Imagem de capa: Emre Cam
“The Face in the Glass” foi publicado pela primeira vez no periódico natalino Mistletoe Bough em Dezembro de 1880, e desde então tem sido incluído em todas as coletâneas de contos de fantasma da autora.
I
O Aviso
Na distante Yorkshire, há muitos anos atrás, havia uma velha mansão, uma casa cinza e sombria que tinha ao seu redor um terreno aberto, no meio do qual jorrava uma fonte melancólica. A casa ficava perto das largas charnecas que se estendem até a cidade de York. Além de uma aldeia, não havia mais nada por milhas e milhas de distância. A não ser pela governanta e a usual equipe de criados, a mansão já estava desabitada fazia algum tempo, pois o falecido proprietário, que gostava muito de viajar, tinha morrido afogado em sua última excursão. A tragédia tinha acontecido perto de casa, o que tornou tudo ainda mais triste.
Ele foi trazido de volta para ser enterrado no lúgubre mausoléu da família em um dia de primavera, muito antes de minha história começar. Desde então, a governanta insistia que, sempre que havia tempestades no mar e o vento gemia e uivava pelas longas alamedas como uma alma em sofrimento, era possível ouvir um terrível som de água pingando no quarto onde o corpo do pobre homem tinha sido deixado à espera do funeral. Havia também alguns quartos misteriosos na mansão, nos quais as portas desapareciam periodicamente. Por meses era impossível entrar nesses aposentos, e quando as portas eram finalmente restauradas, encontravam-se as as paredes adornadas com desenhos diabólicos de monstros, e os móveis reordenados de maneiras nada agradáveis.
No entanto, isso não pareceu pesar muito sobre o ânimo dos novos proprietários, o Sr. e a Sra. Monroe, um casal animado e corajoso, casado há pouco tempo, e tão felizes juntos quanto um casal pode ser. A Sra. Monroe, de fato, declarou-se muito ansiosa para ver um daqueles maravilhosos fantasmas. Afinal era uma mulher determinada que não tinha medo nenhum de ir para a cama sozinha no escuro. Ela costumava visitar os quartos assombrados e andar pelos corredores à noite até que os servos quase começaram a acreditar que ela mesma devia ser um fantasma, para ser assim tão extremamente destemida. Tampouco seu marido tinha qualquer problema em ajudá-la em sua caça aos fantasmas, mas ele saía com muita frequência para caçar e praticar tiro, e muitas vezes voltava para casa só para jantar e dormir, às vezes até na própria mesa de jantar de pura fadiga.
A Sra. Monroe vinha de uma família grande que vivia em uma casa alegre na ensolarada região de Kent, onde ela tinha muito pouco tempo para ler, escrever e caminhar, atividades com as quais ela agora preenchia seus dias da maneira mais satisfatória. Ainda não tinha sentido o peso de ter tanto tempo livre em suas mãos; mas mesmo assim ela não ficou lá muito triste quando as primeiras geadas do rigoroso inverno de Yorkshire transformaram o solo em uma massa dura, colocando um fim às diversões ao ar livre que tão constantemente afastavam o marido do seu lado. A neve ocasional também impedia a prática do tiro, e ele só podia vagar ao redor da casa, pelo terreno e o pequeno gramado, à vezes pegando alguma ave marinha fugida da costa. Depois, passava o resto da tarde pesquisando a espécie em um de seus numerosos livros ilustrados por Bewick, uma tarefa tão interminável quanto viciante. Nas primeiras duas semanas foi tudo bem: a Sra. Monroe podia sair com o marido para caçar pássaros, e ajudá-lo com sua pesquisa à noite; mas, por fim, a neve começou a cair a sério e depois de quatro dias quase ininterruptos de céu cinzento e frio, quando o correio parou de chegar, e o único jornal da semana já não era entregue, a Sra. Monroe estava começando a se perguntar se seria feio de sua parte torcer por um degelo. Segundo suas previsões, a menos que pudesse inventar alguma novidade para divertir o senhor da casa, ela acabaria descobrindo que companhia demais nem sempre é bom. Ele já tinha começado a empalidecer, e foi ficando primeiro inquieto, depois, reclamão, em seguida, rabugento, até mesmo durante o jantar, e, por fim muito, muito irritado.
Finalmente uma ideia brilhante lhe ocorreu.
