“O Mezzo-tinto”- M.R.James

(Imagem de capa: Mitchell Holland-detalhe)

“The Mezzotint” foi publicado originalmente em 1904, na coletânea “Ghost Stories of an Antiquary”

Há algum tempo, acredito que tive o prazer de contar-lhes a história de uma aventura que aconteceu com meu amigo Dennistoun, enquanto ele procurava por objetos de arte para o museu de Cambridge. (“O Livro de Recortes do Cônego Alberic”)

Dennistoun não divulgou suas experiências ao público em geral quando retornou à Inglaterra; mas muitos de seus amigos acabaram sabendo, e entre eles estava um cavalheiro que, na época, presidia um museu de arte em outra universidade. Era de se esperar que a história despertasse um interesse considerável na mente de um homem cuja vocação profissional era bem semelhante à de Dennistoun, e também era de se esperar que ele ficaria ansioso para obter qualquer explicação sobre o assunto que o convencesse de que ele mesmo não teria de a lidar com um circunstância tão inquietante. De fato, se tranquilizou ao lembrar não fazia parte de suas responsabilidades adquir manuscritos antigos para sua instituição; essa era a função da Biblioteca Shelburnian. As autoridades daquela instituição poderiam, se quisessem, vasculhar os cantos obscuros do continente em busca de tais coisas. Ele estava satisfeito por ter que, no momento, limitar sua atenção ao aumento da coleção já insuperável de desenhos topográficos e gravuras inglesas do museu. No entanto, a verdade é que até mesmo um departamento tão descomplicado e familiar como seu podia ter seus segredos sombrios e o Sr. Williams acabou sendo apresentado a um deles.

Qualquer um que tenha o mínimo interesse na aquisição de imagens topográficas sabe que há um negociante londrino cujo auxílio é indispensável para tais pesquisas. O Sr. J.W. Britnell publica com certa frequência catálogos muito admiráveis de uma vasta e sempre renovada reserva de gravuras, plantas arquitetônicas e esboços antigos de mansões, igrejas e cidades da Inglaterra e do País de Gales. Esses catálogos eram, é claro, o ABC de sua área para o Sr. William. Mas como seu museu já acumulava muitas gravuras topográficas, ele era um comprador mais regular do que pródigo; e preferia contar com o auxílio do Sr. Britnell mais para preencher lacunas na base de sua coleção do que para encontrar raridades.

Ora, no último mês de fevereiro apareceu na mesa do Sr. Williams um catálogo do empório de Britnell, e com ele veio uma nota datilografada do próprio negociante. A nota lia:

‘Prezado Senhor,

Gostaríamos de chamar a sua atenção para o nº 978 de nosso catálogo, o qual teremos o maior prazer de enviar após sua aprovação.

Atenciosamente,

JW Britnell.’

Demorou um pouco para o Sr. Williams (que trabalhava sem assistentes) localizar o número 978 no catálogo que acompanhava a nota, mas no local indicado ele encontrou a seguinte entrada:

‘978.—Desconhecido. Mezzo-tinto interessante: Vista de uma mansão, início do século. 15 x 10 polegadas; moldura preta. £ 2;1.

Não era nada especialmente interessante, e o preço parecia-lhe muito alto. No entanto, como o Sr. Britnell, que conhecia bem o seu negócio e seus clientes, parecia considerar que a peça tinha valor, o Sr. Williams escreveu um cartão postal pedindo que o artigo fosse enviado para avaliação, juntamente com algumas outras gravuras e esboços que constavam no mesmo catálogo. Então, voltou às tarefas normais do dia sem nenhum grande sentimento de antecipação.

Qualquer tipo de pacote sempre chega um dia depois do esperado, e o do Sr. Britnell mostrou, como diz a frase feita, não ser nenhuma exceção à regra. Foi entregue no museu junto com a correspondência da tarde de sábado, depois que o Sr. Williams já tinha deixado o escritório. Por isso foi levado, como de praxe, para seu dormitório na faculdade por um dos assitentes assim ele não teria de esperar até depois do domingo para olhar todo o conteúdo e devolver os itens que não pretendesse adquirir. E foi lá que ele o encontrou quando voltou para tomar chá com um amigo.

