José Guadalupe Posada, mestre das caveiras.

A caveira é um símbolo não oficial do México e da cultura mexicana, assim como de sua profunda relação com a morte. Aqui no blog nós já fizemos um mergulho na história e simbolismo do Dia de los Muertos e da morte na a cultura mexicana (se você ainda não leu, pode ler AQUI), então é possível que você já saiba que a caveira é um símbolo cultural mexicano com séculos de uma história que começa bem antes antes da chegada dos europeus, em culturas tinham uma poderosa conexão com o conceito de morte e sacrfício. E você provavelmente também deve saber que essa identidade visual mestiça de elementos pré-colombianos e europeus, que tem a caveira como grande símbolo, foi culturalmente cimentada durante o governo Lázaro Cárdenas graças à sua associação com intelectuais de esquerda como Frida Kahlo (1907-1954), Diego Rivera (1886-1957), Octavio Paz (1914-1998) e José Clemente Orozco (1883-1949), um movimento cultural que buscava uma identidade mexicana própria, recuperando as tradições populares.

Tudo isso a gente já sabe. Aliás, figuras como Frida Kahlo e Diego Rivera estão muito presentes no nosso imaginário coletivo quando pensamos na cultura e iconografia mexicanas, mas nem todo mundo conhece o artista que verdadeiramente estabelceu a caveira como fenômeno cultural popular e símbolo da mexicanidade.

Esse homem é José Guadalupe Posada.

Posada e seu lugar na arte mexicana

Nascido em 2 de Fevereiro de 1852 em Aguascalientes, José Guadalupe Posada era o quarto dos seis filhos do padeiro Germán Posada e da dona de casa Petra Aguillar. Seus pais eram pessoas humildes, ambos de origem indígena que não sabiam ler nem escrever, mas que conseguiram prover uma educação para os filhos, tanto que o mais velho, José Cirilo, se tornou professo e ensinou José Guadalupe e os outros irmãos a ler e escrever. Ainda criança, Guadalupe já demonstrava interesse em desenho e arte, e costumava desenhar caricaturas de José Cirilo e seus alunos.

Na adolecência, Guadalupe estudou na Academia Municipal de Desenho de Aguascalientes, e de acordo com o censo de 1876, já trabalhava como pintor profissional aos quinze anos. No ano seguinte, matriculou-se na oficina de litografia de Trinidad Pedroza.

Não se sabe muito bem como Guadalupe começou a se interessar por política e crítica social, mas é quase certo que esse processo começou quando trabalhou com Pedroza, que era politicamente engajado, e um crítico ferrenho das autoridades locais e da intervenção econômica e militar da França e dos EUA na política mexicana. Além do trabalho artístico, Pedroza também era editor de um jornal independente chamado ‘El Jicote’ (‘A Vespa’)e foi nele que, depois de aprender técnicas de gravura em metal e madeira, Posada publicou suas primeiras charges. Nessa época ele também ilustrava livros e revistas.

Infelizmente, durante o governo de Benito Juárez, ‘El Jicote’ foi fechado por pressão das autoridades locais que tanto criticava. Aos 19 anos José Guadalupe Posada era agora considerado um agitador político em sua cidade natal, então partiu junto com Pedroza para León de los Aldamas, na província de Guanajuato, onde abriram uma oficina de litografias. Ali, produziam imagens religiosas, cartões, convites e rótulos de vinho, charuto e outros produtos. Em 1873, Pedroza voltou para Aguascalientes, deixando a oficina com Posada, que se casa com María de Jesús Varela e leva uma vida tranquila até 1887. Neste ano, uma enchente devasta a cidade e o casal perde tudo. No ano seguinte, Posada e sua família se mudam para a cidade do México, onde ele abre uma nova oficina.

Posada (à direita), em frenta a sua oficina em 1900 (fonte: New World Prints)

É na cidade do México que José Guadalupe Posada se torna o artista que influenciaria gerações de artistas mexicanos. Isso acontecce quando conhece o ilustrador Manuel Manilla. Muitos acreditam que Posada tenha criado a figura caricata da caveira mexicana que dança, bebe e serve como crítica social, mas na verdade essa honra é de Manuel Manilla. Infelizmente se sabe muito pouco sobre esse artista que nasceu por volta de 1830 e morreu de tifo em 1895. No entanto, é certo que foi ele o primeiro artista a utilizar as caveiras como figuras humanizadas e caricaturais em charges e gravuras publicadas em jornais e periódicos em maior escala. Manilla não apenas seria a inspiração para o estilo de ilustração que faria a fama de Posada, mas também foi ele que o apresentou àquele que lhe abriria as portas do mundo editorial da Cidade do México: o escritor e editor António Venega Arroyos.