—Hugh,— disse ela— vamos pegar as chaves de Betty agora mesmo e fazer caça aos fantasmas. Está anoitecendo muito cedo, e a lua refletida na neve vai iluminar os quartos como se fosse de dia.
—Veja,—ela continuou, abrindo as pesadas cortinas vermelhas que cobriam as fundas janelas de vidraças pequenas —as nuvens já se foram, e amanhã você deve poder atirar novamente. Talvez não tenhamos outra oportunidade tão perfeita por meses, então não vamos perdê-la. Nós dois estamos cansados de sentar junto ao fogo. Um passeio por todos aqueles quartos misteriosos no andar de cima vai abrir nosso apetite para o jantar mesmo se não tivermos a sorte de encontrar o fantasma que buscamos.
—Deve estar terrivelmente frio.—respondeu Hugh, dando de ombros e aproximando as mãos do grande fogo aceso debaixo da chaminé—Além disso, se nós virmos um fantasma, você vai cair morta de medo. Sabe muito bem que só é tão corajosa assim porque não acredita nas histórias da Betty.
—Meu querido Hugh,—insistiu Ruth vividamente —eu não acredito de jeito nenhum que vamos ver algo pior do que nós mesmos, como minha velha ama a costumava dizer. Mas se víssemos, o que poderia acontecer? Eu já estive acordada em todas horas da noite, especialmente quando Betty ficou doente na semana passada, e se realmente existe alguma coisa aqui, eu já teria visto. Mas se você não quiser, então não vamos.
—Oh, nós vamos!— exclamou Hugh. —Eu só estava com muita preguiça, só isso.
E assim dizendo, ele tocou a campainha e ordenou que lhe trouxessem as chaves. Depois de alguma demora, uma grande variedade de tamanhos e espécies de chave foi trazido, e lá foram o Sr. e Sra. Monroe em sua caça aos fantasmas.
O humor de Hugh melhorou com a brincadeira. Subiram e desceram, destrancaram armários e quartos que não tinham sido examinados por meses, por anos talvez, mas não encontraram nenhum fantasma. De vez em quando, ouviam um farfalhar sugestivo por entre o cortinado empoeirado das camas de carvalho, e seguravam a mão um do outro um pouco mais forte; mas, ao investigar, descobriam que era só o vento soprando ou a luz da lamparina que levavam mostrava-lhes um ratinho cinza esgueirando-se para debaixo da cama. De vez em quando, também, um gemido triste parecia perfurar a escuridão quando abriam uma porta pesada; mas era só a ferrugem das dobradiças.
Aos poucos, foram ficando mais entusiasmados e, conforme a caçada prosseguiu sem nenhum resultado, iam rindo e falando alto. Foi quando, de repente, se depararam com uma porta que não tinham notado antes, no final do corredor que ia até a a parte ocupada da casa. Logo, descobriram que estava, é claro, trancada. Depois de tentar abri-la com todas as chaves que tinham, chegaram à conclusão de que teriam que descer para procurar aquela que correspondia à fechadura. Subitamente, o vento pareceu soprar mais forte. Uma lufada passou pelo do buraco da fechadura, no do qual a Sra. Monroe estava espiando, apagou a chama da lamparina que ela segurava e deixou os dois mergulhados na escuridão. O Sr. Monroe logo a acendeu de novo.
—As janelas devem estar todas abertas.—ele sugeriu—Nesse caso, já passou da hora de examinarmos a nossa propriedade. Me arrisco a dizer que a velha Betty deve ter perdido a chave, e temo que tenha que repreendê-la por seu descuido.
—Mas, se você não estiver muito assustada, Ruth,— acrescentou, voltando-se para a esposa—eu vou descer e perguntar. Se ela perdeu mesmo a chave, vou ter que mandar derrubar porta para fechar essas janelas. Tem vento suficiente aí para empurrar um navio em plena vela.
—Sim, faça isso.— respondeu a Sra. Monroe animada—Sem dúvida é essa a origem do fantasma do marinheiro que faz nossas noites tão extremamente esquálidas sempre que venta. Se pudermos nos livrar dele talvez eu não seja obrigada a contratar uma empregada nova toda vez que o vento sopra do noroeste. Isso já está virando um problema, especialmente agora com tanta neve. Eu nunca deveria ter trazido uma de York.
—Bem, espere aqui, então— respondeu Monroe, e desceu para pedir a chave perdida à velha governanta. A governanta levantou-se de seu assento junto ao fogo tremendo e, afobada, disse:
—Não pode, Sr. Hugh.