O único item com que nos interessa é o mezzo-tinto, grande e enquadrado em uma moldura preta, como já citado na breve descrição dada no catálogo do Sr. Britnell. Mais devo descrever mais alguns de seus detalhes, embora não seja capaz de apresentar-lhe uma imagem da gravura tão clara quanto a que vi com meus próprios olhos. Cópias quase exatas dela podem ser vistas ainda hoje nas recepções de diversas pousadas, ou nos imperturbáveis corredores de várias casas se campo. Era um mezzo-tinto bastante comum, e um mezzo-tinto comum é, talvez, o pior tipo de gravura. Um panorama de uma mansão não muito grande de um século antes, com três fileiras de janelas simples, alvenaria rústica, um parapeito com vasos nos ângulos, e um pequeno pórtico no centro. De ambos os lados havia árvores, e na frente uma extensão considerável de gramado. A legenda “A. W. F. sculpsit” estava gravada na margem estreita; e não havia nenhuma outra inscrição.

A imagem inteira dava a impressão de ter sido o trabalho de um amador. O que diabos o Sr. Britnell pretendia afixando o preço de dois guinéus para um tal objeto, o Sr. Williams não tinha ideia. Ele examinou-o com uma boa dose de desprezo; na parte de trás havia uma etiqueta de papel cuja a metade esquerda tinha sido arrancada. Tudo o que restava era o final de duas frases: a primeira tinha as letras —ngley Hall;a segunda —ssex.

Talvez valesse a pena identificar o lugar representado, o que ele poderia facilmente fazer com a ajuda de um dicionário geográfico, e então poderia enviá-lo de volta para o Sr. Britnell, com algumas observações sobre o bom julgamento do cavalheiro.

Acendeu as velas, já que começava a escurecer, fez o chá, e serviu o amigo com quem ele estivera jogando golfe (acredito que as autoridades da Universidade sobre as quais escrevo preferem este passatempo para relaxar). O chá foi acompanhado pelo tipo de conversa que os entusiastas do golfe podem imaginar por si mesmos, mas que o escritor consciente não tem o direito de infligir a qualquer pessoa que não seja golfista.

Chegaram à conclusão de que certas jogadas poderiam ter sido melhores, e que em certos momentos nenhum dos jogadores tivera o nível de sorte que seria humanamente possível esperar ter. Foi então que o amigo – vamos chamá-lo de Professor Binks – pegou a gravura emoldurada, e perguntou:

—Que lugar é esse, Williams?

—É exatamente o que vou tentar descobrir.—disse Williams, indo até a estante para pegar um dicionário geográfico. —Dê uma olhada na parte de trás. Algum lugar que termina em “ley Hall”, em Sussex ou Essex. Como pode ver, metade do nome está rasgado. Você não saberia, por acaso?

—É daquele sujeito, comoe ele se chama mesmo… Britnell, não é?— disse Binks. —Para o museu? 

—Bem, acho eu compraria se o preço fosse uns cinco xelins. Mas por alguma razão sobrenatural ele quer dois guinéus por ele. Não consigo imaginar por quê. É uma gravura miserável, e não há sequer nenhuma figura humana para dar-lhe vida.

—Não vale dois guinéus, eu acho. Mas não também acho que seja tão ruim. O luar me parece muito bem feito; e eu tenho a impressão de que há sim figuras humanas, pelo menos uma, aqui no canto.

—Vamos ver. Bem, é verdade que a luz está bem distribuída. Onde está a figura? Ah, sim! Apenas a cabeça, na parte da frente da imagem.

E, de fato, havia -pouco mais que uma mancha negra na borda extrema da gravura – a cabeça de um homem ou mulher, bem escondida, olhando para a casa, de costas para o observador .