Arroyos era editor de diversas publicações e periódicos populares, e tinha inúmeros contatos; reconhecendo o talento de Posada, ele lhe ofereceu um contrato com completa liberdade criativa. Posada começou então uma longa e prolífica parceria com arroyos, durante a qual produziria centenas de charges, além de fazer ilustrações para livros, revistas, cartas e peças de publicidade. Foi durante essa parceria que Posada transformaria a caveira em sua marca registrada, usando sua imagem principalmente em charges políticas.

Imagem de capa do primeiro número do periódico “Calaveras del Montón”(1910)

Apesar de sua popularidade, Posada não conquistou fortuna. Viveu por 20 anos no mesmo bairro humilde até sua morte em janeiro de 1913, três anos após o falecimento da esposa. Foi enterrado como indigente e, sete anos depois seus restos mortais foram exumados e lançados à vala comum sem ser reclamados, já que seu único filho tinha morrido antes dele sem deixar herdeiros.

A obra de Posada só se tornaria internacionalmente conhecida graças à intervenção do artista francês Jean Charlot. Neto de mexicanos pelo lado materno, Charlot tinha fascínio pela arte indígena do país dos avós desde criança, e viveu lá durante diversos períodos de sua vida, se dedicando ao estudo da cultura mexicana. Ele descobriu o trabalho de Posada por acaso ao encontrar cópias de suas gravuras sendo vendidas na rua em 1922. Ao buscar a origem das imagens, acabou encontrando diversos originais guardados no escritório do filho de Arroyos, Blas Venegas Arroyos. Com a ajuda dele e do artista Pablo O’Higgins, Charlot conseguiu compilar centenas de gravuras de Posada e as publicou em 1930, em um estudo feito em parceria com a antropóloga Frances Toor. A publicação foi um sucesso, e gerou uma onda de interesse no trabalho de Posada, finalmente colocando seu nome na história da arte mexicana.

Edição da obra de Charlot, Toor, O’Higgins e Arroyo, com introdução de Diego Rivera

Na mesma época, o movimento muralista se tornou uma poderosa ferramenta de engajamento político através de imagens, ocupando espaços públicos com arte política, na qual os conceitos de luta de classes, igualdade, valorização da cultura popular e dos direitos do povo eram apresentados ao público de forma acessível, principalmente para a maioria da população mexicana que não era alfabetizada. Durante o governo de Álvaro Obregon, a pintura mural foi ativamente incentivada pelo ministro da educação José Vasconcelos. Diego Rivera logo despontou como um dos principais nomes do movimento do qual Jean Charlot também fazia parte. Tanto Rivera como Charlot foram enormemente influenciados pela arte de Posada, e fizeram questão de fazer referências diretas ao trabalho dele, garantindo assim que não apenas fosse conservado, mas que também se tornasse um elemento definitivo da cultura e da arte do México no século XX.

Caveiras e mexicanidade

Charges e quadrinhos políticos eram produzidos no México desde, pelo menos, a década de 1850, mas Posada é frequentemente visto como o pai da charge política mexicana moderna, e o responsável pela explosão de sua popularidade nos anos que antecederam a Revolução de 1910. Em geral quando pensamos em arte política no México, falamos do Muralismo dos anos 30, nas obras de forte inspiração marxista de Diego Rivera, David Alfaro Siqueiros e José Clemente Orozco. Há muito material e pesquisa sobre esse movimento artístico, mas a importancia da litografia na arte política mexicana as vezes é um tanto esquecida.

O termo ‘litografia’ se refere a todo um conjunto de técnicas artísticas nas quais uma imagem é gravada em uma matriz, que opde ser de madeira ou metal, e depois impressa em papel, como um carimbo. No México, essa técnica foi usada primeiro na ilustração de artigos e publicações científicas. Seu uso em peças de arte popular e imagens comerciais se deu em grande parte graças à influência da arte francesa que começou a aplicar a litografia a publicações e charges. Embora não se saiba muito sobre a educação formal de Posada, especialistas vêem no seu trabalho um profundo conhecimento tanto da arte da gravura mexicana quanto do trabalho de artistas europeus, o que não é surpresa visto que ele estudara desenho e pintura antes de aprender as técnicas de gravura.

