nomes mas para simplificar as coisas, vamos usar o termo mais comum), uma palavra que vem do Gascão (língua falada na Gasgonha, região da França próxima da fronteira com a Espanha) “capirot”, que significa simplesmente “capuz”.
A primeira coisa que passa pela cabeça de muitas pessoas que veem os capirotes pela primeira vez é a enorme semelhança entre eles e os capuzes usados pela Ku Klux Klan. Talvez seja essa a razão pela qual muita gente acha os capirotes bastante sinistros.
De fato, a KKK apropriou os capirotes, mas a história desta vestimenta religiosa não tem absolutamente nada a ver com os supremacistas brancos americanos…o que não quer dizer que ele não tenha uma origem bastante tétrica e manchada pelo fundamentalismo e preconceito.
Então, como foi que uma vestimenta tão visualmente assustadora se tornou parte fundamental das celebrações da Semana Santa na Espanha, e o que ela representa? É o que vamos descobrir no artigo de hoje.
- Fome, peste e penitência: Os Flagelantes.
Podemos encontrar o capirote ou outros chapéus similares em diversos momentos da história e não apenas na Espanha. Em pinturas, ilustrações, iluminuras, livros, podemos ver diversas versões do mesmo tema visual: um tipo de capuz, seja ele pontudo como o que vemos nas procissões atuais, ou simplesmente uma espécie de “saco” que cobria a cabeça, muitas vezes cobrindo o rosto inteiramente. Vejamos alguns exemplos:



Todas as imagens acima ilustram um mesmo fenômeno religioso: o movimento dos flagelantes. A autoflagelação (o ato de usar chicotes e objetos para causar dor e ferimentos em si mesmo) é um assunto bastante polêmico dentro da Igreja católica. Talvez você até se lembre de uma certa discussão sobre o assunto quando o livro “Deuses e Demônios” de Dan Brown foi publicado, pois o autor insinuava que uma ordem secreta da Igreja Católica ainda adotaria a prática hoje em dia. Basicamente, podemos explicar a autoflagelação pela crença de que a a dor física seria uma forma de purificação dos pecados, e que o sofrimento levaria o fiel para mais perto de Deus. Essa crença parte do princípio de que a “carne”, isto é o corpo, seria a parte mais suscetível à tentação, e consequentemente ao pecado, e que a fim de manter a alma pura, seria preciso reprimir a carne o máximo possível.
A ideia da separação entre corpo e alma, com a alma sendo a parte mais nobre do indivíduo, não é uma novidade inventada pelo cristianismo. Podemos encontrar esse conceito na Filosofia Grega. Platão define o corpo como uma dimensão limitada, imperfeita, enquanto a alma seria a manifestação perfeita do ser, ou ao menos aquela que pode ser perfeita, pois é através da alma que o homem alcança o conhecimento, as ideias puras. A concepção platônica da dualidade corpo-alma tem forte influência do Orfismo, uma corrente de pensamento místico-religioso do século VI a.C. O Orfismo considerava o corpo como o cárcere da alma, e a morte a única libertação possível. Por essa razão, o Orfismo propunha a purificação pela abstenção dos excessos do corpo, desde alimentar até sexual. A ideia da separação de corpo e alma e da purificação pela abstenção e repressão do corpo entrou no pensamento cristão já nas primeiras décadas do estabelecimento da nova religião. A primeira expansão do Cristianismo para além de sua origem geográfica na Galiléia, aconteceu em cidades gregas ou culturalmente gregas, como podemos verificar ao ler as cartas de Paulo: com exceção de Romanos, todas eram destinadas a comunidades cristãs residentes em cidades gregas (Corinto. Tessalonica, Éfeso, etc). Estes primeiros cristãos, culturalmente gregos, alfabetizados e oriundos de centros urbanos nos quais potencialmente teriam acesso à textos escritos, provavelmente viram similaridades entre martírio de Cristo e os conceitos filosóficos e religiosos de Platão e dos Orfistas, o que pode ter, inclusive, incentivado a sua aceitação da fé cristã.
Ou seja, a ação de castigar o corpo para elevar a alma já estava presente no Cristianismo desde o princípio. Os primeiros textos a mencionar a autoflagelação como uma forma “aceitável” de “reconciliação” do pecador com Deus datam do século V, mas sua transformação em movimento religioso começou em 1259. Em 1257, a erupção do vulcão Samalas na Indonésia, uma das maiores da história, causou bruscas variações climáticas globais que provocaram a perda de colheitas na Europa, levando a uma fome de dimensões continentais nos anos subsequentes. Esta ocasião foi a primeira vez na qual um movimento de pessoas recorreram à autoflagelação pública como forma de purgar os pecados que elas acreditavam ser a razão da catástrofe alimentar. A primeira ocorrência registrada foi em Perugia, na Itália, e dali a prática se expandiu por toda a Europa. Esse movimento se repetiria sempre que alguma epidemia, desastre ou fome acontecia na Europa, atingindo seu ápice durante a Peste Negra.