Williams não tinha notado isso antes.

—Ainda assim,— considerou —embora seja melhor do que eu pensava, eu não posso gastar dois guinéus do dinheiro do museu em uma gravura de um lugar que eu nem conheço.

O Professor Binks tinha seu trabalho a fazer então logo partiu, Quase até a hora do jantar Williams continuou sua vã tentativa de indentificar o local da gravura.

—Se tivessem deixado a vogal antes do ng seria bem mais fácil.— pensou—Mas do jeito que está, o nome pode ser qualquer coisa de Guestingley a Langley, há muito mais nomes terminando assim do que eu pensava; e este bendito livro não tem índice de terminações.

O jantar era servido às 19hs. Não precisamos detalhar: ele se encontrou com colegas que jogaram golfe à tarde, e as conversas ao redor da mesa não nos interessam, conversas sobre golfe, devo dizer.

Imagino que tenham passado um hora ou mais depois do jantar na sala comum. Mais tarde, naquela noite, alguns foram para o quarto de Williams onde não tenho dúvidas de que jogaram uíste e fumaram. Durante uma pausa no jogo, Williams pegou o mezzo-tinto da mesa sem nem olhar para ele e o entregou a um colega mais interessado em arte, dizendo-lhe de onde tinha vindo, e os outros detalhes que já conhecemos.

O cavalheiro pegou o objeto com indiferença, olhou para ele e disse, com um tom de certo interesse:

—É realmente um trabalho muito bom, Williams; tem um ar de ser do período romântico. A luz é admiravelmente administrada, me parece, e a figura, embora seja um pouco grotesca demais, é de alguma forma muito impressionante.

—Sim, não é? —disse Williams, que estava ocupado servindo uísque com soda aos demais, e não pôde cruzar a sala para olhar a gravura novamente.

Já era bem tarde da noite quando os visitantes se foram. Depois que eles partiram, Williams teve que escrever uma ou duas cartas para resolver alguns assuntos de trabalho. Por fim, algum tempo depois da meia-noite, resolveu se deitar e apagou a luz da mesa de trabalho depois de acender a vela do quarto. A gravura estava virada para cima na mesa onde a última pessoa que a olhou tinha deixado, e chamou sua atenção quando Williams apagou a lâmpada. O que viu quase o fez deixar cair a vela no chão, e ele declara até hoje que se tivesse ficado no escuro naquele momento teria tido um ataque. Mas, como isso não aconteceu, ele conseguiu colocar a vela sobre a mesa e dar uma boa olhada na imagem. Era indubitável – totalmente impossível, sem dúvida, mas absolutamente certo. No meio do gramado em frente à casa desconhecida havia uma figura onde às cinco da tarde não havia nada. Estava rastejando de quatro em direção à casa, enrolada em estranha vestimenta preta com uma cruz branca nas costas.

Não sei qual é o curso ideal a seguir em uma situação desse tipo. Só posso dizer o que o Sr. Williams fez. Ele segurou a foto por um dos cantos e a levou pelo corredor até o segundo conjunto de aposentos que possuía. Lá, ele a trancou em uma gaveta, fechou asas portas dos dois quartos e se retirou para a cama; mas antes disso, escreveu e assinou um relato da extraordinária mudança pela qual o quadro havia sofrido desde que entrara em sua posse.

O sono só chegou bem tarde; mas ele se tranquilizou ao pensar que provar o comportamento do quadro não dependia apenas de seu próprio testemunho sem fundamento. Evidentemente, o homem que o olhara na noite anterior tinha visto algo do mesmo tipo que ele, caso contrário, ficaria tentado a pensar que havia algo gravemente errado acontecendo com seus olhos ou sua mente. Com essa possibilidade felizmente excluída, dois assuntos o aguardavam no dia seguinte. Ele teria que avaliar a imagem com muito cuidado e na presença de uma testemunha, e teria que se esforçar para identificar a casa que estava representada nela. Portanto, pediria a seu vizinho Nisbet para tomar o café da manhã com ele e, em seguida, passaria o resto da manhã estudando o dicionário geográfico.