—”Não pode” o quê? —repetiu Hugh com desdém— Se perdeu a chave, não tem problema. Mandamos fazer outra, se for o caso. Mas se não tiver perdido, e isso for um um dos seus absurdos supersticiosos, já deveria nos conhecer bem o suficiente para não tentar uma dessas. Venha rápido, está muito frio lá em cima. As janelas estão abertas, eu acho. A noite está calma, mas o vento está de gelar os ossos.
—Sr. Hugh,—disse Betty, assustada—naquele quarto ficou muito morto da família Monroe; de um jeito ou de outro. Ou morreu lá ou levaram pra lá no caixão pra esperar o dia do funeral.
—E essa noite, Sr. Hugh,— acrescentou, ficando mais eloquente à medida que aumentava seu medo de entregar a chave — hoje é o aniversário do dia em levaram o Sr. Charles pra lá, afogado e morto da Baía de Flamborough. O senhor sabe quando se entra naquele quarto e o rosto de algum membro da família está refletido no espelho, a pessoa vai morrer antes do fim do ano. Na cama, Mestre Hugh, dá pra ver o caixão, horrível, pingando e pingando água da mortalha do pobre rapaz morto, assim como ele pingou até enterrarem.
—O que diabos você está fazendo, Hugh? —interrompeu em uma voz vinda da porta. —Estou quase morrendo de frio, quero entrar naquele quarto.
—Me dê a chave, Betty.— insistiu Hugh —Vou me arriscar com os fantasmas, o caixão e tudo o mais, afinal, estamos mesmo caçando fantasmas.
—Então, minha querida,—prosseguiu, voltando-se para a esposa, que, cansada de esperar, tinha descido para ver o que ele estava fazendo—de acordo com Betty vamos poder gritar Eureka, pois logo vamos encontrar um fantasma.
Então, rindo muito, os dois jovens pegaram a chave da mão relutante de Betty, subiram com pressa pela grande escada de carvalho, e logo estavam de volta junto à porta do quarto fantasma.
O vento parecia ter ficado mais forte enquanto eles estavam afastados. Ficaram quietos por um momento, para descansar depois correr apressados escada acima, pareceu-lhes ouvir o gotejar que a velha Betty profetizara. Seus corações, antes tão fortes, sentiram um certo tremor, mas com um impaciente “só pode ser imaginação, é claro”, Hugh virou a chave na fechadura, e a porta se abriu.
Era apenas um quarto nu com uma lareira, bem no meio dele estava a cama na qual tantos cadáveres já tinham descansado. Havia três janelas minúsculas todas fechadas, mas através das fendas entravam raios de lua perdidos. Uma potente corrente de ar agitava o cortinado de chita pendurado na cama, até que todos os tipos e formas e figuras pareciam nas dobras, espiando e encarando os recém-chegados. Entre as janelas estava pendurado um espelho, e acima da lareira havia outro, mas não havia nenhum outro móvel além destes.
—Uma das janelas deve ser quebrada—sugeriu a Sra. Monroe, e avançou para abrir as persianas. Mas assim que o fez, levou um susto ou ouvir o marido desabar pesadamente no chão, exclamando em um sussurro:
—Meu Deus!
Ruth agarrou a sineta, e fez um tremendo escarcéu. Antes que os empregados viessem correndo para o andar de cima, ela pegou Hugh em seus braços, sem se importar com qualquer fantasma que pudesse estar por perto, voltou toda a sua atenção para seu marido, desejando sinceramente que pudesse pegar um pouco daquela água que ouviram pingando. Assim que os servos chegaram, ela avistou um fino e sinuoso fio de água escorrendo em sua direção, traçando uma linha de luz pela da poeira. Ela se inclinou para mergulhar seu lenço nele, quando Betty, que, apesar da idade, foi a primeira a responder ao chamado, pois estava esperando sem fôlego desde que a chave tinha deixado suas mãos, avançou, dizendo:
—S-s-senhora, isso é água de cadáver. —Então ofereceu a Ruth o conteúdo de um jarro que tinha trazido consigo, convencida de que ele seria necessário. Hugh foi levado de volta para o seu próprio quarto, e ao virar-se para trancar a porta, Ruth viu, ou imaginou ter visto, à luz da lua que agora inundava o quarto, a sombra pálida de um caixão sobre a cama. Era dele que saía o fio d’água com o qual ela quase molhou a testa do marido. Com um arrepio de horror, mas jurando para si mesma que iria investigar o assunto, ela fechou e trancou a porta, guardou a chave no bolso, e seguiu Hugh até seu quarto.