Não há dúvida de que Posada se inspirou no trabalho de Manuel Manilla, que foi o primeiro a, de fato, desenhar caveiras ‘humanizadas’ em charges, porém a caveira como figura simbólica tem uma longa história na arte Mexicana.

Calavera Tapatia, atribuida a Manuel Manilla

No nosso passeio pela história do Día de los Muertos já vimos a importância da morte nas culturas pre-hispânicas, em especial para os Astecas (ou Mexicas). Na cultura e religião dos Mexicas, Maias, Zapotecas, Mixotecas e outros povos da região, a morte tem uma poderosa presença ritualística e cultural. De um modo geral esses povos tendiam a vê-la como uma continuação da vida, ainda que cada um deles tivesse suas visões específicas e detalhadas do mundo dos mortos, cada qual com suas regras e lógica interna. Infelizmente, a maior parte do material textual de que dispomos para estudar essas crenças são códices do período colonial e narrativas dos próprios colonizadores, mas tanto esse material escrito quanto a evidência arqueológica mostram claramente que a caveira é um símbolo frequente nas culturas pré-colombianas.

Estatueta de Mictlantecuhtli, Museo de Antropologia de La Xalapa, México (fonte: Encyclopedia Britannica)

Na cultura Mexica, o mundo dos mortos, o Mictlan, era o domínio do deus Mictlantecuhtli e sua esposa Mictecacihuatl, representados como esqueletos decorados com penas e adereços bem similares às figuras de caveiras do Día de los Muertos. E em diversas culturas mesoamericanas além deles, encontramos o Tzompantli, uma estrura parecida com uma estante na qual eram exibidos os crânios de prisioneiros de guerra ou vítimas de sacrifícios. Diversos sítios arqueológicos foram descobertos nos quais caveiras estavam expostas de diversas formas que sugeriam rituais religiosos, como por exemplo o Tzompantli Hueyi descoberto em 2017 na zona arqueológica do Templo Mayor, na cidade do México.

Um Tzompantli segundo ilustração do Codex Durán, do século XVI

Por outro lado, os europeus que invadiram e conquistaram o território também traziam consigo suas próprias caveiras. A caveira está presente na arte européia desde a Idade Média. Um tema visual muito comum na arte do período é a Danse Macabre, ou ‘Dança Macabra’, no qual esqueletos reanimados aparecem dançando com pessoas vivas. As figuras vivas que aparecem nestas obras são representadas com roupas e símbolos que indicam sua posição social: camponeses, aristocratas, clérigos, militares, idosos, jovens, homens, mulheres e crianças. A intenção por trás destas representações era mostrar que todos, independente de riqueza, idade ou status, um dia morrerão, e reforçar a importância da fé e da busca pela salvação da alma. Ou seja, a caveira (ou esqueleto) na arte européia está ligada ao tema do memento mori (em latim, ‘lembre-se de que vai morrer”), a ideia da transitoriedade da vida e da importância da fé.

Simolachri, Historie, e Figure de la Morte (1459), de Holbein, artista conhecido por suas representações da danse macabre

A caveira mexicana é uma mescla esses dois símbolos, a caveira pre-hispânica que representa os deuses, o sacrifício e a continuação da vida além da morte e a caveira européia que representa o fim da vida e a penitência. A obra de Posada a transforma em uma metáfora do próprio México, como o Tio Sam para os EUA ou Marianne para a França.

Ao usar a caveira como uma metáfora para o próprio México, Posada aborda os principais tópicos sociais e políticos de sua época, assim como eventos históricos. Nenhuma figura pública escapou de suas críticas, a tal ponto que há até um certo debate sobre quais seriam de fato as suas posições políticas (o fato de ter vivido em um período politicamente tumultuado certamente não contribui para que suas convicções fosse tão ‘preto no branco’ quanto suas gravuras). Mas todos os estudiosos de sua obra concordam em uma coisa: Posada está sempre e inequivocamente ao lado do povo e dos mais vulneráveis. Seu trabalho mostra cenas do quotidiano do povo, aponta desigualdades sociais, denuncia violências e abusos de poder, e satiriza a burguesia e o governo, mirando especialmente as ações do governo do ditador Porfírio Diaz, que governou o país até 1911, quando foi forçado a renunciar durante Revolução.

O melhor exemplo do posicionamento de Posada está em sua criação mais famosa: a Calavera Catrina.