Nisbet não tinha nenhum compromisso naquela manhã e chegou por volta das 9h30. Seu anfitrião ainda não estava sequer arrumado, lamento dizer, mesmo àquela hora tardia. Durante o café da manhã, Williams não disse nada sobre o mezzo-tinto, só disse que tinha uma gravura sobre a qual queria a opinião de Nisbet. Aqueles que estão familiarizados com a vida universitária podem imaginar por si mesmos a ampla e agradável gama de assuntos sobre os quais a conversa de dois professores do Canterbury College se estenderia durante um café da manhã de domingo. Nenhum tópico foi deixado em aberto, do golfe ao tênis. No entanto, devo dizer que Williams ainda estava bastante perturbado; seu interesse estava naturalmente naquele quadro tão estranho que agora repousava, virado para baixo, em uma gaveta na sala em frente.

O cachimbo da manhã foi finalmente aceso e chegou o momento que ele esperava. Com um nervosismo quase trêmulo, ele atravessou o corredor, destrancou a gaveta, pegou a gravura – ainda virada para baixo – voltou e colocou-a nas mãos de Nisbet.

—Agora, Nisbet,—disse—quero que me diga exatamente o que vê nesata imagem. Descreva, se não se importar, minuciosamente. Depois eu explico o porquê.

—Bem,— disse Nisbet,—tenho aqui a vista de uma casa de campo, inglesa, presumo, ao luar.

—Luar? Tem certeza?

—Claro. A lua parece estar minguando, se quer detalhes, e há nuvens no céu.

—Tudo bem. Prossiga, mas. eu juro— acrescentou Williams — que não havia lua quando a vi pela primeira vez .

—Não há muito mais a ser dito—Nisbet continuou. —A casa tem uma, duas, três fileiras de janelas, cinco em cada fileira, exceto na parte inferior, onde há uma varanda em vez da janela do meio, e …

—Mas e quanto a figuras?— perguntou Williams, com óbvio interesse.

—Não há nenhuma’, disse Nisbet—mas…

—O quê?! Nenhuma figura no gramado em frente?

—Nada.

—Seria capaz de jurar?

—Certamente que sim. Mas há apenas uma outra coisa.

—O quê?

—Bem, uma das janelas do andar térreo, à esquerda da porta, está aberta.

—É mesmo? Meu Deus! Ele deve ter entrado— disse Williams, com grande entusiasmo. Correu junto do sofá no qual Nisbet estava sentado e pegou a foto das mãos para verificar por si mesmo.

Era verdade. Não havia mais nenhuma figura, mas uma janela estava aberta. Williams, após um momento de surpresa muda, foi até a escrivaninha e escrevinhou alguma coisa. Em seguida, trouxe dois papéis para Nisbet e pediu-lhe primeiro que assinasse um – era sua própria descrição da foto, que acabamos de ouvir – e que depois lesse o outro, a declaração de Williams escrita na noite anterior.

—O que significa tudo isso?— perguntou Nisbet.

—Aí está a questão! Bem, preciso fazer uma coisa, ou três coisas, pensando bem. Tenho que perguntar à Garwood (este era o nome de seu visitante da noite anterior) o que ele viu, fotografar a imagem antes que ela mude de novo, e depois descobrir que lugar é esse.

—Posso tirar as fotos. —ofereceu Nisbet— Mas, sabe, parece até que estamos assistindo alguma tragédia se desenrolar em algum lugar. A questão é: ela já aconteceu ou vai acontecer? Você tem que descobrir onde é esse lugar.

—Simm— disse Williams, olhando para a imagem novamente—espero que você esteja certo: ele conseguiu entrar. E se eu não me engano, algo terrível vai acontecer em um dos quartos do andar de cima.