No início, a Igreja tolerou estas manifestações que eram, obviamente, fruto do desespero frente a grandes tragédias. Mas no século XIV, o fenômeno dos “Flagelantes” já não era apenas uma reação à fome ou a peste, mas sim um verdadeiro movimento religioso. Foi então que a Igreja começou a se preocupar. A atuação dos flagelantes passou a ser vista como um desafio aos dogmas eclesiásticos, pois tirava a prerrogativa da remissão e purificação dos pecados das mãos do clero, e esvaziava os ritos e sacramentos oficiais de seu significado. Afinal, se tudo o que era preciso para se purificar dos pecados era a autoflagelação, para que os fiéis precisariam da Igreja? Muitos dos flagelantes também começaram a ganhar fama de fazedores de milagres, o que, segundo a doutrina oficial, constituía uma forma de heresia.
Em 1349, o Papa Clemente VI assinou uma bula papal instruindo que a autoflagelação só poderia ser feita com permissão e sob jurisdição da Igreja. Em 1372, o Papa Gregório associou os flagelantes com outros grupos considerados hereges. Estas decisões colocaram os flagelantes no alvo da Inquisição Medieval, mas as ações de repressão contra o grupo vinham, com mais frequência das autoridades não religiosas. Com a benção da Igreja, que determinou que os flagelantes eram hereges, autoridades políticas , preocupadas com as possíveis ramificações políticas do movimento, puderam prender e reprimir os flagelantes. Há casos de julgamentos civis com condenações nas quais a autoflagelação aparece como elemento registrados ao longo do século XV.
A partir de então acontece um desenvolvimento curioso: a presença de ordens de religiosos flagelantes dentro da Igreja, agindo em conformidade com as regras estabelecidas por ela, ao mesmo tempo que movimentos similares existentes fora do controle da Igreja eram proibidos. Então, a fim de evitar sua identificação e possível apreensão ou excomunhão, os flagelantes começaram a usar capuzes que cobriam seus rostos. Com o passar do tempo esse capuzes foram ficando mais elaborados e o que começou como um objeto de função prática, destinado simplesmente a proteger a identidade do indivíduo, se tornou um objeto simbólico. O rosto coberto passou a evocar a humildade diante de Deus e a vergonha dos próprios pecados, e o capuz foi desenvolvendo a forma cônica e pontuda que vemos ainda hoje, para representar a proximidade com Deus através do sofrimento.
Agora o leitor pode estar se perguntando, se o capirote vem dos capuzes destes flagelantes, como foi que um objeto usado por um grupo considerado herege pela Igreja cabou indo parar nas procissões de Sexta Feira Santa da Espanha?
Como muito do que diz respeito à história da Igreja Católica na Espanha, a resposta para esta pergunta está na Inquisição Espanhola.
2. Igreja e Poder: A Inquisição Espanhola
Entre os século VIII e XV boa parte da Península Ibérica foi um território muçulmano, chamado de Al Andalus (palavra que, segundo a teoria mais aceita, seria derivada de “Vândalos”, o nome da tribo germânica que ocupava a Península antes da chegada dos muçulmanos, e que deu origem ao nome da Província de Andalucía no sul da Espanha). Sob as leis muçulmanas, cristãos e judeus tinham status de “Dhimmi”, ou seja eram protegidos pelas autoridades muçulmanas mediante o pagamento de um imposto. No entanto, excetuando-se o pagamento deste tributo, tanto cristãos quanto judeus tinham liberdade de ir e vir, praticar sua religião, trabalhar e exercer cargos públicos, às vezes chegando até a altos postos políticos e administrativos. (É claro que existia preconceito e violência religiosa em Al-Andalus, que muitas vezes chegava a extremos como no caso do Massacre de Granada em 1066 em que mais de mil judeus foram mortos, incluindo o vizir da cidade. O que torna a experiência de Al-Andaluz única é que Judeus e cristãos tinham proteções legais e jurídicas dentro do Estado Muçulmano e casos de violência religiosa não eram patrocinados pelo estado.)