Àquela altura, Hugh tinha recobrado os sentidos, e começava a se perguntar o que raios tinha acontecido. No entanto, assim que viu a esposa, a horrenda lembrança voltou, e ele quase desmaiou novamente.
Quando ele se recuperou, o que não aconteceu até o dia seguinte, enquanto os dois tomavam café da manhã tardio, Ruth implorou que Hugh lhe contasse calmamente o que tinha visto. Porém, tudo o que conseguiu tirar dele foi a garantia de que não havia nenhum poder sobre a Terra que pudesse obrigá-lo a contar, e que só queria esquecer tudo o mais rápido possível. “Fantasmas? Oh, isso é uma besteira, é claro, mas ainda assim não há porquê falar deles.”
—Mas Hugh,—segredou Ruth— eu vi também, e não me importei nem um pouco.
—Afinal, — acrescentou, alarmada com a expressão no rosto do marido—a água pode ter entrado por algum vazamento no teto; e os raios da lua tomam formas tão curiosas, especialmente quando refletidos da neve que acredito que o caixão foi coisa da nossa imaginação. Vou subir novamente esta noite, e resolver esse assunto de uma vez por todas. Se realmente há algum fantasma, bem, nesse caso devemos fazer de tudo para ajudar este espírito perturbado a descansar. Mas se não houver nada, é melhor descobrirmos logo, pois você fica branco e pronto para desmaiar só de pensar disso.
—Você não vai fazer nada disso!— respondeu Hugh decididamente. —Eu não vi nem caixão nem água, e o que eu vi provavelmente não foi nada importante, mas de todas as pessoas do mundo você é a última a quem eu contaria, pelo menos não até que choque tenha passado. E tenho que pedir que desista da ideia de ir até lá novamente.
Antes que Ruth tivesse o tempo de ou prometer que não iria ou de tentar dissuadi-lo do que ela acreditava ser uma superstição absurda, Hugh viu o carteiro que trazia o correio semanal tentando passar pela neve derretida e cheia de lama da alameda. Sem dúvida desejoso de esquecer tudo sobre o caso da noite anterior, Hugh saiu para encontrá-lo.
—Lamento muito, senhor,— disse o carteiro— por estar tão atrasado, mas lamento mais ainda ser o portador de más notícias: seu pobre irmão está de coração partido. Ele perdeu a esposa, e quer vê-lo imediatamente. O funeral é amanhã, e ele espera que as estradas estejam livres o suficiente para permitir que o senhor vá até ele, pois ele está terrivelmente arrasado.
Hugh pegou as cartas e entrou, e quem poderia imaginaria o quão grato ele estava por aquela terrível notícia? Ele tinha acreditado piamente ter visto o rosto de sua esposa no espelho do quarto assombrado na noite anterior, e agora ao que parecia -ao menos assim ele pensava – tinha sido o rosto da esposa de seu irmão mais novo, que era irmã de Ruth, e se parecia muito com ela. Em sua alegria pelo peso retirado de seus ombros, Hugh quase esqueceu que tinha que contar à esposa sobre morte da irmã. Ficou aliviado de não encontrá-la. Estava ocupada com seus afazeres domésticos, e assim continuou até que ele terminou de ler as carta, Só então Hugh ficou mais triste.
A pobre Ruth estava tão assoberbada, e ao mesmo tempo em tal pressa para arrumar as roupas do marido e do criado dele a tempo, que os dois praticamente se esqueceram do fantasma. Foi só quando ele estava no meio do caminho para York, chegando no pântano aberto onde a neve derretia rapidamente sob a morna chuva vinda do noroeste, que Hugh desejou ter contado tudo a Ruth, desejou ter insistido que ela lhe fizesse a promessa que pedira naquela manhã. Mas já era tarde demais, e então ele seguiu seu caminho aos longo de mais de 70 úmidos e frios quilômetros, até que se viu entrando nas ruas escuras e estreitas de York.
II
O Cumprimento
Depois das iniciais perguntas e respostas pesarosas trocadas com o irmão Edgar, Hugh começou a contar o quão assustado tinha ficado com a aparição no espelho do quarto assombrado. Edgar, de sua poltrona junto à lareira, olhou para ele e disse:
—Que horas você viu isso, Hugh?