—Tenho uma ideia—disse Williams— Vou levar a gravura para o velho Green (era o membro sênior do Colégio, que tinha sido administrador financeiro por muitos anos). —É muito provável que ele saiba. Temos propriedades em Essex e Sussex, e ele deve ter visitado muitos esses dois condados na época dele.

—Certamente ele vai saber. Mas deixe-me tirar minha foto primeiro. A propósito, eu não acho que Green está aí. Ele não estava no jantar ontem à noite, e eu acho que o ouvi dizer que ia viajar no domingo.

—Isso é verdade. Sei que ele foi para Brighton. Bem, se vai fotografar a gravura agora, então eu vou até Garwood para pegar o depoimento dele, e você fica aqui de olho nela enquanto eu estiver fora. Estou começando a achar que dois guinéus não é um preço tão exorbitante por ela.

O Sr. Williams logo voltou, e trazendo o Sr. Garwood consigo. A declaração de Garwood foi no sentido de que a figura, quando ele a tinha visto, estava afastada da borda da imagem, mas não tinha chegado muito longe através do gramado. Também se lembrou de uma marca branca na parte de trás de sua vestimenta, mas não tinha certeza de que era uma cruz. Um documento com a sua declaração foi então elaborado e assinado, e Nisbet começou a fotografar a imagem.

—Agora o que quer fazer?— ele perguntou então. —Vai ficar olhando para ela o dia inteiro?

—Bem, Não, eu acho que não— disse Williams. —Na verdade, imagino que estamos destinados a ver toda a coisa coisa. Veja bem, entre o momento que eu vi ontem à noite e esta manhã havia tempo para muitas coisas acontecerem, mas a criatura só entrou na casa. Ela poderia facilmente ter feito o que queria fazer e voltado para o seu lugar novamente, e mas o fato de a janela estar aberta, eu acho, deve significar que está lá dentro agora. Então eu me sinto muito à vontade em deixá-lo. Além do mais, eu tenho para mim que não vai mudar muito, se é que vai mudar alguma coisa durante o dia. Podemos sair para passear esta tarde, e voltar para o chá, ou quando escurecer. Vou deixá-la aqui na mesa e trancar a porta. Meu camareiro pode entrar, e mais ninguém.

Os três concordaram que este seria um bom plano; e, além disso, se passassem a tarde juntos seria menos provável que mencionassem o assunto para outras pessoas. Afinal, qualquer boato de que um evento como esse estava acontecendo traria toda a Sociedade Phasmatológica até eles.

Vamos dar-lhes um descanso até as 5 da tarde.

Perto deste horário, os três estavam subindo de volta ao apartamento de Williams. Imediatamente. ficaram um pouco irritados ao ver que a porta estava destrancada; mas logo se lembrara, que aos domingos os camareiros vinham para receber suas instruções uma hora ou mais cedo do que nos dias úteis. No entanto, uma surpresa estava esperando por eles. Primeiro, viram a gravura encostada em uma pilha de livros sobre a mesa, como tinha sido deixada ,depois, o camareiro de Williams, sentado em uma cadeira, olhando para ela com horror indisfarçado. Como era possível? O sr. Filcher (o nome não é minha própria invenção) era um profissional de considerável posição, que estabelecera o padrão de etiqueta seguido por toda a equipe da faculdade e até por instituições vizinhas, e nada poderia ser mais estranho ao seu feitio do deixar-se pilhar sentado na cadeira de seu superior, ou mexendo nos móveis e gravuras dele. Na verdade, ele mesmo parecia saber disso. Tomou uma grande susto quando os três homens entraram na sala, e levantou-se com um esforço visível.

Ilustração de Clive Upton para a coletêanea The Mammoth Book of Thrillers, Ghosts & Mysteries (1936)

Então disse:

—Perdoe-me, senhor, por tomar a liberdade de me sentar.