Durante o domínio muçulmano na Península Ibérica , os Reinos cristãos de Castela, Aragão, León, Navarra e Astúrias ficaram “espremidos” entre Al Andalus e os Pireneus. O casamento do rei Fernando de Aragão com a rainha Isabel de Castela representou uma união política poderosa que permitiu que os Reinos Espanhóis retomassem o território dos Muçulmanos, no auge do movimento político e militar que ficou conhecido como a Reconquista. Com a reconquista e reunificação Fernando e Isabel, “Os Reis Católicos”, foram os primeiros monarcas a receber o título de Reis da Espanha. É importante perceber que os “Reis Católicos” não eram conhecidos pelo apelido de católicos simplesmente por serem muito devotos, mas sim por que o Catolicismo era uma parte fundamental de seu programa político.
Fernando e Isabel usaram a religião como força motriz para angariar apoio, fazendo com a guerra territorial fosse vista também como uma guerra santa. Não se tratava apenas de reconquista o território, mas sim de expulsar os “hereges” e proteger, expandir e fortalecer o Catolicismo. No entanto, uma vez derrotados expulsos os muçulmanos e restabelecida a Espanha como reino cristão, os reis Católicos ainda tinham outro “problema” a resolver: os Judeus.
A Igreja, que apoiara Fernando e Isabel, exigiu a conversão dos Judeus, assim como a destruição de suas sinagogas e a promulgação de leis que os segregassem e limitassem sua participação da sociedade. A legislação do novo Reino foi feita em conformidade com tais exigências. Milhares de judeus se converteram ao Cristianismo, muitas vezes a força muitas vezes como último recurso para escapar à perseguição. Aqueles que se recusaram foram expulsos, em concordância com o decreto de Alhambra.

Os Judeus convertidos eram chamados de “Conversos” ou Cristãos Novos e, em teoria, sua conversão deveria lhes garantir os mesmo direitos e proteções de qualquer outro cristão, mas essa estava longe de ser sua realidade. Estes conversos e seus descendentes continuaram a ser vistos com desconfiança pelos demais. Em muitos casos a conversão forçada tinha sido apenas uma forma de sobreviver, e conversos continuavam praticando sua fé original às escondidas, em outros casos conversos de fato praticavam a religião católica, uma situação muito comum entre filhos e netos de conversos que, por inúmeras razões, tinham perdido todos os vínculos com a religião de seus ancestrais e foram criados exclusivamente como católicos. Nada disso fazia a mínima diferença para a Igreja e para a sociedade, que via este grupos de pessoas como ameaças dentro da sociedade. O conceito de “Limpeza de Sangue” foi criado para banir os descendentes de conversos de cargos públicos e outros privilégios. Para ser considerado verdadeiramente católico e ter acesso a plenos direitos, era preciso comprovar não ter nenhum judeu ou converso na família por nada menos que oito gerações. Mas estas “salvaguardas” não foram suficientes, e o logo os Conversos se viram na mira do Tribunal do Santo Ofício, mais conhecido como A Santa Inquisição