—Eu não faço ideia. Acho que pode ter sido às seis, ou um pouco depois. Mas o que isso importa? O aviso foi transmitido para mim…se ao menos eu não tivesse pensado que era a Ruth.
—Mary morreu anteontem. Estava sentada aí, olhando para mim exatamente como você está agora, e de repente ela caiu para a frente. Deve ter morrido instantaneamente. Graças a Deus— acrescentou, com a voz embargada —ela não sofreu. O Dr. Borcham me disse que a morte foi instantânea. O pai dela morreu assim também. Deve ser genético.
—Deus me livre—exclamou Hugh, saltando de sua poltrona. —Não, pelo amor de Deus, não fale assim. Mary e Ruth são irmãs, se esqueceu? Pense no que você está dizendo.
—Eu nunca entendi porque nós temos tanto medo da morte súbita— refletiu Edgar, ainda no mesmo tom de voz quieto. —Pense que misericórdia, deixar para trás todo o desassossego e dor desta vida mortal e cair em um repouso perfeito. Eu gostaria de me deitar logo ao lado de Mary e descansar também!
—É uma misericórdia para aqueles que partem —retrucou Hugh, —mas não para quem fica. Pense no choque! Mas já está ficando tarde e minha viagem foi longa. Tenho que ir para a cama.
Oferecendo seu ‘boa noite’ ao irmão, Hugh subiu a escada até o quarto que tinha sido preparado para ele.
Do outro lado do estreito corredor ficava outro quarto, no qual jazia o corpo de sua cunhada. Pela fresta embaixo da porta saía uma fina linha de luz e um murmúrio suave de conversa, sinal de que ainda havia gente no quarto com ela. Hugh não a via desde o dia em que os dois irmãos se casaram com as duas irmãs. Pegou sua vela novamente, atravessou o corredor, e bateu na porta. A velha ama da família, que tinha vindo morar com Mary depois do casamento, abriu uma fresta, e vendo quem era, saiu. Fechou a porta cuidadosamente atrás de si, puxou Hugh de volta para seu próprio quarto, e fechou aquela porta também.
—Agora, Sr. Monroe,— disse ela—eu sei o que o senhor quer; mas me escute: não peça para ver pobre Senhorita Mary. É melhor se lembrar dela como estava da última vez que a viu, uma linda noiva feliz, do que levar em sua mente a imagem de como ela está agora. Além disso, ela é tão parecida com a querida Senhorita Ruth, que tenho certeza que o senhor não deve olhar para ela. Não vai fazer nenhum bem a ela agora, minha pobre cordeirinha, e pode lhe dar um choque que o senhor não vai superar facilmente. O senhor já está pálido e cansado o suficiente agora.
—Tudo bem, Povis.— respondeu Hugh, mas ele não tinha —Talvez você esteja certa, mas eu penso que o Sr. Edgar poderia se ofender. De qualquer forma, vou deixar para você explicar tudo, e como estou realmente exausto, vou seguir o seu conselho. Então, boa noite
Enquanto a velha ama voltava à sua melancólica vigília junto ao caixão, Hugh foi para a cama. Ao começar a trocar de roupa, vislumbrou seu reflexo, e no espelho, como se olhando por sobre seu ombro, viu o rosto horripilante da noite anterior. Desta vez, os olhos estavam abertos, e pareciam olhá-lo, chamá-lo, implorando, como se tentasse incitar alguma ação dele. Apenas o rosto estava visível, como se a cabeça tivesse sido cortada na altura do pescoço, ou como se cabeça e corpo estivessem envoltos em uma névoa cinza, na qual pairavam os belos traços de sua mulher— pois era sua mulher, Hugh não ousaria duvidar.
Ele se levantou e correu até o espelho, mas conforme se aproximava, o rosto gradualmente desapareceu. Ele ficou por algum tempo ali, tremendo e olhando em todas as direções, mas o rosto não voltou. Então, convencendo-se de que tinha sido só sua imaginação, Hugh apressou-se a ir para a cama. Como estava terrivelmente cansado, logo adormeceu.