—Não há problema algum, Robert— assegurou o Sr. Williams. —Já faz um tempo que eu queria mesmo perguntar o que você acha desta gravura.

— Bem, senhor, é claro que não compararia minha opinião com a sua, mas não é um quadro que eu penduraria onde minha garotinha pudesse ver, senhor.

—Não é, Robert? Porque não?

—Não, senhor. Ora, a pobrezinha, lembro-me uma vez que ela viu uma Bíblia com ilustrações que não eram nem de perto como esta, e nós’ tivemos que passar três ou quatro noites em branco com ela depois, juro. Se ela visse este esqueleto, ou seja lá o que for, carregando o esse pobre bebê, ficaria apavorada. O senhor sabe como são as crianças, têm medo de tudo. Mas, o que devo dizer é não parece um quadro que se deva deixar por aí, senhor, onde alguém que se assuste fácil poderia ver. O senhor deseja alguma coisa alguma coisa esta noite, senhor? Obrigado, senhor.

Com estas palavras o excelente homem saiu para fazer sua ronda dos demais apartamentos. Obviamente que, assim que ele saiu, os cavalheiros não perderam tempo em se reunir em torno da gravura. Lá estava a casa, como antes, sob a lua minguante e nuvens que vagavam. A janela que antes estava aberta, agora estava fechada, e a figura tinha voltado para o gramado, Mas não estava rastejando cautelosamente sobre as mãos e joelhos. Agora estava de pé e avançando rapidamente, com passadas largas, em direção à parte da frente do quadro. A lua estava atrás dela, e um véu preto caía sobre seu rosto de modo que apenas alguns traços dele podiam ser vistos, mas o pouco que era visível deixou os observadores profundamente gratos por não poderem ver mais do que uma testa branca arredondada e alguns cabelos desgrenhados. A cabeça estava inclinada para baixo e os braços firmemente agarrados a um volume que mal podia ser visto e vagamente se assemelhava a uma criança, se viva ou morta não era possível dizer. Só as pernas da aparição estavam claramente visíveis s e eram terrivelmente finas.

Das cinco às sete, os três sentaram-se e observaram a imagem alternadamente. Mas ela não mudou. Por fim, concordaram que seria seguro deixá-la e que voltariam depois do jantar e aguardariam mais desdobramentos.

Quando se reuniram novamente, assim que puderam, a gravura estava lá, mas a figura havia sumido e a casa parecia calma sob os raios de lua. Não havia nada a fazer senão passar a noite lendo dicionários e guias de viagem. Williams finalmente teve sorte, e quiçá a merecesse. Bem depois das 11 da noite, ele encontrou no Murray’s Guide to Essex as seguintes linhas:

’16 ½ milhas,Anningley. A igreja foi um edifício interessante na era Normanda, mas passou por uma extensiva reforma no estilo clássico no século passado. Ele contém a tumba da família Francis, cuja mansão, Anningley Hall, uma sólida casa ao estilo do período da Rainha Anne, fica logo depois do cemitério, em um terreno de cerca de 80 acres. A família está extinta, já que o último herdeiro desapareceu misteriosamente quando ainda era um bebê, no ano de 1802. O pai, o Sr. Arthur Francis, era conhecido localmente como um talentoso artista amador especializado em mezzo-tintos. Após o desaparecimento do filho, viveu em completo isolamento em sua mansão e foi encontrado morto em seu estúdio, no terceiro aniversário da tragédia. Ele tinha acabado de fazer uma gravura da casa, cujas impressões são bastante raras.

A informação parecia sólida e, de fato, o Sr. Green, ao boltar de viagem, imediatamente identificou a casa como Anningley Hall.

—Existe algum tipo de explicação para a figura, Green? — foi a pergunta que Williams fez, naturalmente.

