Terror ancestral: Livros de terror de autores indígenas

O medo é universal.

Todas as culturas o conhecem, e todas tem histórias e lendas nas quais ele é central. No entanto, mesmo que medo seja universal, ele pe, paradoxalmente, diferente em cada lugar. Algumas das nossas ansiedades e de nossos terrores emanam da condição humana e são familiares, conhecidos de todos nós independente de cultura, etnia ou credo: o medo da morte, do abandono, do desconhecido, de perder um ente querido. Já outros medos são mais particulares, nascidos de nossa vivência social ou cultural.

Aqui no blog a gente sabe como a literatura de terror popular tende a ser muito européia, e mais recentemente americana, e branca, justamente porque essa é a cultura dominante. Nossa visão do terror tem sua gênese nos castelos amaldiçoados e protagonistas instáveis da literatura gótica do Reino Unido dos séculos XVIII e XIX, e desemboca nas casas mal-assombradas da classe média WASP (“white, American, suburban, protestant”, denominação para o Americano ‘padrão’: branco, Americano suburbano e protestante) e nos serial killers de Hollywood. Às vezes fazemos uma passeio pelo terror asiático, como no caso da febre do J-Horror dos anos 2000, e outras vezes criadores de conteúdo negros como Jordan Peele conseguem furar a bolha com trabalhos como “Corra”, mas em geral o terror “popular” é bem, digamos, ‘monocromático’. Mas se olharmos além do que é considerado popular ou “clássico” poderemos ver que há muito terror de qualidade sendo produzido. Já fizemos uma lista de livros escritos por autoras e autores negros, então nada mais justo do que apresentar alguns autores indígenas.

A literatura indígena de terror tanto no Brasil quanto no restante da América tem uma forte relação com a identidade e a religiosidade, e também com a necessidade de reconhecimento e visibilidade. Enquanto autores negros vêm conquistando cada vez mais lugar na literatura de terror e já conseguem “brincar” com o gênero, subvertendo expectativas e clichés sobre o que é o terror “negro”, autores indígenas ainda correm atrás de visibilidade, do simples existir enquanto vozes literárias.

No caso brasileiro, de uma certa forma nós, o público leitor em geral, ainda encaramos nossas culturas indígenas como um monolito, um certo “tudo a mesma coisa”. Quando se trata especificamente das narrativas e literaturas indígenas ambém temos a tendência a olhar esses povos sob um prisma muito folclórico e às vezes quase carnavalesco. Aprendemos na escola versões simplificadas da mesma meia dúzia de lendas (Yara, Boitatá, Caipora, etc), vemos estes elementos culturais em programas de televisão ou no carnaval, e não passamos muito daí. A repressão à cultura indígena se deu de formas diferentes em outros países, em outros contextos históricos, mas de modo geral também podemos ver muito dessa “folclorização”: Skinwalkers e Wendigos povoam os filmes e lendas urbanas nos Estados Unidos e Canadá, e os fantasmas da colonização, dos antigos deuses e maldições ainda assombram a literatura e o imaginário coletivo na América Latina. Mas quase sempre os produtos culturais em que esses terrores aparecem não são produzidos por autores indígenas.

Por isso, se queremos um vislumbre das criaturas que habitam as profundezas do medo humano mais ancestral, vale muito a pena ouvir o que as vozes dos povos originários tem a nos contar, em especial no dia em que celebramos sua cultura e resistência.

O Povo das Histórias de Assombração (Editora Cintra) e Mapinguary-O dono dos Ossos (Editora Mercuryo Jovem)-Yaguarê Yamã (Texto) e Uziel Guaynê (Ilustrações)

Duas coletâneas de Yaguarê Yamã com illustrações de Uziel Guaybê nas quais são apresentadas as entidades e assombrações da cultura do povo Maraguá, também conhecido como Mauê, do Amazonas. Partindo da tradição de contar histórias, as histórias apresentam o sistema religioso desse povo, chamado de Urutopiãg. Estas histórias compartilhadas no espaço da mirixawaruka, ou casa do conselho tribal tem diversas temáticas e servem para organizar e preservar o sistema de mitos, lendas e tradições, e incluem momentos de contação de história tanto para crianças, que enfatizam as fábulas quanto para os adultos. O destaque aqui vai para as histórias sobre entidades assustadoras como os Wãkãkã ou Myra’ãga (assombrações e fantasmas) e os chamados ‘seres’, entidades sobrenaturais com formas humanoides. Um excelente passeio introdutório pelos mitos e contos de medo da cultura indígena.

A caveira rolante, a mulher lesma e outras histórias indígenas de assustar- Daniel Munduruku (texto), Maurício Negro (Ilustrações)- Global Editora

Outra antologia de contos tradicionais passados dos mais velhos aos mais jovens, este livro reúne narrativas dos povos Tukano, Ajuru, Macurap, Tembé e Karajá. Segundo o autor, “Elas mostram que nosso povo desenvolveu uma série de narrativas para mostrar os perigos que nos rodeiam em nossa vida de florestas, de montanha ou cerrado etambém para lembrar às crianças a importância de estarem atentas aos desafios que a natureza nos impõe”. Conta com seis histórias “Os caçadores e o Duende Arranca-Olho”, “O doente de olhos postiços”, “Kanoé – A história do morcego”, “A mulher-lesma”, “A caveira rolante”, “As amantes feiticeiras”.

Temporada de Caça- Stephen Graham Jones, Tradução: Leandro Durazzo (Editora Darkside)

Stephen Grahan Jones é autor de ficção experimental, terror, ficção científica e romances policiais, e também é membro da Nação Indígena dos Blackfeet, também conhecidos como Piegan, das planícies centrais dos Estados Unidos. No premiado “Temporada de caça” ele aborda a questão da identidade indígena em um mundo onde essa identidade não encontra lugar para existir, e a tensão entre tradição e “modernidade” que se impõe especialmente aos mais jovens Essas questões ficam claras no título original “Only the good Indians” (“Só os índios bons”), que sugere a contestação do que seriam comportamentos adequados, o que fazer pela aceitação do grupo. Nessa narrativa densa e brutal Lewis, Ricky, Gabe e Cass, quatro jovens da nação Blackfeet, que se vêem perseguidos por uma entidade sobrenatural após quebrarem um tabu místico, em uma.

Deixe um comentário

Site criado com WordPress.com.

Acima ↑