A manhã o encontrou bem descansado, com a mente límpida e alerta. Se levantou e se vestiu, mas quando quando estava estava escovando o cabelo em frente ao espelho, um vento frio pareceu passar por ele. A escova ficou parada no ar, pois ali, olhando novamente por sobre seu ombros com tristes olhos cinzentos, estava o rosto de sua esposa. Desta vez ele podia ver mais da figura e enquanto olhava impotente dentro dos olhos que tinha diante de si, viu uma mão se levantar, e em um dos dedos viu seu anel de noivado brilhar, o curioso anel antigo com o qual todos os filhos mais velhos da família Monroe tinham noivado desde tempos imemoriais.
—O que você quer? —perguntou Hugh, com uma voz dura e estranha, que soava esquisita e distante para próprios ouvidos. —O que você quer?
Os lábios pálidos abriram como fossem falar. Nenhuma palavra saiu deles, mas na sala ecoaram, como a linha melódica de uma música distante trazida de longe por uma brisa suave, as palavras: “Tarde demais! Tarde demais!” e então a visão desapareceu.
Absolutamente desolado, completamente aflito, Hugh terminou de se vestir e desceu correndo à busca do irmão, que estava sentado quase do mesmo jeito no mesmo lugar onde ele o deixara na noite anterior, abatido e miserável sob a luz pálida que lutava para entrar por entre as cortinas fechadas. Ele se assustou quando viu Hugh, e perguntou-lhe qual era o problema. Hugh contou toda a história, e terminou dizendo que precisava mandar preparar seu cavalo e ir para casa imediatamente.
—Você não pode me deixar assim,— insistiu Edgar— só por causa de uma visão ou um sonho, ou um truque do seu cérebro cansado. Você não se recuperou do primeiro susto, e então a morte de minha querida Mary deve ter te angustiado novamente. Acredite, é só sua imaginação. O que pode ter acontecido com Ruth desde as dez da manhã de ontem? Eu nunca vou superar este dia terrível sem você. Eu imploro, imploro que fique até amanhã, pelo menos. Então eu ficarei feliz em acompanhá-lo de volta e ficar em sua casa por um tempo.
Hugh ainda insistiu em seu desejo de ir para casa de uma vez, mas Edgar suplicou tanto, e até chorou, daquela maneira terrível que os homens derramam lágrimas, que se sentiu obrigado a ceder. Ficou tão ocupado em tomar todas as providências, ir e vir do cemitério, consolar e confortar seu irmão durante a dolorida cerimônia que o dia passou rapidamente, e a noite os encontrou sentados novamente junto à lareira da sala de jantar. Hugh tinha ido para seu quarto várias vezes ao longo do dia, e a cada vez tinha olhado para o espelho com um pavor trêmulo. Mas não viu o rosto novamente. À noite, começou até a pensar que quando pegasse o caminho de volta para casa, poderia então se dar ao luxo de rir de sua superstição e de todas essas loucuras.
Um curiosos som, como um gemido baixinho chamou a atenção dos irmãos que ouviram atentamente. Edgar ia falar algo, mas o gemido foi ficando cada vez mais alto, até soar como um vento pavoroso, lamuriando-se por toda a sala. Hugh fez menção de se levantar, mas neste exato momento a porta da sala se escancarou violentamente, e por ela deslizou em uma magra figura cinzenta, que avançou silenciosa e apavorante até chegar à lareira. A porta se fechou sem fazer nenhum barulho, e conforme Hugh e Edgar, segurando a mão um do outro com uma força de pura agonia, se aproximavam dela com passos lento, o véu de névoa que a envolvia começou a se esvair aos poucos, devagar. Com um arrepio mútuo de horror eles reconheceram a figura de Ruth Monroe.
O vento e gemidos foram morrendo, e um silêncio abominável encheu a sala, que ficou subitamente fria e úmida, como se o véu de névoa tivesse se desmanchado na atmosfera. Ruth não se moveu nem tirou os olhos do marido. Ela o olhava com a mesma expressão suplicante de antes. A voz de Edgar tremeu mas ele a chamou pelo nome e implorou-lhe que falasse com eles. Ao som de sua voz, a figura levantou a mão e, em seguida, moveu os lábios assim como o rosto o espelho tinha feito antes. Palavras não formadas e sem som pareciam encher a sala, mas de uma maneira tão indistinta que nenhum dos irmãos conseguiu entendê-las. Quando Hugh avançou para pegar a mão estendida entre as suas, a figura lentamente desapareceu, não deixando nenhum traço de sua extraordinária visita.