O Tribunal do Santo Ofício na Espanha foi estabelecido incialmente como uma ferramenta de manutenção do poder religioso de Fernando e Isabela. O poder dos reis Católicos tinha muito a ver com o controle ideológico e religioso, pois o casal se apresentava como protetores da fé diante dos “hereges” muçulmanos e judeus. Por isso, em 1478 receberam permissão do Papa Sisto IV para apontar inquisidores em seus domínios, seguindo o exemplo de diversos outros reinos que tinham seus próprios tribunais de Inquisição, a fim de “proteger” o Catolicismo como fé única e verdadeira. O Tribunal foi estabelecido antes mesmo da reconquista completa da Peninsula Ibérica, em 1492, pois, conforme o domínio cristão avançava militarmente, se tornava necessário reforçar o domínio religioso e ideológico.
O Tribunal era encarregado de julgar e sentenciar toda e qualquer pessoa cujo comportamento pudesse ser considerado uma ameaça à fé católica, e por extensão o poder real. Com a expulsão dos muçulmanos, judeus e pessoas de origem judaica, se tornaram o alvo principal. No entanto o escopo da Inquisição logo se expandiu para abarcar qualquer “desvio” da norma: heresias, leituras e interpretações do texto religioso que diferissem da oficial, bruxaria, homossexualidade, bigamia e outros “crimes” de teor sexual, enfim, tudo o que pudesse ser visto como um atentado à religião e a moral se tornou matéria para a a Inquisição.
O Tribunal do Santo Oficio funcionou até 1834, inclusive abrindo ofícios nas Colônias Espanholas na América. Claro que ao longo do tempo ele perdeu força, mas entre os século XIV e XVIII, foi uma poderosa arma ideológica, religiosa e política. Os julgamentos e execuções públicas, ainda que não fossem tão numerosos quanto os filmes e romances históricos fazem parecer, eram, sem dúvida uma forma de controle social tão eficiente quanto cruel.
Um dos mecanismos mais simbólicos da Inquisição Espanhola era o Auto da Fé, uma cerimônia extremamente elaborada, cujo objetivo era a humilhação pública do acusado.
O processo de Inquisição começava sempre com uma acusação. Estas acusações eram, em geral, baseadas em “testemunhos” de pessoas que declaravam saber de crimes ou pecados do suspeito. Os nomes do acusadores eram mantidos em segredo, assim o acusado não sabia quem testemunhara contra ele, o que geralmente fazia com que inimigos e desafetos inventassem acusações falsas por vingança ou interesse próprio. Se o processo fosse aberto com base em um testemunho, o acusado era presumido culpado e o objetivo final não era provar sua culpa ou inocência, mas extrair uma confissão usando qualquer meio, o que incluía prisão e tortura, muitas vezes pública, até durante o julgamento.
O Auto de fé era a cerimônia de sentenciamento que vinha depois do julgamento. Ele incluía uma missa e uma “procissão” na qual os acusados de vários processos diferentes eram agrupados e conduzidos até um tablado ou palco montado na praça no qual eram exibidos escárnio do público enquanto eram lidas as acusações de cada caso. O “evento” contava com a participação de autoridades religiosas e civis podia durar horas. Após o fim do Auto de Fé, os acusados eram levado a um espaço aberto fora da cidade chamado de “quemadero”. Ali, eles recebiam suas sentenças e, se fosse o caso, executados.

Os acusados que passavam pelo Auto da Fé eram forçados a usar uma vestimenta que simbolizava seus pecados e sua penitência. Essa vestimenta consistia de uma espécie de saco cortado para se assemelhar a uma túnica, chamado de Sanbenito (uma corruptela do português “saco bendito”) e um capuz pontudo que muitas vezes ocultava o rosto do acusado (muitas vezes o rosto ficava descoberto para aprofundar a humilhação do acusado). Sim, a Inquisição se apropriou do capuz usado pelos flagelantes, certamente se aproveitando do simbolismo já definido pelo seu uso anterior. A associação do capirote com a penitência, a humilhação perante Deus, a remissão dos pecados e a aproximação com o divino já estavam bem estabelecidos no imaginário popular por isso, ao exibir o acusado usando este tipo de capuz, era visualmente comunicado à “platéia” a ideia de que se tratava de um pecador que tinha que ser flagelado para se reconciliar com Deus, só que o ato de flagelação não seria auto imposto. Para completar a comunicação visual com o público, tanto o sanbenito quanto o capirote eram “decorados” com desenhos que representavam os pecados ou crimes dos quais eram acusados, ou com chamas que representavam tanto a fogueira quanto o fogo do inferno.

