A estranha família do Natal da Islândia

Saudações leitor noturno!

O Natal está chegando e, como sempre, vamos embarcar em outra viagem rumo aos cantos mais obscuros das celebrações de Natal. Já falamos das histórias de fantasma da Inglaterra (leia AQUI), e do apavorante Krampus da Europa Central (leia AQUI), mas hoje vamos para um lugar um pouquinho mais distante: a Islândia.

Como outros países do norte europeu, a Islândia é conhecida por suas paisagens invernais, com montanhas cobertas de neve, belíssimas auroras boreais e lindas casinhas coloridas que mais parecem de boneca. Enfim o cenário perfeito para as nossas mais belas fantasias natalinas, com Papai Noel, luzes e pinheirinho. Realmente, sob muitos aspectos o Natal na Islândia é bem parecido com o nosso: casa é decorada, todos compram roupa nova para usar nas celebrações, a família se reúne na véspera para trocar presentes, e a partir do dia 25 vão visitar os parentes e amigos, uma vez que é feriado até o dia 27, então há muitas festas, reuniões, almoços e jantares. Tudo bem no espírito da alegria do Natal.

Mas o Natal da Islândia tem um lado mais macabro, graças a uma estranha família. No artigo de hoje vamos conhecer essas criaturas.

Grýla, a canibal

A lenda de Grýla começa com narrativas orais em verso no século XIII como a Saga Íslendinga e a Saga Sverris. Nestas antigas tradições ela é uma ogra que vive nas montanhas ou numa caverna com seu terceiro marido Leppalúði, um ogro como ela. E o que aconteceu com os os outros maridos? Ora, Grýla o devorou. Isso mesmo, a Grýla, cujo nome significa “aquela que rosna”, é um monstro canibal. Descrita como uma velha gigante e horrenda, com braços muito compridos, muitas vezes com características animalescas, como um ou vários rabos, cascos, garras ou chifres, ela vaga pelos vilarejos (deixando o preguiçoso marido Leppalúði em casa) levando uma faca e um saco, em busca de crianças mal-criadas. Às vezes ela simplesmente as sequestra se aproveitando das nevascas para pegá-las sem que ninguém a veja, outras vezes simplesmente exige que os pais as entreguem (a histórias não explicam muito bem porque os pais não oferecem nenhuma resistência, mas fazer seus filhos acreditarem que você os entregaria para uma monstra canibal se eles não se comportarem deve ser um meio mais efetivo de assustá-los) Depois de juntar vítimas suficientes dentro de seu saco, ela as leva para sua caverna nos campos de lava de Dimmuborgir, onde os corta em pedacinhos prepara seu prato favorito: guisado de carne de criancinhas. Ou seja, a Grýla é uma bizarra mistura de Krampus, Baba Yaga e velho do saco.

Pintura de Thrandur Thorarinsson 

A Grýla acabou se tornando uma figura típica do Natal graças à sua profunda associação com o inverno. No imaginário coletivo ela era quase uma personificação desta estação, durante a qual a escuridão e a neve tomam conta de tudo, tornando a sobrevivência mais difícil, especialmente para os mais vulneráveis. A natureza da Islândia, apesar de sua beleza, pode ser bastante brutal, com temperaturas baixíssimas, vulcões e até terremotos. O ambiente se torna ainda mais inóspito com o frio, e especialmente difícil para sociedades agrárias como as que habitavam a ilha nos séculos em que a lenda de Grýla se popularizou. A ameaça de uma ogra gigante que mata e come crianças, nada mais era do que a própria ameaça do longo inverno, quando muitas crianças realmente morriam de fome e frio.

Decorações representando Grýla e Leppalúði  na cidade de Akureyri (foto: David Stanley)

Outra razão pela qual Grýla foi associada ao Natal foi sua inclusão na lenda dos ‘Meninos do Natal’, que são descritos como seus filhos em diversas versões de sua lenda (vamos ver mais sobre eles mais a frente). Para o ilustrador anglo-islandês Brian Pilkington, “fato de ela ser uma matriarca a torna mais assustadora”, e ele tem razão. Assim como a Baba Yaga do folclore do leste europeu a Grýla é uma subversão da figura materna, transformada em monstro canibal, que distorce uma necessidade universal, aquela do amor e do cuidado materno.

Jólakötturinn, o gato do Natal.

Ilustração de @IrenHorrors

Já sei o que você deve estar pensando. Como um “gato do Natal” pode ser algo assustador? Um gatinho natalino soa como a coisa mais fofinha do mundo. Bem, não quando se trata do bichinho de estimação de Grýla. Ou seja, além de ser uma ogra gigante que come criançinhas, ela também tem um gato monstruoso.