—Não adianta!— exclamou Hugh—Vou enlouquecer se não for logo para casa! Alguma coisa terrível deve ter acontecido! Vou mandar George arrumar os cavalos e vou embora agora mesmo. Mais uma noite assim, mais uma aparição como essa e eu caio morto!
E assim dizendo ele tocou a sineta e ordenou que seu criado aprontasse os cavalos de uma vez. Então eles partiram pelas ruas desertas de York, os cascos dos animais soando sobre as pedras dentro da a noite através de Micklegate Bar. A manhã começava a quebrar a névoa fria e densa que pairava sobre a aldeia enquanto eles se aproximavam de Grange. Os cavalos e homens cansados pararam ao chegar na ponte e olharam para a mansão, silenciosa por entre as árvores. Hugh ansiosamente esporeou seu cavalo cansado ao longo da alameda, correu até os degraus, e tocou o sino como se estivesse tentando acordar tanto os vivos quanto os mortos.
A velha Betty abriu a porta exatamente no mesmo momento, pois estava acompanhando um médico até a saída. Quando ela viu o Sr. Monroe, ficou parada na porta com um ar de indecisão.
—Por Deus!— exclamou Hugh—Minha mulher…—o médico o pegou pelo braço e o levou até a sala de jantar.
—Meu caro Sr. Monroe,— disse—deve preparar-se para uma calamidade terrível; sua querida esposa sofreu um choque que pode matá-la, ou deixá-la fora de seu juízo perfeito pelo resto da vida. Não posso dizer como aconteceu ou o que causou isso, mas Betty me disse que ela foi encontrada inconsciente no quarto de cima ontem à noite, e desde então não para de chamar pelo senhor de uma maneira atroz. Escute…dá para ouvi-la.
Quando a porta se abriu, Hugh ouviu seu nome chamado com o mesmo tom estranho usado pela figura que o visitara em York. Desvencilhando-se do médico que tentava segurá-lo, voou escada acima, e lá estava, sentada na cama e vigiada pelas empregadas horrorizadas, sua esposa, chamando seu nome sem parar. No momento em que o viu, ela parou, olhou com carinho para ele, do mesmo jeito triste que o fantasma olhara, e então disse:
—Eu esperei por você para me despedir. Fui três vezes vê-lo, mas queria você em casa. Tem um fantasma lá em cima. Eu me vi, deitada naquela cama terrível, e foi isso que me matou. O médico sempre disse que qualquer choque poderia me matar. E quase te matou também. Eu só estou esperando para beijá-lo antes de ir.
O pobre Hugh caiu de joelhos, e a estreitou em seus braços. Quando fez isso, os olhos de Ruth se fecharam, sua boca relaxou-se em um repouso infinito, seus braços se cruzaram sobre o peito, e ela deitou-se. Morta, fria como mármore no abraço do marido.
Por dias e noites Hugh ficou entre a vida e a morte, e meses se passaram até que ele conseguisse suportar ouvir toda a história; meses antes que ele conseguisse ouvir como ela fora encontrada no quarto antigo lá em cima, onde subira para ver o que tinha assustado tanto Hugh, apesar as súplicas chorosas da velha Betty e da promessa não dita para o marido. Mas quando ele conseguiu ouvir, quando conseguiu entrar de novo naquele quarto medonho, foi apenas para ordenar que parte da mansão fosse demolida e reconstruída de tal maneira que não ficasse nenhum vestígio da câmara da morte dos Monroes.
Foi só depois que a vida lhe dera outra esposa e meia dúzia de filhos barulhentos que Hugh voltou a sorrir novamente. E se alguma vez na época de Natal a conversa se encaminhava para o fascinante tópico do sobrenatural, ele mudava abruptamente de assunto. Hugh nunca conseguiu contar a história do rosto no espelho.
O espelho não foi destruído. Os Monroes ainda o guardam, e o tratam com uma reverência supersticiosa, pois tão certo quanto há de haver uma morte na família no ano seguinte, então com certeza na noite de Todas as Almas é o rosto da vítima que aparece nele. Pelo menos é o que conta a governanta , acrescentando, com um sorriso em seu semblante rubicundo, “Agora, ninguém tenta a Providência indo olhar naquele espelho; pois o fantasma só pode ser visto por um Monroe. E seria terrível, o senhor sabe, se eles vissem seus próprios rostos olhando de volta do espelho.”