—Não sei. O que tenho certeza, Williams. é que os boatos que circulavam pelo lugar quando eu visitei, o que foi antes de eu vir trabalhar aqui, só diziam o seguinte: o velho Francis nunca gostou de que o povo caçasse por ali, e sempre que por acaso pilhavam um homem de quem ele suspeitava o entregava às autoridades e, aos poucos, livrou-se de todos menos um. Os cavalheiros podiam fazer muitas coisas naquela época que não ousariam nem pensar agora. Bem, este homem que sobrou era do tipo que se encontra com bastante frequência naquela área – o último sobrevivente de uma família muito antiga. Acredito tinham sido os donoss da mansão no passado. Me lembro de coisas assim acontecendo em minha própria paróquia.

—O quê, como o homem em Tess dos D’ urbervilles?—Williams sugeriu.

—Sim, acredito; mas não é um livro que eu tenha lido. Bem, este sujeito podia apontar uma fileira inteira de túmulos na igreja local que pertenciam a seus ancestrais, e isso fez com que ele fosse ficando amargo. Mas Francis, diziam, nunca conseguiria se livrar dele, já ele sempre agia de acordo com a lei. Até que uma noite os guardas o encontraram em um bosque bem no final da propriedade. Eu poderia lhes mostrar o lugar agora; fica perto de um terreno que pertencia a um tio meu. Como podem imaginar, houve uma briga; e este homemm Gawdy (esse era o nome, com certeza – Gawdy; é importante saber- Gawdy), teve o azar, pobre sujeito, de atirar sem querer em um dos empregados da mansão. Bem, era exatamente isso que Francis queria, e o júri; vocês sabem como seria um júri naquela época… O pobre Gawdy foi rapidamente condenado e executado. Eu mesmo visitei o lugar onde ele foi enterrado, no lado norte da igreja, afinal é a tradição por ali, que qualquer um que foi enforcado ou que tenha se suicidado seja enterrado sempre daquele lado. Dizia-se que algum amigo de Gawdy – não um parente, pois ele não tinha nenhum, o pobre diabo era o último de sua linhagem, umas pes ultima gentis- bem um amigo dele teria planejado roubar o filho de Francis e acabar com a lingahem dele também. Não sei, parece uma ideia meio fora do comum para um caçador de Essex, mas, sabe, devo dizer agora que parece mais que o velho Gawdy fez o serviço ele mesmo. Booh! Não quero nem pensar nisso! Tome um pouco de uísque, Williams!

Os fatos foram comunicados por Williams a Dennistoun, e por ele a um grupo de amigos, do qual eu e o venerável Professor de Ofiologia, erámos parte. Lamento dizer que este último, quando questionado sobre sua opinião acerca destes eventos, apenas comentou:

— Oh, essas pessoas de Bridgeford contam qualquer história— uma afirmação que recebeu a reação que merecia.

Só tenho que acrescentar o seguinte: a foto está agora no Museu Ashleian; onde foi estudada com o objetivo de descobrir se alguma tinta especial fora usada em sua confecção, mas sem sucesso. O Sr. Britnell não sabia de nada sobre a gravura, apenas que tinha certeza de que era um objeto incomum. Embora cuidadosamente observada, ela nunca voltou a mudar de novo.

Notas da Tradutora:

Mezzo-tinto– técnica de gravura em que se utiliza de cobre ou aço para criar matizes de cinza sobre um fundo negro

Guinéu (guinea) – moeda que circulou no Reino Unido entre 1663 e 1813, equivalente a 1,05 libras.

2 comentários em ““O Mezzo-tinto”- M.R.James

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  1. Que maravilha encontrar essa tradução! Ainda mais agora que “The Mezzotint” está sendo adaptado para a série “Ghost Stories for Christmas” da BBC. A previsão é estrear no Natal desse ano. 😄

    À propósito, caso interesse, tenho um pequeno dossiê sobre a série no meu blog. Ficaria muito feliz com a visita. =)
    https://lordevelho.blogspot.com/2017/06/ghost-stories-for-christmas-tradicao.html

    E muito, muito obrigado por disponibilizar todos esse clássicos em português! 🖤

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