O Jólakötturinn, cujo nome é uma junção das palavras Jól (Yule, ou festival de solstício) e köttur (gato) é descrito como um felino gigantesco, que ronda os campos cobertos de neve onde ataca e devora os incautos. Mas ele não ataca qualquer um, o Jólakötturinn tem uma preferência bem específica: ele só ataca aqueles que não tem roupas novas para o Natal. Sim, sabe aquela blusinha ou bermuda nova que a gente compra para passar o Natal na sala comendo tender com farofa? Pois é, na Islândia o outfit novo pode fazer a diferença entre vida de morte se você cruzar o caminho do Jólakötturinn. Mas por quê? Seria o Jólakötturinn um incentivador do consumismo natalino?

Na verdade não…Essa bizarra lenda tem uma origem bem específica.

As primeiras referências escritas sobre esta criatura são historicamente recentes, datando do século XIX, embora acredite-se que havia narrativas orais anteriores. A figura do gato canibal era usada por fazendeiros para incentivar os trabalhadores a terminar de processar a lã antes da chegada do inverno, e antes do Natal, para que ela pudesse ser vendida em tempo hábil para se transformar em roupas de frio. Aqueles que trabalhavam no processamento de lã geralmente ganhavam roupas novas como parte de sua compensação por seu trabalho caso cumprissem o prazo. Por isso criou-se a história de que o Jólakötturinn saberia quem eram os trabalhadores preguiçosos pois esses não tinham roupas novas. É desta lenda que vem o costume observado até hoje na Islândia de comprar roupas novas para vestir no Natal.

Assim como a Grýla pegava as crianças mal-criadas, seu gato castigava os trabalhadores preguiçosos, mas, ao contrário de sua dona, ele nã comia gente, pelo menos não originalmente. As lendas originais apenas afirmavam que o gato roubava a comida daqueles que não compareciam às festividades do Natal usando uma roupa nova. A versão do gato que devora pessoas que até hoje é a mais popular na Islândia, vem de um dos poema de Jóhannes úr Kötlum, do livro Jólin koma (O Natal está chegando), de 1932. . E como sempre acontece com criaturas famintas de sangue, ele acabou virando mais um nome na galeria de bichos papões usado pelos pais islandeses para fazer os pequenos se comportarem. Aliás o poema teve tanto impacto cultural que já foi transformado até em canção, gravada até por Bjork

Jólasveinarnir, os meninos do Natal

Ah, sim outro nome aparentemente fofinho que esconde um monstro canibal por trás. Não dessa vez, caro leitor. De de todos os membros desta família macabra, os 13 filhos de Grýla são os menos perigosos, e é com eles que vamos terminar nosso passeio de hoje, em uma nota mais divertida que macabra.

Tradicionalmente, a Islândia não tem a figura do Papai Noel, então são os Jólasveinarnir (cujo nome vem de Jol, ou Yule e svenanir, plural de sveinn, ou “rapaz”, “menino”) que distribuem os presentes para as crianças. Ou seja, estão longe de ser assustadorees como Grýla, mas também não são exatamente bonzinhos. Suas origens remontam aos diversos elfos e criaturas mágicas que apareciam em contos e histórias para assustar as crianças, e assim como Grýla foram associados ao Natal ao longo do tempo. Seu número foi fixado em 13 pela primeira vez no século XVIII, mas foi só em 1862 que os Jólasveinarnir ganharam os nomes e características pelas quais são conhecidos até hoje, graças a uma coletânea de contos do autor Jón Árnason. Isso significa que, assim como o gato Jólakötturinn, estas figuras tem raízes bem mais recentes que a Grýla.

Atores representando dois dos Jólasveinarnir (foto: Associate Press/Egill Bjarnason)

Há uma explicação históricas para isso. No século XIX, o movimento nacionalista tomou conta do panorama cultural europeu. Com o fim do Antigo Regime e a emergência e expansão dos ideais iluministas, também se deu um processo de busca de identidade nacional, já que a figura do rei deixara de ser o elemento simbólico unificador de cada povo. Por isso, houve um redescobrimento das tradições orais, da música tradicional, do folclore e outros elementos culturais que poderiam formar uma identidade nacional específica para cada país. Foi nessa época, por exemplo, que os irmãos Grimm coletaram os contos de fadas da tradição alemã. Porém, o século XIX também representou o triunfo da burguesia urbana, e de sua visão de mundo mais conservadora e idealizada da família, da infância e do folclore. Por essa razão, os contos de fada e lendas medievais coletadas por autores, poetas e estudiosos passaram por uma “higienização”. Novamente podemos usar os irmãos Grimm como exemplo, ao comparar as versões originais compiladas com aquelas publicadas.