3- Perseguição e fé: O Capirote como símbolo.
O Auto da Fé se tornou praticamente um símbolo da crueldade da Inquisição espanhola, e por extensão do conservadorismo e obscurantismo tanto da Igreja Católica quanto do Estado absolutista. É o que podemos observar na obra do artista Francisco Goya, mais especificamente na coleção de desenhos que formam o chamado Caderno C. Na época em que Goya executou estes desenhos, entre 1814 e 1824, a Inquisição já estava em pleno declínio e os Autos da Fé já tinham caído em desuso.

Goya usa todos os elementos visuais associados com o Auto da Fé para ilustrar uma poderosa crítica social. Goya produziu os desenhos do Caderno C durante um período politicamente tumultuado da história espanhola. As forças Napoleonicas invadiram a Peninsula Ibérica em 1808, um evento que nós brasileiros conhecemos como o estopim da fuga da família real Portuguesa para o Brasil. Na Espanha, foi o início da Guerra Peninsular, ou, como é conhecida entre os espanhóis, a Guerra da Independência Espanhola, que durou até 1814. Com a restauração de Fernando VII ao trono, e a necessidade de uma nova constituição o conflito deixou de ser uma guerra entre os espanhóis e o um invasor e passou a ser um conflito ideológico entre espanhóis.

De um lado os apoiadores de uma monarquia absolutista e conservadora, e do outro aqueles que propunham um sistema mais democrático e moderno. Esta era uma discussão que antecedia a Invasão Napoleonica: desde a Revolução Francesa, o Estado Espanhol vinha tentando impedir que as ideias revolucionárias cruzassem a fronteira e ameaçassem o poder real. Os progressistas espanhóis, no entanto, continuaram a fazer circular textos e panfletos com as ideias de igualdade, liberdade e fraternidade “importadas” da França, tanto que passaram a ser chamados, pejorativamente de “afrancesados”. Com o fim do domínio Napoleonico, o discurso conservador ficou irremediavelmente unido a uma ideia de “hispanidade” enquanto os ideais progressistas foram associados com o elemento estrangeiro e invasor. A Inquisição, já quase sem poder real e incapaz de controlar os hábitos religiosos e sociais com o mesmo rigor de antes, foi transformada em uma espécie de tribunal político. Em vez de perseguir hereges, o Santo Ofício agora investigava progressistas. Esses julgamentos não tinham a enormidade dos julgamentos de séculos antes. Eram processos mais convencionais, conduzidos em tribunais civis e a portas fechadas, sem o “recurso” da tortura e da humilhação pública, e as execuções deram lugar a penas mais “leves” como multas, exílio e prisão. Assim, Goya, ele mesmo investigado pela Inquisição devido à suas ideias progressistas, usou o Auto da Fé e o capirote como metáforas visuais para denunciar a perseguição ideológica contra democratas e progressistas na Espanha de sua época.