Vestida com o luxo das damas da alta sociedade da época do governo de Porfírio Diaz, a Calavera Catrina satiriza a elite burguesa mexicana que voltava suas costas para a cultura tradicional e para o povo, preferindo o acúmulo de luxos e a imitação da cultura européia. Originalmente essa figura não tinha um nome, pois nenhuma das caveiras de Posada tinha a função de ser personagens independentes, existindo só como símbolos ou metáforas, servindo à crítica social, e não a uma narrativa.

No desenho em que aparece pela primeira vez, publicado poucos meses antes da morte de Posada, La Catrina vem acompanhada da frase “Las que hoy son empolvadas garbanceras, pararán en deformes calaveras.”, ou “As que hoje são empoadas e faceiras, acabarão como disformes caveiras”. As roupas da caveira e a menção ao pó de arroz usado para embranquecer o tom da pele servem não só como uma espécie de memento mori, uma reflexão sobre a futilidade da vaidade frente à morte, mas também como uma crítica àqueles que rejeitam sua identidade mexicana para imitar os padrões europeus. O termo “garbancera” que aparece no texto original é uma gíria da época, indicando uma pessoa vaidosa ou muito enfeitada, o que fez com que a figura ficasse conhecida como “Calavera Garbancera”, criando assim a imagem da caveira adornada que persiste até hoje nas decorações e fantasias de Día de los Muertos. Com o passar do tempo a imagem perdeu sua característica de sátira, e passou a ser vista mais como um símbolo da beleza da morte, que iguala a todos.

Mas a popularidade da Catrina como uma personificação bela da morte e da cultura mexicana começou muito tempo depois da publicação desta charge. La Catrina foi resgatada e batizada por Diego Rivera, em seu mural “Sueño de una tarde Dominical en la Alameda central” (“Sonho de uma tarde dominical na Alameda Central”). Pintado entre 1946 e 1947, o mural tem 15 metros de largura e foi originalmente encomendado pelo arquiteto Carlos Obregón Santacilla para o restaurante Versailles no Hotel del prado; hoje é a peça principal do Museu Mural Diego Rivera. Nele, estão representados eventos e figuras celébres da história do México passeando pelo parque Alameda Central, na Cidade do México. O grupo inclui, entre outros Frida Kahlo, Francisco Madero, benito Juárez, Sor Juana de La Cruz. Porfirio Díaz, José Martí, Hernan Cortés, La Malinche e o próprio José Guadalupe Posada.

“Sueño de una tarde Dominical en la Alameda central” (fonte: Historia-arte.com, para ver em tamanho grande, clique AQUI )

Essas figuras históricas são usadas para criticar os valores burgueses anteriores à Revolução de 1910: as figuras bem vestidas passeian acompanhando o ditador Porfírio Diaz enquanto uma família indígena é empurradas por policiais rumo às chamas ao fundo; também é possível ver as vítimas da Inquisição (que teve um tribunal no México) sendo levadas à fogueira. No centro vemos a Caveira Catrina, de braços dados com seu criador, José Guadalupe Posada. Ela veste as roupas luxuosas da burguesia mexicana embranquecida, mas é interessante notar que também usa um boá de penas em forma de serpente, uma referência ao deus asteca Quetzalcoatl, o criador da humanidade que toma a forma de uma serpente emplumada, ficando assim clara a presença dos valores culturais indígenas e tradicionais sob a fantasia de uma sociedade nos moldes europeus.

A Caveira Catrina, como toda a obra de Posada, representa o encontro de diferentes elementos culturais, ao longo de séculos de história (muitas vezes violenta e injusta) em um só México mestiço.

La Calavera de Don Quijote

Material consultado:

Artigos:

Celebrating Día de los Muertos- Milwaukee Art Museum

José Guadalupe Posada, artista contemporáneo y universal. Secretaria da Cultura do México

Artists Gallery-José Guadalupe Ruiz Aguilla Posada. New World Prints

Sueño de una tarde dominical en la Alameda Central-História-arte

Ilan Stavans . José Guadalupe Posada, Lampooner. The Journal of Decorative and Propaganda Arts Vol 16 Florida International University Board of Trustees on behalf of The Wolfsonian-FIU, 1990

Diego Rivera, Fernando Gamboa e Jean Charlot. José Guadalupe Posada. Artes de México, n.21 1958

Websites:

https://www.biografiasyvidas.com/biografia/p/posada.htm

https://www.posada-art-foundation.com/

Obras de Manuel Manilla. The Art Institute of Chicago

Obras de José Guadalupe Posada no Metropolitan Museum

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