O mesmo processo se deu na Islândia. Grýla já estava muito enraizada no imaginário popular para ser “suavizada” e o gato Jólakötturinn ainda não tinha ‘evoluído’ para sua versão canibal, então os elfos dos contos tradicionais mais recentes podiam mais facilmente ser ‘reescritos’ de forma mais de acordo com os gostos burgueses do século XIX. Na versão fixada por Árnason, eles são treze e vivem nas montanhas com os pais Grýla and Leppalúði, mas nos dias que antecedem o Natal, descem um por um para deixar presentes nos sapatos das crianças. Daí vem a tradição de deixar um sapato na janela a partir do dia 12 de Dezembro (algumas crianças até deixam uma bota para tentar ganhar mais presentes, o que nunca acontece). Depois do dia 25 eles também voltam para casa um por um até o dia 6 de Janeiro, quando terminam oficialmente as festividades. Mas os Jólakötturinn tem seu lado mais maligno. Conforme visitam os vilarejos distribuindo presentes, também vão deixando um rastro de caos, pois aproveitam a visita para bagunçar tudo o que podem. Essas travessuras são reveladas por seus nomes, que geralmente fazem referência à sua atividade preferida. A tradição oral tem muitos Jólasveinarnir, mas os treze ‘clássicos’ são:

Stekkjastaur (Pula-cajado): perturba as ovelhas

Giljagaur (Monstro do buraco): se esconde em grotas para assustar as vacas e roubar seu leite

Stúfur (Baixinho): se aproveita se seu pequeno tamanho para se esconder dentro de panelas e comer o que tem dentro

Þvörusleikir (Lambe-colher): rouba colheres de pau

Pottasleikir (Rapa-pote): rouba os mantimentos de dentro dos potes

Askasleikir (Lambe-cumbuca): se esconde embaixo das camas esperando que alguém deixe um prato ou cumbuca por perto para comer o que encontrar neles

Hurðaskellir (Bate-porta):bate as portas no meio da noite para assustar os moradores da casa

Skyrgámur (Come Skyr): rouba potes de Skyr (uma espécie de iogurte caseiro muito popular e usado em várias receitas)

Bjúgnakrækir (Pega-linguiça): rouba as linguiças deixadas no defumador

Gluggagægir (Espia-janela): espiona as famílias pelas janelas em busca de objetos de valor para afanar

Gáttaþefur (Cheira-porta): fareja a soleira das portas em busca de pães e bolos recém-assados

Ketkrókur (Gancho de carne): usa um gancho para roubar pedaços de carne

Kertasníkir (Surrupia-vela): segue as crianças à noite para pegar suas velas.

O que podemos perceber ao analisar esses nomes é que, assim como Grýla, os Jólasveinarnir representam medos e ansiedades em relação ao inverno, e as dificuldades de sobreviver em um ambiente hostil, porém fazem referência à medos quotidianos. Enquanto Grýla aponta para o medo primordial da morte pelo frio ou pela fome, os Jólasveinarnir representam as dificuldades domésticas que pioram com o inverno e, num contexto rural, podem colocar a sobrevivência em risco a longo prazo: falta de comida, provisões perdidas ou estragadas, portas ou janelas quebradas, dificuldades com a criação e cuidados com os animais. Embora simples, essas questões causavam enormes incovenientes em uma época na qual as sociedades agrárias precisavam ter mantimentos e artigos de primeira necessidade estocados e bem preservados, pois quase tudo era produzido em casa, e o transporte eram precário, tornando difícil buscar esses artigos em outros lugares.

No entanto, conforme a sociedade Islandesa se urbanizou e modernizou, muitas destas preocupações deixaram de fazer sentido, e as “travessuras” dos Jólasveinarnir foram ganhando contornos mais lúdicos. Até sua representação visual mudou: suas vestimentas que antes eram típicas dos camponeses XVIII foram substituidas por roupas vermelhas e brancas, botas e em muitas ilustrações eles também tem barbas brancas, em uma clara referência ao Papai Noel. Aliás, com esse visual repaginado, podemos encontrar os Jólasveinarnir em cartões, vitrines, decorações, livros infantis e festas, cumprindo essencialmente a função do Papai Noel.

Ilustração de Brian Pilkington

Materiais Consultados

Videos:

The wicked feline monster floof-Monstrum

The story of Iceland’s 13 Yule Lads- Iceland Naturally

Sites:

Guide to Iceland

Christmas in iceland-Icelan.is

Celebrating Christmas with 13 trolls- Iceland.Is

http://www.iceland.is/iceland-abroad/us/education-and-culture/curiosities/christmas-in-iceland/

Why Iceland’s Christmas Witch is much cooler (and scarier) tha Krampus

The Christmas Cat

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