As obras de Goya e outros artistas do século XIX como Eugenio Lucas Velásquez era uma vertente visual do movimento progressista que buscava deixar para trás o Estado absoluto e o domínio ideológico da Igreja. As imagens criadas por eles serviram para plasmar uma imagem visual da Inquisição como símbolo do obscurantismo e do capirote como marca de humilhação e sofrimento. Porém, na cultura popular ele continuava a ser associado menos com a opressão religiosa e mais com a remissão dos pecados e absolvição do pecador por meio da penitência; e acabou sendo adotado pelos participantes das Confrarias.
As Confrarias são congregações religiosas formadas por leigos, isto é pessoas que não fazem parte do clero. Estes grupos tem a aprovação da Igreja, funcionam de acordo com regimentos internos, e existem com o objetivo de fazer ações de cunho religioso. Esta ações podem ir desde a caridade e do trabalho social até diversas formas de penitência. Estas últimas eram conhecidas como confrarias de penitentes, e apareceram principalmente na Espanha e na Itália. De certa forma, as confrarias penitentes foram “herdeiras” dos Flagelantes medievais. Elas adotaram, e algumas adotam até hoje, práticas de abstenção e ascetismo em resposta a momentos traumáticos como guerras ou simplesmente como uma forma extrema de demonstração de fé. (No entanto, a autoflagelação como forma de manifestação religiosa foi deixando de ser um elemento comum da experiência religiosa Católica, e passou a ser um elemento polêmico e marginal.)
As confrarias espanholas do século XVII não viram problema algum em adotar o capirote como vestimenta, por mais que os autos de fé fossem comuns na época. A visão popular era a de que os perseguidos pela Inquisição estavam passando por uma forma de penitência, logo as confrarias adotaram uma vestimenta familiar como forma de evocar a mesma ideia de purificação.
Com o passar do tempo e a modernização da Espanha o capirote perdeu a associação que tinha com a flagelação física e a tortura, mas reteve sua associação com a ideia de humildade e fervor religioso. O fato de esconder o rosto do usuário também oferece uma nova possibilidade de leitura de sua identidade visual: as confrarias se consideram irmandades, nas quais os membros são parte de um grupo onde ninguém é mais importante que os demais, e o foco das ações deve estar na profissão de fé e nas obras. Portanto ao esconder o rosto, os membros da confraria apagam sua individualidade e se apresentam como membros de uma irmandade de iguais.

Hoje em dias os capirotes podem ser visto em diversos tamanhos, cores e decorações de acordo com a Confraria a qual seu usuário pertence. O principal papel das confrarias atuais é o participar e ajudar a organizar as procissões da Sexta-feira Santa, que levam multidões de espanhóis e turistas às ruas de várias cidades da Espanha, em especial no sul e no centro do país. Estas procissões ainda seguem o “roteiro visual” das procissões que podemos ver nas obras de Goya e outros artistas de séculos passados, com suas enormes imagens barrocas levadas em palanques cobertos de velas conhecidos como “candelerías”, mas também conservam diversos elementos que testemunham a longa e complexa história cultural e religiosa da Espanha. Muitas mulheres ainda vestem a roupa de maja, o traje tradicional espanhol com longas saias de babado, xales e mantillas, um véu de renda preso a cabeça por um pente. Também fazem parte da tradição as saetas, um canto melancólico “aparentado” à música flamenca, na qual é possível identificar elementos ciganos, árabes e judaicos. Ou seja, os capirotes são apenas um elemento da história multicultural espanhola que sobreviveu ao passar dos séculos e se tornou parte da paisagem cultural da Espanha moderna.
E caso você tenha ficado curioso para ver uma dessas procissões, mas não possa visitar a Espanha no momento, nós temos um evento muito parecido aqui mesmo no Brasil. A procissão do Fogaréu em Goiás é muito similar às procissões espanholas, e seus participantes até usam o capirote. E como foi que essa tradição chegou aqui? Através de um padre espanhol, Perestelo de Vasconcelos, que trouxe o modelo da Procissão espanhola para o Brasil em 1745.
Material Consultado
Artigos:
Rawlings, Helen. Goya’s Inquisition: from black legend to liberal legend. Vida Hispánica nº46, 2012
El bornochoso origen de los capirotes de Semana Santa- La Vanguardia
Simbologia y Tradición de las processiones de la Semana Santa. ABC.es
Cual es el origen del capirote que llevan los nazarenos?- MuyHistoria.es
El capirote de las procesiones, una herencia de la Inquisición- BurgosConecta
Livros:
Aberth, John- From the brink of the Apocalypse: Confronting Famine, War, Plague and Death in the Later Middle Ages. Routledge, NY: 2010
Bethencourt, F. The Spanish Inquisition : a Global History. Cambridge University Press. 2009
Cohn, Norman. The Pursuit of the Millenium. Oxford University Press: 1957
Hughes, Robert. Goya. Companhia das Letras, São Paulo, 2007.
Llorente, J.A. História Critica de la Inquisición Española. Ediciones Hipérion Madrid, 1980.
Potter, Robert. The Auto de Fé as Medieval Drama. University of Santa Barbara.
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